Ontem, no debate sobre a interrupção voluntária da gravidez, ao lado da Zita Seabra, estava sentado o meu ginecologista - dei um grito quando o descobri, tamanho, que até assustou a Julieta -, com um discurso cheio de ardis e falácias, muita demagogia à mistura, a falar das pobres, das instituições que ajudam as grávidas pobres, que é preciso ajudar as pobres a ter condições para terem os seus filhos, dar-lhes apoio, dar-lhes um berço, dar-lhes amor e carinho. Ai, as pobres, as pobres…Da próxima vez que for a uma consulta e abrir as pernas para ele me inspeccionar o interior com a luvinha de latex, não me espantarei que, em surdina, cante litanias, salmos e ladainhas.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2006/10/30
Ode à Bicha Solitária (3)
Não valerá a pena vos explicar
Que foi paixão à primeira vista.
A Lénia mandou a solidão às ortigas
E correu que nem terrorista-bombista.
Pela braguilha do garboso guarda entrou.
Roçou-lhe os colhões que eram jeitosos
Por fim, lá encontrou o buraquinho do cu
E encontrou os intestinos mal cheirosos.
Era uma casinha muito mais modesta,
Nem sinal das iguarias do imperial intestino,
Não havia restos de sushi nem de sashimi.
Só sopinhas de miso, pão duro e pepino.
Uma casinha modesta, pois então,
mas tão linda, mal cheirosa e catita,
Que a ténia Lénia gritou esganiçada
“Não há no mundo mais feliz parasita!”
Contam que o tal guarda imperial
Quando sente a ténia Lénia mexendo
Suspira e impa em êxtase profundo
Pensa estar, com uma gueixa, fodendo.
Vitória, vitória, acabou-se a história!
(Minha doce Ténia, tantos anos volvidos, peço desculpas por te ter mandado para o caralho - coisa feia, não se faz !- oferecendo-te em homenagem estas singelas palavras.)
Que foi paixão à primeira vista.
A Lénia mandou a solidão às ortigas
E correu que nem terrorista-bombista.
Pela braguilha do garboso guarda entrou.
Roçou-lhe os colhões que eram jeitosos
Por fim, lá encontrou o buraquinho do cu
E encontrou os intestinos mal cheirosos.
Era uma casinha muito mais modesta,
Nem sinal das iguarias do imperial intestino,
Não havia restos de sushi nem de sashimi.
Só sopinhas de miso, pão duro e pepino.
Uma casinha modesta, pois então,
mas tão linda, mal cheirosa e catita,
Que a ténia Lénia gritou esganiçada
“Não há no mundo mais feliz parasita!”
Contam que o tal guarda imperial
Quando sente a ténia Lénia mexendo
Suspira e impa em êxtase profundo
Pensa estar, com uma gueixa, fodendo.
Vitória, vitória, acabou-se a história!
(Minha doce Ténia, tantos anos volvidos, peço desculpas por te ter mandado para o caralho - coisa feia, não se faz !- oferecendo-te em homenagem estas singelas palavras.)
Ode à Bicha Solitária (2)
Ora, um dia estava o imperador
Na sua magnífica retrete a cagar
Quando começou a doer-lhe a barriga
Como se tivesse o rabo a rebentar.
O imperador, irado, começou a bufar
Tentava expulsar a bichinha solitária
E entre peidos e esguichos de merda,
Fazia uma força mega-extraordinária
O imperador fez força, muita força,
E com lívidos esgares de sofrimento
Conseguiu com esforço expulsar a bicha
E, assim, pôr fim ao seu padecimento.
Assim que se viu cá fora a bichinha
Olhou em seu redor e viu, espantada,
Um guarda imperial, mui formoso,
que, sério, guardava a imperial cagada.
Era lindo, lindo, lindo, lindo, lindo!
Tinha ar, não sei, de doce cagalhão
Daqueles, muito compridos e grossos,
Que temos depois de grave obstipação.
