O motorista, pequenote, de bigode farto, falou-me do cretone picasso, padrão muito na moda nos anos cinquenta. Os reposteiros de todas as casas lisboetas eram forradas a cretone picasso, assegurou-me. Depois, cantou o cu, cu, cu, cu, ru, paloma. Eu, no fim de ele se calar, a dizer-lhe que só conhecia aquela canção cantada pelo Caetano Veloso. Ele a dizer qual Caetano Veloso, qual carapuça, menina, esta canção é do Pedro Henrique, do Pedro Henrique que era uma vedeta do cinema mexicano! Depois cantou outra canção. Quando cheguei ao meu destino, despedi-me, entregando-lhe uma nota que me pareceu suja, menor, indigna. Deixei o taxista mariachi seguir, rodar pela cidade dos bairros, dos jardins, dos velhos que alimentam pombos e jogam às cartas, a cidade das gargalhadas nos meninos de panamá e da prostituta loira que paira na esquina de uma rua da baixa, uma rua cujo nome não recordo, mas que sempre prende o meu olhar. Invejei, naquele momento, todos as mulheres que, depois de mim, entrariam no carro do taxista mariachi e para as quais ele cantaria. Fiquei parada no meio da rua a pensar em cretone picasso e no tal Pedro Henrique. Nem percebi que o sol, tão bonito, esmaecia sobre as paredes dos prédios de Campo de Ourique.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2006/11/30
P-U-T-A
O João entra no quarto da irmã com o dicionário na mão. “A Julieta comeu a capa do meu dicionário!” Olho horrorizada para as suas mãos. “Mãe, sabes que o dicionário tem asneiras?” diz enquanto me entrega o livro para as mãos e trepa para a cama da Madalena. Indigno-me. “Tem, tem!”, insiste o menino maravilha. “Vai lá ao f e procura filho da p-u-t-a.” Procuro. Lá está. Filho da puta, escarrapachado, escrito com todas as letras no dicionário do meu filho. Ele cabriola. Ri-se às gargalhadas perante a minha estupefacção. A irmã aos gritos, já lacrimosa, pergunta-me o que é um filho da puta. Mal adormecem, corro a resgatar o dicionário. Investigo. O dicionário da porto editora, o pequenino, azul, o tal que no meu tempo apenas tinha a palavra cabrão (definida como bode grande), tem, pelo menos, as seguintes palavras: merda, filho da puta, cona, caralho, cabrão, foda-se, fodido e foder. Verdade, verdadinha. Ao olhar o dicionário do João, meio comido pela Juju, a cadela comedora de palavras, percebo que os miúdos de hoje não podiam ser muito diferentes do que são: descarados. Tem piada enquanto têm 8, 9, 10 anos. Aos 15, 16, 17 deixam de ser descarados para se tornarem simplesmente ordinários. Agora há coisas que não entendo: Porque é que cona e caralho estão no dicionário e colhão não? Não está. Procurei e não estava.
2006/11/29
You like me!
Chegando o ano ao fim começam as eleições na blogosfera. Com categorias infindáveis e ar de coisa séria. O que mais irrita nesta palhaçada –, afirmo-o, porventura, de forma injusta - são os agradecimentos dos nomeados. Cada vez que dou de caras com um tipo a agradecer uma nomeação lembro-me da medíocre Sally Field quando ganhou o óscar de melhor actriz. Chorando, com aquele rosto muito redondinho de americana boazinha, a ranhoca a pingar da narigona, as mãos cruzadas sobre o peito, soluçava qualquer coisa do género “Now, I know you like me!”. E repetia aquilo até à exaustão. Foi preciso arrancá-la do palco. Aquela cena deplorável marcou-me para a vida. Ora, os escrevinhadores de blogs que agradecem nomeações são assim como a sally feild: bué da patéticos. (Sei que bué não é vocábulo indicado para quem, como eu, tem a assumida pretensão de bem escrever. Mas os meus filhos usam bué a palavra bué. Gosto bué de os ouvir dizer bué. Com eles aprendi a gostar de tal palavra. É gira. Só que os miúdos não gostam de ma ouvir. Irritam-se e dizem que sou bué da velha para a usar. Resta-me, por isso, escrevê-la.)
