Verdes Anos

No correnteza do comboio há figueiras de folhas largas e puras, nelas não se enforcou Judas, nem ninguém, há retalhos de terra cansada onde velhos plantam couves galegas e outras coisas, cenouras, batatas, nabos, espinafres, há colmeias na chapada do monte, mesmo por baixo de uma bomba de gasolina, há pergólas endemoninhadas feitas por ervas bravias, heras, ortigas, trepadeiras com campânulas em flor, há prédios de papelão onde vivem pessoas de papelão, vejo agora, ali, um homem de papelão espreguiçando-se numa janela e um braço de mulher que nele se enlaça como se fosse uma serpente sibilante. Adão e Eva. Há ruínas habitadas pelo silêncio e o vento. Lá em baixo, Ilda e Júlio tropeçam nos regatos que são animais mansos. As suas gargalhadas sobem pelo ar como se fossem bolas de sabão. Translúcidas, efémeras, com todas as cores lá dentro, a morte também lá está, disfarçada de vida. Entram as gargalhadas com corpo de bola de sabão pelas janelas do comboio. Por breves instantes ficam rendilhadas. Tornam-se em quase nada. Depois rebentam no meu nariz e nas minhas mãos. Plof.

2006/09/28

Amália (2)

Sempre ouvi dizer que sou parecida com a tia Amália. Fisicamente, mas não só. Desconfio que o génio também deve ser parecido. Quando se zanga com o marido, a tia Amália pega na pequena acelera de fabrico indiano, uma máquina potentíssima, percorre o caminho de Pondá a Maina, praguejando sempre contra o pobre Xavier, e vai descansar uns dias à casa materna, entre papaieiras e cajueiros. Só volta quando o marido mete o rabinho entre as pernas e lhe pede para voltar. Quero conhecê-la. Mergulhar-lhe nos olhos, nos silêncios e nos gestos. Quero que me ensine a usar um sari, a pintar os olhos com côle, a apanhar devidamente o cabelo (uma mulher deve ter o cabelo comprido, mas usá-lo sempre preso, é o que o meu pai diz). Quero pisar a terra vermelha dos caminhos da aldeia que viu crescer os cinco irmãos. Amália, Manuel Maria, Inácio Caetano, Rosário, Rosu, a mais velha, muito velha, sem idade, bruxa, feiticeira, louca, que fuma charutos, encolhida numa enxerga suja, a poalha da cinza a cair em cima do sari branco. Diz a minha mãe que, quando a tia Amália me olha nas fotografias, ao reparar nos olhos escuros, no cabelo preto e comprido, na pele, me acha mais indiana do que europeia. Serei? Apesar de nunca a ter conhecido, de nunca lhe ter ouvido a voz ou sentido o cheiro, de nunca a ter abraçado, sinto esta tia, que é uma ausência que não se quer, como minha.

Amália (1)

Chama-se Amália. Conta o meu pai que, quando eram pequeninos, a levava na bicicleta para a escola, percorrendo vários quilómetros de caminhos enlameados e tortuosos, debaixo das chuvas monótonas das monções. Quando cresceu, a tia Amália tornou-se professora e, como todas as outras raparigas goesas, casou com o homem que os seus pais, meus avós, escolheram para si. Xavier, um funcionário de uma fábrica qualquer, a quem acabou por amar. O meu pai, pouco dado a elogiar os seus, tem uma admiração grande por esta irmã. Apesar de pertencer a uma família brâmane, a tia Amália casou a filha com um rapaz de outra casta qualquer. Marimbou-se nas ancestrais tradições e ficou contente por a filha, médica, casar com um engenheiro trabalhador que a levou para a Arábia Saudita, onde ganham rios de dinheiro e são felizes. Esta atitude não é comum na comunidade católica goesa, muito apegada aos valores tradicionais. Quando o meu tio Rosário casou com uma mulher de uma casta inferior, a minha avó, para o castigar, mandou construir-lhe uma casa na periferia da aldeia, longe de si e do resto da família e, para sempre, o tratou como um pária. Morreu de cirrose, carcomido pelo álcool e pelo desprezo familiar. O meu pai só levou a minha mãe a Goa depois da avó Aninhas morrer. Parece que ela apanhou uma fúria grande por ele, preterindo a noiva goesa por ela escolhida (feiíssima, segundo consta), ter casado com uma portuguesa. Coitadinha da minha avó. Ficou a ganhar o meu pai que casou com a mulher mais bonita do mundo. Ainda hoje me custa a perceber como conseguiu o meu pai seduzir a minha mãe.