Na sua magnífica retrete a cagar
Quando começou a doer-lhe a barriga
Como se tivesse o rabo a rebentar.
O imperador, irado, começou a bufar
Tentava expulsar a bichinha solitária
E entre peidos e esguichos de merda,
Fazia uma força mega-extraordinária
O imperador fez força, muita força,
E com lívidos esgares de sofrimento
Conseguiu com esforço expulsar a bicha
E, assim, pôr fim ao seu padecimento.
Assim que se viu cá fora a bichinha
Olhou em seu redor e viu, espantada,
Um guarda imperial, mui formoso,
que, sério, guardava a imperial cagada.
Era lindo, lindo, lindo, lindo, lindo!
Tinha ar, não sei, de doce cagalhão
Daqueles, muito compridos e grossos,
Que temos depois de grave obstipação.
Ode à Bicha Solitária (1)
No comprido intestino delgado
De um velho imperador japonês
Vivia, triste, uma pequena ténia,
Que chorava que nem um albanês.
Chamava-se Lénia, o pobre verme,
Nome pedante e estrangeirado,
Que em convívios, festas e bailes
Era quase sempre muito gozado.
Vivia a pobre Lénia tão sozinha,
Sem uma alminha com que falar.
Lamuriava-se nos intestinais corredores
Com o peito – ai, ai!- sempre a soluçar.
Para se alimentar a pobre coitada
Comia restinhos de sushi e sashimi
E, durante os dias, para se distrair,
Fazia tricô e figurinhas de oragami.
As mãos da Lénia eram canhestras
Muito pouco dadas a habilidades
E, por isso, as orientais figurinhas
Saiam-lhe sem qualquer graciosidade.
De um velho imperador japonês
Vivia, triste, uma pequena ténia,
Que chorava que nem um albanês.
Chamava-se Lénia, o pobre verme,
Nome pedante e estrangeirado,
Que em convívios, festas e bailes
Era quase sempre muito gozado.
Vivia a pobre Lénia tão sozinha,
Sem uma alminha com que falar.
Lamuriava-se nos intestinais corredores
Com o peito – ai, ai!- sempre a soluçar.
Para se alimentar a pobre coitada
Comia restinhos de sushi e sashimi
E, durante os dias, para se distrair,
Fazia tricô e figurinhas de oragami.
As mãos da Lénia eram canhestras
Muito pouco dadas a habilidades
E, por isso, as orientais figurinhas
Saiam-lhe sem qualquer graciosidade.
2006/10/29
2006/10/27
Felicidade (2)
A verdade é que cada vez que morre uma das vizinhas da minha avó é ela, a minha avó Felicidade, que me volta a morrer. É o Alentejo que morre. O Alentejo dos grilos, das histórias e das cantigas, do jogo do jangro, das mulheres de lenço à cabeça, das beldroegas, das melancias comidas quentes por nós na sombra do sobreiro solitário que anuncia o moinho. Chegará um dia em que a aldeia se esvaziará das velhas e das quase-velhas. Ficarão apenas as novas e as quase-novas. As que chamam Micaelas, Fabianas e Brunas Sofias às filhas. Que desdenham os nomes das mães e das avós. Felizarda. Piedade. Liberdade. Virtuosa. Preciosa. Que se vestem de poliester nas lojas chinesas que tomaram conta da vila. Que, nas noites de verão, já não se sentam em cadeiras de palhinha, na rua, a conversar. As conversas guardadas pelas estrelas e pela lua. Ficarão, pois, as novas. E as quase-novas. As que já não sabem amassar o pão azedo nem fritar torresmos. Que não dão conta da rugosidade das laranjas e da aspereza da cal. Que não enfiam as mãos na terra. Que não cortam os dedos nas ervas que crescem nos campos. Que já não pronunciam palavras antigas. Talego. Galheta. Alcagoita.