Patchouli
Entro na loja para comprar meias. É uma daquelas lojas chinesas que, como pragas de insectos, invadiram as cidades e as vilas. Um cheiro enjoativo, a patchouli, paira no ar. Atrás do balcão uma brasileira, com a cara marcada de bexigas, olha para as unhas. Tem umas unhas de gel. Umas garras enormes, pesadas, rectangulares, pintadas com brilhantezinhos prateados. Tem a abóbada celeste, vista da Brandoa ou de Camarate, nas unhas. A pavorosa imobilidade do cabelo liso mostra que foi, há pouco, desfrisado. Pergunto-lhe onde estão as meias. Aponta-me para um escaparate que está ali perto e continua a olhar para as unhas. Procuro meias de licra, as mais baratas. Quero aquelas do pacotinho azul que custam só 1 euro cada. Vou espiando a brasileira do balcão. Entre quinquilharia vária, bijuteria barata, colares, braceletes, piercings, brincos, grandes, pequenos, continua estática, olhando as mãos. Finjo escolher elásticos para o cabelo. Aproximo-me do balcão. Percebo então que a brasileira está assim, imóvel, concentrada, por estar a escutar rádio. É uma daquelas rádios religiosas. Uma voz, com sotaque indefinido, fala do diabo e de uma igreja em Camarate. Depois anuncia uma lição do apóstolo Jorge Tadeu sobre autoridade e submissão. O tal apóstolo Jorge Tadeu, na sua lição, volta a falar do diabo. Diz que o diabo é o maior crente. Ui, que medo! Escolho dois elásticos pretos e peço à brasileira a minha conta. Ela desperta do seu torpor com um “oi?”. Pago-lhe e deixo-a em paz, quieta, a ouvir falar de deus e do diabo. Ao sair da loja levo as mãos ao nariz. Tresandam a patchouli. Percebo então que o diabo não cheira a enxofre. Cheira a patchouli e anda a monte.
Arrepio
Depois de um período de nojo, o Pedro Santana Lopes voltou. Era esperado, e querido, o seu regresso. A verdade é que, desde os que o idolatram (que os há) até aos que o desprezam, o país não conseguia passar sem ele. Goste-se ou não, um facto é inegável: o Pedro Santana Lopes dá à nossa vida política uma vivacidade que mais nenhum político é capaz de dar. Segunda-feira, ele fala na TSF. Ouvi-lo pela manhã, muito cedo, disfarçando a voz de bagaço que a noite lhe trouxe, comentar acintosamente, cinicamente os seus pares utilizando frases cheiinhas de adjectivos assertivos – inconcebível, inadmissível – é maravilhoso. Até dá arrepios. Eu desperto logo para a vida.
Cesariny
Não fossem semi analfabetos, pouco dados à leitura de jornais (ela gosta mais da caras e ele tem um quarto com uma playstation onde vive virtualmente dentro dos jogos) e os primos já teriam rejubilado com a morte do Cesariny. Agora, o horrível quadro amarelo que têm pendurado na parede da sala vai valorizar ainda mais. Upa. Upa. É tão fino investir em arte.
2006/11/24
A1
Sentia o trepidar do carro cada vez que um camião passava. E a chuva era assim como a de hoje. Indomável, baça, furiosa. Sentada no carro, contava os minutos no relógio. Comi uma barra de chocolate que se desfez e deixou nódoas esboroadas na saia de fazenda castanha. Os camiões lá fora continuaram a passar como elefantes durante muito tempo. Perguntava-me a mim própria como pudera o pneu rebentar, assim, num final de tarde de Inverno, no meio de uma tempestade, na auto-estrada do norte, longe de tudo, de todos, com a chuva a fustigar por todos os lados. Vi-me só e a solidão, pela primeira vez na minha vida, assim tão concreta, com corpo de chuva, assustou-me. Até que olhei pelo espelho retrovisor e te vi. Risonho como um animal manso, enfiado numa gabardina verde. Naquele instante, naquele preciso instante, gostei tanto de ti.
2006/11/23
2006/11/22
Compal
Às vezes uma pessoa não se pode calar. Deve chamar a atenção para os disparates que se fazem e se dizem. Assim sendo: o compal de manga não tem direito a integrar a categoria dos clássicos. Nesta categoria só podem estar, como estão, o compal de pêra, o compal de alperce e o compal de pêssego. Também poderia estar o compal de tuti-fruti. Não está porque, é sabido, o tuti-fruti é sabor fora de moda. O que está na moda agora são os sumos de frutos vermelhos e de maça bravo esmolfe. Adiante. O compal de manga, reafirmo, não é clássico. Não me lembro de o beber em miúda. É óbvio que devia estar na categoria dos compais fresh.