2006/09/27

Espelho mágico

Cabra infeliz e feia!” rosnei, pela manhã, à imagem que o espelho me mostrava. A imagem quedou-se por breves instantes, olhando-me. Depois, puxou a mão atrás e deu-me um valente estalo.

2006/09/26

Índia

Steve Mccurry

(O meu pai não usa turbantes amarelos. Não encanta serpentes com flautas mágicas. Não fuma cachimbos perfumados. Não tem uma expressão grave nos bigodes retorcidos. Não teme Shiva. Nunca se banhou nas águas terrosas do Ganges. Mas é assim, junto dele, sentido-lhe o calor e a indiferença, que adormeço.)

2006/09/25

Catitas e felizes (2)

Acontece que a bibliófila em questão falava, no seu blog, de um livro que li há pouco tempo. Ainda está em cima da mesa-de-cabeceira e vou ter dificuldade em devolvê-lo ao seu legítimo proprietário. Quem me conhece sabe que leio compulsiva. Por prazer. Por isso, me enervou a conversa da bibliófila. Eu amo os livros (assumo, neste caso, a parolice do emprego do verbo amar). Tenho por eles um amor táctil como diz a canção do Caetano Veloso. Mas também os odeio e desprezo e pretiro. Os livros são capazes de me pôr doente, triste, angustiada, irritada. Outras vezes, feliz. Porém, apesar da importância que têm na minha vida, jamais me passaria pela cabeça chamar-me, considerar-me bibliófila. Quem se assume como bibliófila como se assumisse um título ou uma comenda é tonto, palerma, acéfalo. É conversa de quem não percebe nada de livros. Um livro é mais do que um objecto que se lê e comenta. Os livros não servem para ser escalpelizados em teorias e críticas (essa tarefa compete apenas aos académicos, coitados, que se entopem em recensões, análises, comparações). Muito menos servem os livros para a gente se pavonear, em alaridos despropositados, com meia dúzia de linhas mal escritas na blogosfera. O que a tal bibliófila não sabe, nem percebe, é que, quando um livro nos toca, não se compartilha sequer.

Catitas e felizes (1)

Raramente leio blogs. Aborrece-me a democraticidade da coisa. Todos opinam, todos escrevem, todos se metem numa espécie de montra, assim como as putas de Amsterdão, mostrando qualidades, erudições, trocando galhardetes, elogios, lincando histericamente, furiosamente, espampanantemente, mostrando vidas preenchidas, interessantes, divertidas, viajadas, cosmopolitas. Uma pontinha de irreverência aqui. Outra pontinha de irreverência ali. Já está. Está feito. Como somos catitas e felizes! Como sou amarga. Sempre que caio na asneira de passear pela blogosfera enervo-me. E eu não posso enervar-me porque, como diz a minha empregada, sou uma pessoa fraca dos nervos. Noutro dia, já nem sei por que caminhos lá fui dar, topei com uma tipa que se assumia como bibliófila (aquele que ama livros). Franzi de imediato as sobrancelhas e lembrei-me duma colega que alardeava aos quatro ventos o seu amor aos livros e de como um dia queria adoptar um pretinho. Era assim mesmo que ela dizia, um pretinho, um estafermo de um pretinho, um pretinho do Biafra, com uma barriguinha de fome, um pretinho, um pretinho, um pretinho, coitadinhos do pretinhos. Coitadinha era da amiguinha, senhora doutora, meretíssima e tal, com uma beca pregueada, feita numa costureira da Amadora, que tinha a boca cheia de dentes amarelos e dizia “drógado” e “vou fazer o comer”. Adiante.

2006/09/22

Julieta dos Espíritos

Em vez de Rosita, ficou a chamar-se Julieta dos Espíritos. Tive que inventar uma mentira muito grande para os miúdos aceitarem. Queriam chamar-lhe Carocha. Eu sou lá mulher para ter uma cadela chamada Carocha... Ainda por cima ela é parecida com a Giulietta Masina. Pequenina. Bonitinha. Com dois olhos muito vivos. Lindinha.