(O Outono é estação propícia às lembranças de quem nos faz falta. A minha avó, torcida, irascível, mentirosa, magoada, faz-me falta. )
Felicidade (1)
Soube da morte de uma vizinhas da minha avó. A Idalina. Melhor dizendo, a vizinha Idalina. Era assim que toda a gente a chamava. Vizinha é uma espécie de título. Assim como há por esse mundo fora condessas, duquesas, rainhas, viscondessas, marquesas, há nas aldeias vizinhas, tias e comadres. A vizinha Idalina morava mesmo em frente dos meus avós, numa casa com arcos, quase tão feia como a nossa, pintada de salmão, com um lambrim de azulejos acastanhados e brilhantes. Estava sempre por ali. Eu saia e dava de caras com ela, sorrindo-me do outro lado da rua. Masculina. Com o cabelo encaracolado. Vestindo batas coloridas. Regando os canteiros rectangulares onde cresciam dálias cor-de-vinho. Agora, quando voltar, ela já não estará lá. Não voltará a regar as dálias, nem as cristas de galo, nem as alegrias do lar. Não pegará na mão da minha filha e não a levará mais até ao fundo do quintal, perto das capoeiras, para lhe mostrar ovinhos de codorniz.
2006/10/25
Goa
Pátria Incerta, Inês Gonçalves e Vasco Pimentel
(Estranho, é muito estranho, olhar-se um lugar onde nunca se esteve e senti-lo como nosso. Só tenho pena de não ter conseguido arrastar o meu pai, o meu pai, católico e brâmane, para assistir ao documentário.)
2006/10/24
Pingo Doce (2)
Aborrece-me a anã. Tão pequena, impingindo a sua miséria, disfarçada de outra coisa qualquer, aos outros. Os outros olhando-a com surpresa e um certo nojo. Fitando-a, vasculhando bolsos à procura da esmola. Fujo-lhe. Volto a encontrá-la perto dos iogurtes e da padaria. Sempre interpelando alguém, vendendo rifas, escrevendo qualquer coisa nos papelinhos amarelos, recebendo moedas de um euro em troca. A Madalena alheia a tudo, sentada no carrinho, mexe numa árvore com cheiro de morango que será plantada no carro para disfarçar o cheiro dos chichis que a cadela insiste em fazer em cima da cadeira do João. Por fim, no corredor das cervejas, acontece o que temo. Sou abordada pela tenebrosa anã. Torta, tortinha, muito feia, sem dentes, mexendo-se com dificuldade, caminha na minha direcção, sorrindo-me. Olho-a, tentando perceber o que me diz. Os seus lábios movem-se, é certo. Um sorriso grotesco está colado ao seu rosto. Não a ouço. De repente o mundo emudece. Com calma, com muita calma, tiro a Madalena do carrinho, que vem cheio e pesado, e lanço-o na sua direcção. Ela, a anã, afunda-se no soalho encerado. Ninguém dá pela sua falta. Em sítio nenhum. Olho em redor. Nem um resquício ficou para a posteridade. Nem sequer um papelinho amarelo. Meto quatro garrafas de cerveja sem álcool no carrinho e respiro de alívio.
Pingo Doce (1)
Na peixaria, enquanto espero que a senhora de avental e da touca arranje as postas de safio, vislumbro um vulto pequeno que se aproxima do homem que está ao meu lado. É uma anã. Ou politicamente falando, uma pessoa de estatura pequena. Traz um bloco de folhinhas amarelas nas mãos anquilosadas. Escuto. “ ... e depois lembrei-me, em vez de pedir esmola, faço umas rifas e …”, ouço-a dizer com voz de falsete. Olho-a de viés. Toda a gente a olha de viés. O que nela incomoda não é a pequenez, nem sequer a feiura, que é muita. O que chateia, e surpreende, é o tom que põe na voz. Faz lembrar um fantoche ou o boneco de um ventríloquo. Tem a lengalenga decorada. Sou interrompida pela minha filha que, aborrecida, me pergunta porque é que levo safio em vez de dourada. Gosto mais de doirada, diz ela, que se deixa encantar por tudo o que brilha, até pelos nomes dos peixes.