Castanheira do Ribatejo
No rádio do carro, enquanto fixo as olheiras no espelho retrovisor, ouço um excerto de uma conversa qualquer entre o Eduardo Lourenço e o Pedro Mexia. Falam de literatura, do Vitorino Nemésio, do Camilo e do Eça. O Pedro Mexia é um chato armado em não chato, penso, enquanto ele afirma, assertivo, que o Camilo é maior do que o Eça. Não aguento ouvi-lo. Não teve sorte nenhuma com a voz que Deus lhe deu. É uma voz aborrecida que cicia bolores e outras coisas húmidas. Desligo o rádio e saio para a estação apesar do meu comboio, o que vem de Castanheira do Ribatejo, ainda tardar. Fico sem perceber porque é o Camilo maior que o Eça. Não faz mal. Há tantas coisas que eu não percebo.
Senhor dos Paços
Mal entrei a Rafaela, que colocou uma banda gástrica, e suspira amiúde, disse que adorava a cor da minha camisola. Adoro, doutora, adoro, adoro, adoro! Essa cor faz-me lembrar o Senhor dos Paços! disse efusiva. Ena, pensei eu, o Senhor dos Paços! Depois, do seu canto, cheio de vasos de violetas e cartões com ursinhos, florzinhas e outras coisas fofinhas, pestanejou, arremelgando-me uns olhos pintados de verde marinho. Não conhecesse eu a sua história, que mete uma filha de dez anos, infidelidades nortenhas, uma separação e uma reconciliação com um corno manso, e juraria que a Rafaela se estava a meter comigo. Só um bocadinho. Um bocadinho de nada. Pode meter-se à vontade. Não faz nada o meu tipo. É mastodôntica. Eu, se gostasse de mulheres, apreciá-las-ia pequeninas, assim como às sardinhas.
2006/11/20
Maria José
A catequista do João chama-se Maria José. É um nome insuportavelmente óbvio para uma catequista. Podia chamar-se Salomé, Betsabé, Rute, qualquer coisa assim. Deslavada, usa o cabelo pegado à cabeça e tem sempre, como é próprio da sua idade, meia dúzia de borbulhas a sarapintar-lhe o rosto. Cada vez que me fala perscruta em mim uma pecadora, uma ímpia, uma descrente. Fala-me com calma, cerrando os olhos lentamente, num langor de piedade que me agonia. Coitada da Maria José, tão cheia de fé, tão paciente, solícita, instruindo as criaturinhas pequenas para a primeira comunhão, ensinando-lhes o perdão, o pai-nosso, as aves-marias, a confissão, o arrependimento. Coitada de mim que fico com vontade de a vergastar, insultar, ofender para a fazer perder a postura seráfica de virgem num altar.
2006/11/19
Leontina
"Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar. Vou agora contar tudo especialmente pra senhora que se não pode ajudar pelo menos não fica me atormentando como fazem os outros. É que eu não sou mesmo essa uma que toda gente diz. O jornal me chama de assassina ladrona e tem um que até deu o meu retrato dizendo que eu era a Messalina da boca-do-lixo. Perguntei pro seu Armando o que era Messalina e ele respondeu que essa foi uma mulher muito à-toa. E meus olhos que já não têm lágrimas de tanto que tenho chorado ainda choraram mais".
Lygia Fagundes Telles, 1978
Lygia Fagundes Telles, 1978
2006/11/17
Amadora
Volto a encontrar a anã das rifas. Na estação de comboios. Já não anda a fazer de coitadinha. Desenvolta, mancando, com uns sapatos de sola grossa que lhe dão mais meia dúzia de centímetros, caminha na minha direcção. Fuma uma cigarrada. O olhar já não é de comiseração. Não pede piedade, nem esmola. Passa junto a mim. Fala sozinha. A voz também não é igual. É uma voz demoníaca, malévola, de gnomo mau. Ri-se em ih, ih, ih, em vez de ah, ah, ah. Esta anã, imagino, deve ser dada a magias negras, a vícios, a cambalachos, expedientes vários. Se calhar é, até, o fetiche sexual de alguém. Já estou a vê-la a gastar o dinheiro das rifas para comprar chicotes e fatos de cabedal. Volto a olhá-la. Atira com a beata para o chão e, muito tortinha, tal qual um caranguejinho perneta, entra no comboio que vai para a Amadora.
2006/11/16
Amarelo-torrado
Sempre quis ter um vestido amarelo-torrado. Há anos que procuro um vestido dessa cor. O amarelo-torrado é paixão de infância. Há dias vi um numa montra de água e noite. Vou ter de o comprar. É superior às minhas forças. Ainda por cima é barato. Mas tenho uma dúvida. Que tipo de sapatos vou usar com um vestido amarelo-torrado?