2006/09/21

Baile no Bosque

Alguém diz com lentidão:
"Lisboa, sabes..."Eu sei.
É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eugénio de Andrade

(gosto tanto dos Trovante.)

2006/09/20

Cipralex (3)

Meti-me num táxi e rumei à primeira farmácia de serviço que encontrei. O mundo continuava a girar à minha volta, tremelicando por todos os lados, bruxuleando como a luz de um pedaço de vela. E as formigas malditas, essas não me largavam os lábios. Uma sensação, grande, de desconforto e insegurança tomava pois conta de mim. Para minha irritação, quando entrei tinha duas mulheres à minha frente. Sentei-me. A primeira pediu trifene. Bufei. Resfoleguei como os búfalos que conheceram o meu pai pequenino, lá longe, nos prados de Goa. Uma dor menstrual tem lá comparação com a ressaca provocada pela falta prolongada de um anti-depressivo? Já tive dores menstruais. Até já tive filhos sem anestesia. Não custa nada. É uma dor física que o corpo aguenta. A segunda mulher pediu palmilhas de silicone anti derrapantes para os sapatos. Aí não aguentei e reclamei que aquilo era uma farmácia de serviço, não uma para-farmácia. A farmacêutica, do outro lado do balcão, insolente, disse-me para esperar. Tive saudades, tantas, da empregada do senhor doutor, a tal Cristina, tão simpática, tão subserviente, tão senhora doutora para ali, senhora doutora para acolá. Encolhi-me. A empregada demorou imenso tempo a mostrar palmilhas de silicone à velha que estava à minha frente. Eu a morrer devagarinho. Por fim, lá se dignou a atender-me. Quando viu a minha receita, olhou-me em silêncio. Eu olhei-a de volta, prestes a desfalecer. Mal saí da farmácia meti um cipralex à boca. Passados poucos minutos o mundo parou de tremer.

Cipralex (2)

Estava eu a observar as ondulações da avenida quando entrou um homem que conheço vagamente. Trabalha num ministério qualquer. É advogado. Ou jurista. Ou coisa que o valha. Ele bem tentou esquivar-se, mas não teve como me fugir. Deu-me dois beijinhos e, claro está, passados dois ou três minutos, estava a justificar a sua presença na sala de espera de um psiquiatra. Eu ouvi e nada lhe disse. Bico calado. Era o que mais faltava explicar-lhe a minha triste depressão, a minha confrangedora frigidez, as minhas ideias suicidas, as minhas inseguranças e efabulações flatulentas. Deixei-o falar. Até porque o dito colega é uma daquelas pessoas, narcísicas, que gosta de se ouvir a si próprio. Só me aborreci quando começou a falar de trabalho e, em tom displicente, criticou determinadas orientações tomadas pela direcção do instituto público onde trabalho. Tenho a impressão de que gritei porque uma mulher gorda de olhar bovino deixou de fixar o ecran de televisão, onde a Floribella sorria imbecilmente, e me olhou de viés como quem diz “coitadita!”. Por fim, a empregada chamada Cristina, solícita, desfazendo-se em desculpas pelo atraso, chamou-me. Salvou-me daquele inferno. Entrei na consulta. Depois de meia dúzia de insignificâncias, muitos sorrisos, frases curtas, sai de lá com a abençoada receita.

2006/09/19

Cipralex (1)

O cipralex acabou-se antes do esperado. Eu deixei andar. Dois ou três dias sem tomar o dito medicamento não faz mal a ninguém. Foi o que eu pensei. Sucede que ao terceiro dia sem cipralex comecei a sentir tonturas e náuseas. Leves, levezinhas, como um manto de gaze diáfano pairando sobre mim. Ao quarto dia, para além das tonturas e das náuseas, já evidentes, comecei a sentir tremores, tremeliques e um formigueiro que se iniciava nos dedos dos pés e, coisa estranha, estranhíssima, me saía pela boca. De imediato percebi o que se passava. Era o meu corpo que se ressentia da falta do medicamento. Telefonei, de imediato, para o consultório. A empregada, que julgo chamar-se Cristina, alarmou-se. “Ó doutora, não pode estar tantos dias sem tomar a sua medicação!”, disse ela. Nota: estou-me nas tintas para o meu quase inexistente grau académico, qualquer gato-pingado da Brandoa tem uma licenciatura em direito. Porém, confesso que, nos consultórios médicos, gosto que me tratem por doutora. Sabe-me bem a deferência. Adiante. A Cristina, empregada do senhor doutor, lá fez das tripas coração e por fim, conseguiu marcar-me uma consulta para esse mesmo dia. Fui. Esperei que tempos. Espreitei a avenida, lá fora, tão desinteressante. As pessoas muito certinhas, endinheiradas, assépticas, sem pecados, nem máculas, a sair, em magotes, dos escritórios, dos bancos, das lojas, rumando aos arrabaldes chiques da cidade ou às suas casas do centro com tectos de estuque recuperados e peças de design muito caras compradas nas lojas do bairro alto e do príncipe real.