2006/10/23
Molho de soja
Releio-me. Percebo que ando um bocado obcecada com esta merda. Credo. Já enjoa tantos álgidos lamentos. Vou passar outra tarde de náuseas, a arrotar a salmão cru e molho de soja. Que nojo.
Supérfluo
No quarto, cortei uma franja rala na testa. Saiu torta. Fiquei me examinando no fundo amarelado do espelho. E se casasse? Seria uma forma de me libertar, mas no lugar da avó, ficaria o marido. Teria então de me livrar dele. A não ser que o amasse. Mas era muito raro os dois combinarem em tudo, advertira a minha avó. Nesse em tudo estava o sexo. “Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que cumprir nossas tarefas, o resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora, ninguém vai morrer por isso.”
O Espartilho, Lygia Fagundes Telles
(Havia de ter tido uma avó assim, que me explicasse, sem rodeios, o meu papel no casamento e na cama. Tinha evitado alguns dos pregos que tenho enterrados na carne. Isto de uma mulher achar-se no direito de ter prazer no casamento e na cama é uma tolice, uma modernice, uma palermice. Só traz chatices. Melhor abrir as pernas, arfar ligeiramente, receber o esperma conjugal, lavar os despojos, dar um beijinho de boa noite, virar para o lado, adormecer. Melhor viver no apartamento-prisão-labirinto, distribuindo sorrisos, fazendo sopas, lavando copos e pratos, estendendo cuecas, meias, lençóis, varrendo os cantos, sem nunca olhar para as grades que estão em toda a parte. Melhor ser uma deusa morta do que uma mulher viva.)
2006/10/20
Chungking Express
2006/10/19
Mulher-paquiderme
Ao lado da fêmea-tigre, que debica um pudim de ovos, um grupo de três mulheres fala do novo crucifixo do santo padre e das actividades da igreja. Conheço-as bem. São amigas da minha cunhada que acredita em deus com devoção e ganhará, por isso, um lugar no céu. Uma delas faz o bigode todos os dias e tem uma voz de trovão que assusta qualquer mortal. Outra é pequenina e está, hoje, especialmente esfuziante por a filha namorar com o filho de uma alta figura do Estado. A terceira chama-se Almerinda e é robusta como um paquiderme. Tem um ar campestre. Gosto muito dela e do marido, míope e excessivamente feio. Só que hoje a Almerinda traz sandálias que lhe deixam a descoberto os dedos dos pés. São uns pés gordos, inimagináveis de tão feios que são. Há uma certa obscenidade em mostrá-los. São pés pantagruélicos, gargântuescos. Tem uns dedos muito gordos, cheiinhos de carne. As unhas encaracolam, enterrando-se na carne. A unha do dedo pequenino, em vez de ser quase invisível, como é hábito, é gigantesca. Mostra-se, triangular, por cima de um bocado de carne. Olho para aqueles pés e esqueço as mamas da fêmea-tigre. Os pés da Almerinda, a mulher-paquiderme, arrumam com elas a um canto.
