Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
Metade
Mas não o esqueci a metade de homem que pedia no metro. E pergunto: Como se vive com metade de nós? Se nos cortam ao meio, por gangrena, por exemplo, o que fazem à metade que nos tiram? Tem essa metade de corpo direito a enterro, a funeral, a epitáfios e elegias fúnebre? Tem direito a ser chorada? Tem direito ao salitre das lágrimas dos outros? O corpo não é só o invólucro que nos transporta. Há quem menospreze o corpo. Há quem figa que o que importa é que está dentro, a alma, o espírito. Como lhe queiram chamar. Um disparate tão grande. O corpo tem uma importância primordial. Maior. Eu, antes de tudo o mais, sou matéria. Sou corpo. Sou olhos, pés, pernas, braços, seios, dedos, sou sangue, ossos, intestinos, pulmões. Sou tudo isto e mais qualquer coisa que adivinho menor. Ao olhar a metade de homem que pedia na estação dos Restauradores não pude deixar de sentir algum alívio por me ter inteira. Tenho-me a mim. Tenho o meu corpo. Já não é mau.
Visconde
Ontem, na estação dos Restauradores, vi um homem cortado ao meio. Literalmente cortado ao meio. Como se, quando ele ainda era um corpo inteiro, o tivessem deitado numa maca, o tivessem medido, lhe tivessem traçado uma linha direita, separando-o em duas metades. A metade de cima e a metade de baixo. Depois, com cuidado, com minúcia e engenho, com um objecto cortante qualquer, uma tesoura gigante, o tivessem cortado ao meio. A metade de homem pedia. Alguém o deixara ali, encostado à parede da estação, perto da entrada para o parque de estacionamento, com um boné, onde se vislumbravam, baças, duas ou três moedas. Tinha o cabelo branco e uma barba bonita, branca também, e aparada. Vestia uma camisa limpa. As suas feições eram regulares, perfeitas e duras. O nosso olhar cruzou-se e fui eu que lhe fugi. Naquele homem, naquela metade de homem, havia ainda qualquer coisa de antigo. Tinha um ar quixotesco, ou calinotesco (Há quem diga que Cervantes baseou o seu cavaleiro andante numa personagem de Gil Vicente, Calinote. Mas isso são outras conversas para outro dia.) Dir-se-ia, pelas suas feições, pelo seu ar de tempos antigos, que o homem saíra de um quadro de Velásquez, ele que amiúde pintou, não metades de homem, mas homens com o tamanho de metades de homem. Quis ficar a olhá-lo, tal foi a surpresa, o encantamento, que aquele meio-corpo me provocou. Segui em frente. E lembrei-me do Visconde Cortado ao Meio, de Calvino.
2006/06/29
Senhor Doutor
É hoje a consulta com o psiquiatra. Tenho um pó, grande, a psiquiatras, psicólogos e afins. Vai ouvir-me falar durante meia dúzia de minutos. Vou ter que resumir a minha tristeza e solidão em frases contidas, curtas, concisas. Ainda não sei se lhe hei-de falar da frigidez. Não é fácil a uma mulher confessar-se feita de gelo. Depois de me ouvir, o senhor doutor vai dizer que eu estou com uma depressão profunda. Ena, ena. Que novidade. Se calhar, até vai dizer que não sou frígida coisa nenhuma, que em mim há apenas uma diminuição da libido provocada pelo estado depressivo, pela astenia física e psicológica. Em seguida, vai preencher o diário terapêutico com os medicamentos que tratarão a maleita. Há-de lá colocar o cipralex, o xanax e outros. Quase de certeza que também me receitará um laxante. É sabido, ansiolíticos e anti-depressivos provocam obstipação feroz e de difícil alívio. Com sorte, durante a consulta, em vez de um ar pesaroso, o senhor doutor fará um ar descontraído, como que para desdramatizar a situação. E, no final, à despedida, aconselhar-me-á uma lista de terapeutas que eu deitarei no primeiro caixote de lixo que encontrar.
2006/06/28
Suicida feliz
Há um livro do Paulo Nogueira que se chama “O Suicida Feliz”. É um livro divertido, muito bem escrito, que conta a história de um tipo que decide suicidar-se no tanque maior do oceanário. Lembro-me de ler a parte em que ele tenta por cobro à sua vida e rir às gargalhadas. Tenho-me lembrado deste livro nos últimos dias. Porque, apesar de tudo o que passou nos últimos dias, há coisas que me fazem feliz: ter comprado a assinatura para ver a Mostra Internacional de Teatro faz-me feliz (maravilhosa, a adaptação que a Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid faz do D. Duardos de Gil Vicente); saber que, no âmbito dessa mostra, ainda tenho tantas peças para ver faz-me feliz; almoçar com a Mila nas arcadas do teatro num sábado fosco e tristonho faz-me feliz; falarmos sem parar durante horas faz-me feliz; ter descoberto a escrita da Clarice Lispector faz-me muito feliz; ter um blog para poder insultar a Mafalda Ivo Cruz que escreve cona, depois de divagar sobre o prelúdio de Tristão e Isolda, faz-me feliz; escrever, ainda que com dor, faz-me feliz; ver a Madalena sair no dia do seu aniversário toda janota com um vestido de cerimónia e havaianas nos pés faz-me feliz; ter o João, sempre o João, que tem o sorriso mais bonito do mundo, faz-me feliz; olhá-los enquanto dormem faz-me feliz. O resto que se foda.
2006/06/24
Ana de Amsterdam
Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, da troca de pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, bacana
Sou Ana de Amsterdam
Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, da vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam
Chico Buarque - Ruy Guerra1972-1973
Da compra, da venda, da troca de pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, bacana
Sou Ana de Amsterdam
Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, da vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam
Chico Buarque - Ruy Guerra1972-1973