2006/09/18

À janela (4)


Bombaim, 1993 (Steve Mccurry)

À janela (3)

O pior é que, quando um homem acaba de limpar uma cozinha, esta parece estar limpa, mas, na verdade, não está. É uma ilusão. Continua suja. Sujíssima. Conspurcada. As bancadas estão cheias gordura e de migalhas. Há manchas de sujidade por baixo do tapete. Não tocou sequer no fogão. Está tudo fora do sítio. Desordenado. O chão não foi varrido, muito menos lavado. É por estas e por outras, pela inabilidade total para fazerem coisas simples, que os homens não se comparam às mulheres. As mulheres fazem tudo o que, até há pouco tempo, estava reservado aos homens. Trabalham, ganham dinheiro, têm carreiras. Depois, quando chegam a casa, fazem aquilo que se lhes continua a exigir: tomar conta da casa, orientar a empregada se a tiver, arrumar, limpar, esfregar, cuidar dos filhos, educar os filhos, vestir os filhos, fazer as compras, fazer o jantar, fazer máquinas de roupa, estender a roupa, preparar os almoços da escola, passar a ferro. Eu sei que alguns homens vão ajudando nestas tarefas. Mas o facto de se limitarem a ajudar, de não assumirem essas tarefas como suas, só demonstra a sua menoridade. Um homem pode ajudar a mulher a limpar a cozinha, mas não lava o chão, não arruma armários, não arruma a despensa; um homem pode ajudar um filho com os trabalhos de casa, mas não sabe que roupa ainda lhe serve, se é preciso comprar-lhe cuecas ou camisolas interiores. Os homens são o que são. Servem para o que servem. Para pouco mais. São uma espécie em vias de extinção. Acabarão por ser eliminados. Como os dinossauros. Mais cedo ou mais tarde, tornar-se-ão dispensáveis, descartáveis. Mesmo para o coito, se hão-de arranjar alternativas.

À janela (2)

Um homem é capaz de limpar uma cozinha sem sujar, sem molhar as mãos, o que, convenhamos, não é fácil. Pura e simplesmente, não toca nessa coisa mole, nojenta, geralmente de cor amarela, de consistência duvidosa que é o esfregão da cozinha. Limpa as bancadas com o rolo de papel ou, em alternativa, com guardanapos. O pano de limpar a loiça serve para tudo. Ás vezes até serve para limpar o chão. Se, por algum azar, alguma coisa cai no chão, não hesita em colocar estrategicamente o tapete em cima da mancha em vez de ir buscar o balde e a esfregona. Depois, gosta de enfiar toda a loiça que encontra dentro da máquina de lavar. Aquela que não consegue enfiar dentro da máquina, geralmente tachos e panelas, fica estrategicamente em cima da bancada, com um bocadinho de água no fundo. "É para amolecer", justifica-se. No final, é ela, a mulher, que acaba por lavar os tachos e as panelas. Quando termina a sua herculea tarefa, o homem faz um ar de satisfação, quase de imbecil, de quem fez um enorme favor à pobre mulher. É que a obrigação não era dele, não senhor, era dela. Ele, ser magnânimo, qual monarca absoluto, dignou-se apenas a ajudá-la naquela tarefa. Como quem dá uma esmola. No fundo, bem lá no fundo, acha que a mesma não se adequa à sua masculinidade, ao facto de ter um pénis no meio das pernas.