Fêmea-tigre
A fêmea-tigre chegou. Vem com o marido comprador de arte. Hoje usa uns calções de flanela grossa e branca. Muito curtos, com uns berloques dourados, que estão ali a fazer sei lá o quê. Como é costume tem uns saltos de dez centímetros. Desta vez imitam pele de leopardo e têm umas plumas pretas esvoaçantes. Usa uma camisa de seda verde, muito brilhante, com um decote obsceno. Tem as mamas à mostra. Literalmente. A única coisa que não se vê é o biquinho do mamilo. Não se vê, mas adivinha-se, pequenino, à espera de ser devidamente mordiscado pelo marido comprador de arte. Não consigo tirar os olhos daquelas mamas. Não que as mamas em si mesmo me interessem. A frigidez., a minha, já está num nível em que nada me estimula, o que é triste, sem ser angustiante, porque, em pequena, bastava-me olhar para a maya desnuda para empalidecer de êxtase. Agora é uma desgraça. O que me perturba é a exposição pública daquelas mamas numa festa de família. É anti-social. O meu filho está mesmo ali perto. E se o miúdo topa com aquele mamalhame acéfalo, mas magnifico? Pode ficar traumatizado e pensar que as mulheres são todas assim. Ainda bem que ele está a ver a bola.
2006/10/17
Expiação
Durmo mal. Acordo muitas vezes durante a noite. Às vezes como línguas de veado e quadradinhos de chocolate com avelãs inteiras que compro, muito baratos, no lidl. Espio os animais da casa. A cadela, os peixes, o rato russo, os bichinhos de conta que ela traz do jardim e que agonizam em tacinhas e caixinhas de fósforos. Outras vezes fumo. Gosto de fumar. Nunca vou aos quartos dos miúdos. Esqueço-me que lhes velar o sono mais tardio. Passo no corredor como um espectro. Acho que nem toco com os pés no chão. O meu corpo é evanescente, pouco denso. Sou capaz de atravessar paredes, voar através do tempo, falar com os mortos, dar risadinhas assustadoras. Sonho muito. Sempre sonhei. Sou feita de imagens sonhadas: árvores de folhas prateadas, jardins coloniais plantados no cimo da António Augusto de Aguiar, um leão passeando, calmo, pelo Parque Eduardo Sétimo, a Baixa labiríntica, um homem chinês, pequeno como eu, sorrindo ao abrir a porta. Antes de adormecer a mesma imagem toma conta da noite. São dois pulsos cortadas. Um corte ligeiro em cada um deles. Uma lágrima de sangue escorre lentamente e ensopa um tapete felpudo cor de café com leite. Não é uma imagem terrível ou angustiante. Não me assusta nem me preocupa. É uma imagem como outra qualquer. Faz lembrar as chagas de um cristo padecente, mas sereno.
2006/10/16
Unhas de porco
Passei por um talho onde, numa cartolina amarela, se anunciava a venda de unhas de porco a 0,48 €. Fiquei maravilhada a olhar para aquilo. Fascinam-me as coisas pequeninas que se podem comer de um animal: unhas, pezinhos, bofe, rins, coração, orelha, focinho, testículos. Nesse preciso instante fez-se luz na minha cabeça e percebi que o meu sonho, afinal, tem uma leitura política. Já sei quem é que mandou o telegrama ao Paulo Portas. Só não percebo porque vem escrito em espanhol. Deve ser para disfarçar.
Volta, mi amor
Vivo numa espécie de residência universitária, cheia de gente. É uma casa de vários andares, escura e desarrumada. De repente tocam à campainha. Alguém abre a porta. É o correio. Trazem um telegrama. Vindos do andar de cima, descendo uma escada em caracol, apressados, chegam dois homens. Ambos estão nus e descalços. Apenas usam uns slips brancos. O primeiro é o Paulo Portas que corre para a porta. O segundo é o Nobre Guedes e traz um ar circunspecto. O Paulo Portas apanha o telegrama e, sofregamente, lê em voz alta. “Volta, mi amor”. Emocionado, vira-se para o Nobre Guedes e diz-lhe “Ele quer que eu volte”. O outro não lhe responde. Voltam a subir as escadas em caracol. Devem ir falar das suas vidas. O amor é uma coisa complicada. Pode-se amar muita gente, ao mesmo tempo, de maneiras diferentes. Entretanto, saio com a directora da residência que me levará à cidade. É a Maria João Avilez. Guia um Nissan Micra preto, veste um vison branco e tem um ar pouco simpático. (Andam baralhados, os meus sonhos. Deste não tiro nada.)
2006/10/13
Corpo e alma
A Rita Ferro Rodrigues, na sua coluna do Expresso, falou deste meu blog há umas semanas atrás. Achei despropositada a comparação com o meu pipi e exagerada a alusão à minha frigidez angustiante. A minha frigidez não é angustiante, é apenas inconveniente, assim como uma visita que não se espera e se alonga em conversas aborrecidas. Porém, confesso, gostei de ler o que escreveu sobre as minhas as miudezas. No fundo, bem lá no fundo, foram os meus quinze minutos de glória. Quando soube corri a telefonar à mana. Mais ninguém. Hoje, no quiosque da D. Bia, ao comprar o jornal, percebi que a Rita é a capa da Caras desta semana. Ao que parece está feliz ao lado do seu novo namorado. Se fosse antes do elogio eu tê-la-ia insultado mentalmente. É óbvio. É que lhe tenho embirração antiga, o que não é muito grave porque eu desdenho quase toda a gente. Apraz-me vê-la, contrariada, apresentar o programa da manhã, ao lado da Fátima Lopes e do careca que tem um defeito na fala. Fico deliciada quando a vejo falar com o Cláudio Ramos e a Maya, ambos cagalhões antropomórficos (em rigor, não chegam a ser cagalhões porque até os cagalhões têm alguma dignidade), sobre os outros cagalhões que se passeiam nos folhetins cor-de-rosa. Acontece que a minha fonte de insultos, sempre torrencial e inesgotável, para meu próprio espanto, secou naquele preciso momento. Não a consegui insultar. Olhei para a tal revista e achei a Rita bonita e radiosa. Culpei os malandros dos fotógrafos que não a deixam em paz. Estive quase tentada a comprar a Caras para me compadecer com os seus desgostos de amor. Enfim… A verdade é que uma pessoa vende, corpo e alma, por meia dúzia de palavras agradáveis. É uma desgraça.
2006/10/12
Realeza
A minha filha amuou porque descobriu que em Espanha há um rei e uma rainha. Agora quer ser espanhola (sempre disse que esta miúda era esperta). Sem acreditar muito no que dizia, expliquei-lhe que era melhor ter um presidente escolhido por nós. Esteve-se nas tintas para a liberdade e para o direito de voto. Inchei de orgulho. O que é isso comparado com um rei coberto por um manto de arminho e uma coroa cravejada de pedras preciosas acompanhado por uma rainha de vestido comprido, bordado a fio de ouro, com o cabelo entrançado com pérolas?
2006/10/11
As maminhas da Raimunda
Na sua crónica semanal sobre cinema, o Paulo Portas fala do último filme do Almodovar. Às tantas, já nem sei a que propósito, descreve um dos planos mais marcantes do filme. Raimunda, depois de um dia de cansaço, lava a loiça ou cozinha (já não sei) no seu pequeno apartamento de arrabalde longínquo. O plano, meia dúzia de segundos, é filmado de cima. O cineasta dá-nos uma visão do mundo que nunca temos. É o olhar de deus. Só deus lá de cima nos vê assim. O Paulo Portas remata o seu parágrafo qualificando as mamas da Penélope Cruz, que se mostram magnificas num decote generoso, como “maminhas peninsulares”. Nem mais. Ora, o plano em questão está cheio de um erotismo doméstico, intenso, que dificilmente se encontra no dia-a-dia. Ali está um peito, encoberto, que treme, que se imagina com o cheiro de um dia de trabalho recozido na pele. É um plano sensual para um homem que o observe. Mas também é muito sensual para uma mulher. Só um homossexual conservador e reprimido, que branqueia a dentadura e usa patilhas à marialva, totalmente imune ao que uma mulher tem de mais bonito, as mamas, poderia descrever, de forma tão frouxa e tíbia, as da Penélope Cruz.