À janela (1)

Espreito pelos vidros da janela da sala. Estão sujos, cheios de dedadas, de marcas de mãos pequenas e gordurosas. Ainda não aprenderam que devem lavar as mãos depois das refeições. Lá fora, está escuro. Não vejo pessoas. Apenas carros. No prédio em frente, um casal novo movimenta-se numa divisão pequena. Deve ser a cozinha. Ela parece estar a lavar loiça. Ele saltita à sua volta. Assemelha-se a um gafanhoto verde-seco e pequeno, igual aos que me saltavam para as pernas quando, menina, mergulhava tardes inteiras nas searas que ficavam atrás da casa dos meus avós. Como a maior parte dos seus pares, o homem-gafanhoto do prédio em frente deve ser um incompetente, um inapto para o desempenho das tarefas domésticas. Regra geral, há que reconhecê-lo, os homens são incompetentes. Em tudo. Ou quase tudo. Até nas coisas mais simples, como, por exemplo, limpar uma cozinha.

2006/09/13

Cassia Angustifolia

Cássia. Sempre tive um certo orgulho neste meu nome. Por o associar à Santa Rita de Cássia e também àquela actriz brasileira muito gira, a Cássia Kiss. Sucede que esta semana comprei um chá, cuja composição é cem por cento folhas de cassia angustifolia. Rejubilei. Um chá com o meu nome (cássia) e com o meu desequilibrado estado espírito (angustia + folia = angustifolia). Achei-me merecedora de tal homenagem. Estive vai não vai para bater palminhas no corredor das infusões e dos outros produtos dietéticos igualmente desinteressantes. Chegada a casa quis saber que propriedades teria aquele chá, já que o pacotinho, de forma lacónica, apenas dizia que consistia num bom complemento a uma alimentação saudável e à prática regular de desporto. Imaginei, juro que imaginei, a cassia angustifolia com propriedades maravilhosas, rejuvenescedoras do espírito e do corpo. Uma espécie de elixir da juventude. Qualquer coisa entre o ginseng e a cannabis. Qual quê. Bastou uma busca pelo google para descobrir que cassia angustifolia é nome de um pequenino arbusto da Índia, cujas folhas - imagine-se ! -, são, desde a antiguidade, utilizadas para preparar infusões para quem sofre de constipação intestinal ou cujo bolo fecal se encontra há vários dias empedernido. Ou seja, para falar claro, a tal cassia angustifolia apenas tem poderes laxativos. Descobrir-se, aos trinta e muitos, que se tem nome, não de santa, mas sim de purgante é coisa odiosa.

2006/09/11

Impulso

Na livraria, enquanto procuro um livro, uma mulher, que acabou de entrar, cantarola. Não cantarola baixinho. Cantarolo alto. Esse é que é o problema. Há sítios, como as livrarias, que exigem sossego. O cantarolar da mulher deixa-me à beira de um ataque de nervos. Juro. O meu primeiro impulso é dizer-lhe “Ò minha puta do caralho, porque é que não vais comprar livros do nicholas sparks para o continente?”. Mas não. Conto até dez. Procura acalmar-me. Tivesse eu um victan à mão e já o tinha posto à boca. Olho em volta à procura de apoio. Nada. Um homem, com a ilustríssima profissão estampada no rosto, chafurda num código qualquer e um velho, de barbas brancas e traços angulosos, folheia um livro de heráldica. Aparentemente ninguém nota aquele cantarolar diabólico. Ou, pior, notando-o, ninguém se incomoda. Acanho-me. A minha irritação traduz-se apenas num olhar fixo e num “ai, ai, ai” ameaçador. A mulher dá-se conta do meu estado de espírito. Sai da livraria calmamente, sem nunca deixar de cantar, numa notória atitude de provocação. Puta. A sorte dela é que, felizmente, eu tenho um controlo extraordinário sobre os meus impulsos.