2006/10/10
Cesariny (2)
Foi então que reparei no quadro. Um Cesariny, enorme e amarelo. O marido da prima, perante o meu interesse no quadro, perguntou-me se gostava. Antes que pudesse dizer-lhe que não explicou-me que a compra daquele quadro tinha sido um belo investimento. Esperava que o mesmo valorizasse assim que o pintor morresse. Olhei para o quadro preso naquela triste realidade. Lembrei-me da entrevista lida pela manhã, o Cesariny tão velho e saudavelmente louco, a falar dos urinóis de Lisboa, dos homens que amou e dos outros com quem se deitou, a falar, com desassombro, da vida e do pode haver dentro dela. Lembrei-me de tudo isto e calei o chorrilho de disparates que esteve prestes a sair-me da boca. A tua mulher é boazona, mas burra que nem um calhau e tu és um prostituto, um chulo, um badameco armado aos cucos, um cobridor de fêmea que se veste de tigre e usa unhas de gel. Havia ela de ser de Camarate, da Brandoa ou da Cova da Piedade, tesa e retesa, a ver se te casavas com ela. Era o casavas. Quando ele se calou fugi para a cozinha. Fumei vários cigarros de seguida. E deixei-me ficar a falar com a ucraniana de olhos glaciares.
Cesariny (1)
Para cumprir uma obrigação familiar, um destes dias fui a um jantar de aniversário de uma prima por afinidade que vive no meio da cidade, num apartamento de luxo. A aniversariante, que tem umas mamas grandes e uma peida apetecível (é o que dizem, que eu de peidas percebo pouco), usava uns sapatos de verniz pretos, com saltos muito altos, e uma camisa de seda a imitar pele de tigre. É simpática, a prima. Aliás, é uma daquelas pessoas em quem a gente pensa e diz fulana é simpática e não lhe ocorre mais nada. Mas sabe fazer-se de senhora crescida. Sabe dar ordens à empregada, uma ucraniana, de pele muito clara e olhos frios. Sabe servir entradas, pratos cheios de gambas, nozes, lagosta, sobremesas requintadas, estrangeiras, naturalmente, que o que é nacional é mau, comezinho, deve evitar-se a todo o custo. No final, agradeceu a prima aos convidados com uma taça champanhe francês, aquele conhecido, Moet et Chandon ou lá como é que é. Fez um discurso emocionado. Bati palmas. Os amigos da prima também. Eles de camisa azul e calças de sarja creme vincadas, elas de vestido de alças, sandálias de cunha, beberricando champanhe e sacudindo madeixas loiras, afectadas, falando nasaladamente, metendo ditongos em palavras que os não têm.
2006/10/09
Tóquio
Estive a pensar. Outra prova irrefutável da menoridade dos homens é o facto de gostarem dos Led Zpelin. Todos os homens gostam dos Led Zplin. A última vez que fui ao Tóquio, há muito tempo, o Manuel, que até tenho em boa consideração, dançou entusiasticamente um solo de guitarra da dita banda que durou para aí dez minutos. Nem queria acreditar. Não conheço uma única mulher que goste dos Led Zpelin. Uma única. Prova evidente da superioridade vaginal.
Encarnação
Casas altas, estreitas, geminadas, pintadas de cor, amarelo canário, amarelo torrado, grená, verde água, azul petróleo, cor-de-laranja, uma das casas tem uma varanda cheia de lixo, entre o amontoado de coisas vejo um guarda sol de ramagens largas, desbotado, as granjinhas já amarelecidas e o cabo e as varetas sarapintados de manchas de ferrugem. Lá em baixo um rio nevoento corre, agitado, águas turvas, geladas, roçagam o musgo das margens, por cima do rio, a atravessá-lo, uma ponte romana, alta, muito alta, de pedras esboroadas pelo tempo. Eu a olhar para as casas e para o rio, a achá-lo tão bonito, na sua imensa escuridão, a perceber, pela estranha quietude que por ali paira, que estou completamente só.
(Os sonhos, os que fazem as minhas noites, adormecem dentro de mim. Também nunca me abandonam. Entopem-me as veias.)
(Os sonhos, os que fazem as minhas noites, adormecem dentro de mim. Também nunca me abandonam. Entopem-me as veias.)
Amiga
Li, algures, que, em 20% dos casos, a depressão se torna numa doença crónica sem remissão. Ao contrário do que o doutor LM diz, a minha depressão não é reactiva. Engana-se redondamente o doutor LM que fuma charuto e está sempre excessivamente bronzeado. A minha depressão é crónica. A tristeza em mim é um estado latente. Conheço-a desde sempre. Cresceu comigo. É uma espécie de minha melhor amiga. Cuja presença me incomoda. Que se impõe nos meus dias. De vez em quando, a amiga-tristeza hiberna dentro do meu corpo durante longos períodos. Acomoda-se num canto qualquer e deixa-se adormecer, enroscada. Oiço-lhe o ressonar, brando e húmido, de animal manso. Não me incomoda, mas sei que está lá. Nesses momentos quase me sinto normal (seja lá o que isso for, não me quero normal, nunca quis, sou demasiado maníaca, megalómana, para me satisfazer com a normalidade, associo a normalidade à mediania e eu, de longe, prefiro ser medíocre a ser mediana). Outras vezes, a amiga-tristeza desperta e, como um animal acicatado, transforma-se em fúria, ira e dor. É uma dor invisível, de tal forma intensa que se sobrepõe a tudo e a todos. Como se mata uma amiga, a melhor, que vive dentro de nós? A resposta é fácil, aceitável até. Basta que se retire a carga dramática, trôpega de lamentos, urros aflitos e brados lacrimosos.
2006/10/04
2006/10/03
Alma
Aconteceu o que temia há muito. Fiquei com o salto preso na calçada. Corri, coxeando, ao sapateiro. “Só lhos posso entregar amanhã. É que a menina partiu a alma do sapato!”, disse ele, arregalando-me os olhos. Encolhi-me. Envergonhei-me. Coisa feia de se partir. A alma. Não se parte o coração nem a alma a ninguém. Muito menos a uns sapatos pretos clássicos, nossos amigos, tão disponíveis, que ficam bem com qualquer trapo.
2006/10/02
Frio
Está frio. Tirito. Apetece-me comer marmelos cozidos com pau de canela. A tia Dé, que tem a solidão aberta nos olhos e nos dedos, fá-los bem. Se um dia me morre a tia, a mãe ou o pai morro também. Mato-me que não me quero por cá sem progenitores. Sou mais filha que mãe. Quero ser outra vez menina para ver as trovoadas da janela da cozinha da minha avó. O nariz pingão esborrachado no vidro. A imaginar deus como um mago gigante, fero, vestido de cetim recamado de estrelas e cometas, a lançar feitiços cá para baixo. Agora sou crescida. Sou uma mulher crescida e gelada. Vou para casa enrolar-me em folhas de papel de jornal. Depois acendo um fósforo. Pode ser que aqueça.
Espelho mágico
“Quero trocar de corpo”, digo à imagem que o espelho reflecte. “Este não me serve. Está morto. Estou farta de velar o meu clítoris e a minha vagina." A imagem olha-me enquanto repito gestos matinais. Lavar o rosto. Esfregar os dentes. Espalhar o creme hidratante. Depois a base compacta que esconde poros, borbulhas, imperfeições, manchas. Volto a olhar a imagem do espelho. Tem os olhos rasos de água. Coitada. Um mar de escuridão dentro deles. Estende os braços. Parece querer abraçar-me. Borrifo-me de lavanda. Fujo-lhe. Apago a luz. Era o que mais faltava. Detesto cenas de comiseração logo pela manhã.