2006/09/08

Mendiga e altiva

Esta noite sonhei com deus, que é como quem diz, sonhei com o Chico Buarque. Vindo directamente do seu país, com um séquito pequenino de gente subserviente, o Chico Buarque está instalado no meu gabinete da Caixa. Eu não tiro os olhos do computador e faço um esforço enorme para ignorar a sua presença. Qual formiguinha aplicada, dedilho, com excessiva aplicação, o teclado. Ele, sentado, noutra secretária, olha-me com calma. Durante muito tempo. “Pôxa, você não pára nunca de trabalhar?”, diz, por fim. Eu, estupidamente empertigada, sem tirar os olhos do computador, respondo-lhe: “Apesar de não gostar do que faço, pagam-me para trabalhar, percebe?”. Ele sorri, aquiescendo com a cabeça. Levanta-se, depois. Deambula pelo gabinete. Bisbilhota códigos e sebentas. Olha para os andaimes do prédio em frente. Tamborila com os dedos no parapeito. Pega no livro que ando a ler e que repousa em cima da minha secretária. Um livro que, juntamente comigo, aguarda o fim do dia e o regresso a casa. Toca na capa nacarada e macia, com as letras amarelas do título que esvoaçam como borboletas agrilhoadas. “Você anda lendo esse livro?” Antes de lhe dar a resposta acordei. Acordei no preciso momento em que o Chico Buarque percebia que, atrás da minha capa ordinária de seriedade e dignidade, afinal eu era, eu sou, uma pessoa interessante. Voltei a adormecer, desejando que ele voltasse. Mas não. Escapou-se. Cansado das paredes tristes do meu gabinete, foi passear para o sonho de uma vagabunda qualquer.

(Obrigado Manelinho por, ainda que contrariado, me teres emprestado o livro do Albert Cossery. Não fora tal livro e o Chico Buarque ter-me-ia tomado por uma qualquer.)

2006/09/07

Rocky Balboa

São dois. Um pequenote negro e um gigante eslavo com mais de dois metros. O pequenote nada tem de especial. É um homem igual a tantos outros. Já o gigante faz lembrar um dos adversários do Rocky Balboa, aquele muito ruço, de cabelo curto e olhar glaciar. Aquele de calções vermelhos - no cinturão, a foice e o martelo -, mau como as cobras. Soviético, claro está. No final do combate leva um murro e fica estatelado no chão do ringue, enquanto o Stalone saltita, vitorioso ao som duma canção do James Brown. Andam por ali, nas estruturas dos andaimes, como se nada fosse. Agora mesmo, enquanto escrevo, um deles está empoleirado numa viga, a um altura correspondente a um décimo andar, a apertar porcas e parafusos. Fico com o coração nas mãos. Não me deixam trabalhar. Não tarda nada vem parar um cá abaixo. Vou-me embora. Não gosto de assistir a desgraças.

Aranhas

Da minha janela vejo o antigo edifício da rtp. Durante algum tempo esteve abandonado. Para além dos seguranças, apenas foi habitado pelo sem-abrigo que vive, rodeado de cães, num dos corredores que dá acesso a um parque de estacionamento. Consta que o edifício foi comprado. Parece que vai sem transformado num hotel zen ou coisa que o valha (hotéis zen, cafés lounge, sushi, sashimi, spas, unhas de gel, resorts, viagens temáticas, restaurantes temáticos, depilação a laser, roteiros gastronómicos, in, out, detesto a sofisticação, o pechisbeque do mundo que habito). Durante a última semana vários homens têm estado a montar os andaimes. Usam capacetes, coletes reflectores, cintos, luvas. Têm no rosto os traços do mundo. Africanos, eslavos, portugueses, paquistaneses. Com uma perícia extrema, com calma, montam peça sobre peça. Parecem aranhas. A estrutura cresce como uma teia habilmente tecida. Por vezes, enquanto esperam que outra peça chegue pelo elevador, descansam. Encostam o corpo às vigas de metal e olham para baixo. Observam, sem grande interesse, a avenida que, rotineira, se movimenta. Não sabem que alguém os observa. Acontece-me, por vezes, não conseguir tirar os olhos deles. Montar um andaime não é tarefa fácil. Exige coragem. É como andar à beira de um precipício. Invejo-os. Gostava de trabalhar com as mãos. Gostava de olhá-las e ver nelas calosidades, asperezas, notar-lhes cheiros. Sentir nelas o cansaço de um dia que termina.

2006/09/06

Rosita

(Tenho pavor de cães. Tirando isso, vai correr tudo bem.)

2006/09/04

Castidade

Pela manhã, na secretaria do colégio da Madalena, enquanto aguardava que a irmã Estela me atendesse, topei com um quadro bordado a ponto cruz: enorme, com os dez mandamentos bordados a linha dourada. Deve ter sido feito por uma das outras irmãs. A irmã Livração ou a irmã Alice. Descobri que o quarto ou o sexto mandamento é o seguinte: guardar castidade nos pensamentos e nas obras. Li-o e reli-o. Desde pequena que os meus pensamentos são tudo menos castos. Aos seis anos já eu me masturbava a pensar em mamas e em cus. Por volta dos dez roubava as revistas que o meu irmão escondia por baixo do colchão, muito pouco castas, e lia-as avidamente. Depois foi a adolescência. E depois o resto. Porém, desde há uns tempos para cá, a castidade deu conta dos meus actos e pensamentos. Isso enfurece-me. A castidade é uma coisa medonha. Só os parvos e infelizes são castos.

Valquíria (3)

Só um cão vadio que por ali andava se apercebeu daquele corpo pequeno vindo das alturas. E isso era estranho. Até para um cão que não conhece as subtilezas da vida e da morte. No ar voam pássaros, insectos, sacos de plástico, papéis velhos. Não senhoras velhas e pequenas. Ladrou o cão. Ladrou muito. Como nunca ladrara. Um ladrar furioso. Ao mesmo tempo assustado. Chamadas por aquele ladrar as pessoas começaram a sair das lojas e dos cafés. Também os transeuntes que regressavam a casa, os apressados e os muito apressados, pararam, levemente irritados com a interrupção que, por força daquele ladrar, se atravessava na sua rotina. Pouco tempo depois estava formada uma multidão pequenina perto daquele cão que perto daquele carro ladrava sem parar. Ninguém percebia a razão pela qual o bicho não se calava. Até que um homem furou a multidão. Era um homem jovem. Vestia um fato escuro e uma gravata clássica. Tinha ar de director de qualquer coisa. Devia trabalhar num dos edifícios de escritório que ficavam nas proximidades. Olhou para o cão. Apagou com a biqueira do sapato um cigarro que atirou para o chão. “O que é que esta senhora está a fazer sentada no meu carro?”. As pessoas entreolharam-se, depois olharam para o carro. Só agora davam conta de que naquele carro estava sentada uma mulher velha. Parecia dormir. O cão calou-se. Tinha cumprido a sua missão. Furou a multidão e continuou a andar pelo passeio.

2006/09/01

Valquíria (2)

A mulher caiu, sem provocar ruído, em cima de uns estofos de pele branca que amorteceram a queda. O seu corpo encaixou-se na perfeição num dos bancos do automóvel. Assim ficou: sentada, as pernas levemente abertas, um braço apoiado na porta, a cabeça caída para a frente, os olhos fechados, como se um cansaço qualquer lhe tivesse tomado conta do corpo. Quem por ali passava não se apercebera de nada. Àquela hora tardia, as ruas começavam a esvaziar-se. Alguns grupos de homens juntavam-se ao balcão dos cafés. Bebiam copos bojudos, grávidos de cerveja, e passavam os olhos pelos jornais desportivos. As poucas pessoas que se cruzavam com aquele carro não se apercebiam que lá dentro estava uma mulher morta que se acabara de atirar do décimo andar de um prédio de escritórios. Parecia apenas adormecida. Outras pessoas passavam aceleradas, com urgência de voltar a casa, e não olhavam sequer para o carro. Não que as esperasse alguém especial ou algo importante. Tinham, tão só, pressa de terminar aquele dia para que outro se iniciasse. Isso conferia-lhes um sentimento, naturalmente injustificado, de imprescindibilidade. Em vez de gente sentiam-se peças metálicas de uma engrenagem que nunca podia parar. Um dia depois de outro. Um dia igual a outro. Sempre na mesma cadência.

Valquíria (1)

Preciso de descansar, pensou a mulher. Depois, deixou-se cair. Não pensou em nada. Não pensou em ninguém. Porventura, naquele exacto momento, ninguém estaria a pensar nela. Havia assim uma justa reciprocidade na ausência de lembrança. O corpo desenhou uma espiral ao cair. Como se fosse uma pena ou uma folha. Não caiu a pique. Nem com a rapidez própria dos corpos que têm determinado peso. A mulher era velha, de estatura pequena, muito leve. Leve como uma pena. Demorou exactamente cinco segundos a chegar cá baixo. É muito tempo para um corpo. Caiu em cima de um carro estacionado à porta de uma pastelaria. Um carro refulgente de modernidade, preto, descapotável.