(Eu sei que tamanha frivolidade deveria ser evitada hoje, dia mundial da tolerância. Fosse eu uma blogger consciente, a sério, e colocaria hoje aqui uma foto do Nelson Mandela ou então alardeava aos quatro ventos a conferência que vai ter lugar no IPJ com um tipo marroquino que se debruça sobre estas questões. Mas não sou uma blogger responsável e consciente. Como toda a gente, ou quase toda a gente, estou-me a borrifar para a miséria dos outros povos. O que eu quero, com urgência e sofreguidão, num mundo de desigualdades e injustiça, é um vestido amarelo-torrado que satisfaça os meus caprichos de infância.)
2006/11/15
Hipólita
Gostava que a Hillary Clinton fosse presidente dos EUA (sê-lo-á?). Gostava que a Ségolène Royal ganhasse em França. Gostava que a Manuela Ferreira Leite fosse primeira-ministra de Portugal. Gostava que a Maria José Nogueira Pinto fosse presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Gostava, muito, que, daqui a uns anos, a Leonor Beleza fosse presidente da República. Assim, de repente - eu sei - parece que sou uma tipa de direita, conservadora e imbecil, como são quase todos os conservadores que conheço. Não sou. Sei lá o que sou. Sou do centro, desse centro indefinido e angustiado, que não se revê em partidos e ideologias, que vagabundeia num limbo partidário. Só nas ditas questões fracturantes estou assumidamente à esquerda. Apoio o casamento e a adopção por casais homossexuais, a liberalização das drogas leves, a despenalização da ivg, o incremento dos direitos dos imigrantes, o fim das touradas, as salas de chuto. Enfim, essas causas todas que a esquerda reclama como suas. Porém, olhando para as mulheres da dita esquerda não descubro uma única que me mereça grande admiração. É triste. Mas é verdade. Desde a laca da Maria de Belém, à demência notória da Odete Santos, ao anti-americanismo primário da Ana Gomes, à arrogância infundada das meninas do bloco, como a Joana Amaral Dias (só se a arrogância lhe vier das mamas, que as tem grandes), à estalinista europeizada Ilda Figueiredo, todas me fazem torcer o nariz. Não gosto delas. Estou à espera de uma Hipólita que, com o coração à esquerda e a razão à direita, tal qual a guerreira amazona, galvanize as mulheres para a tomada do poder e corra com a corja que por lá anda.
2006/11/14
Serão
Ontem, ao serão, fizemos um bolo de mel polaco. Não é para qualquer um. Depois, enquanto o bolo cozia, ele foi ver o restelingue (como eu gosto de aportuguesar as detestáveis palavras anglófonas que nos invadem os dias) e eu fiquei com a irmã na cozinha a jogar às cartas. Gritou com o Ray Misterioso e outros mascarados que, assustadores, cabriolam em lutas encenadas dentro de um ringue. Às nove e meia mandei-o para a cama. Refilou. És má, e continuou a dar golpes, murros e socos. Está sempre a falar de um golpe qualquer chamado choque slam. Já vestidos de pijama e enfiados na cama da Madalena, sugeri a leitura da Menina do Mar. Não, que não tem ilustrações!, foi a resposta imediata, e esperada, que me deu. Ignorei-o. Enquanto li a história, o desgraçado do miúdo deitou-se e, de olhos fechados, virou-se para o lado. Julguei-o adormecido, imune à escrita tão bonita e simples da poetisa. Imaginei-o para sempre perdido, um adolescente mentecapto, sempre a falar de bola e de play stations, a gritar yas, bués, fixes, a galar miúdas burras, com um corte de cabelo absurdo. Na vigésima quinta página, interrompi a história e disse-lhes que o resto ficava para amanhã, que é como quem diz, para hoje. Ele levantou a cabeça e protestou. Franziu-me o sobrolho, olhou-me de viés, pegou no livro e esparramou-se na cama dele, de rabo para cima, a lê-lo. Foi a primeiro vez que o João levou um livro para ler na cama. No seu quarto, a Madalena imitou as danças de arabescos da Menina do Mar e exigiu, depois, que eu cantasse à cigana, esganiçadamente, com palminhas e muitos ais prolongados à mistura. (Curto bué os meus filhos).
2006/11/13
Gomorra
O horror que tenho a tais cuecas já me tem causado chatices na vida. Por exemplo, este fim-de-semana, estava com os miúdos, na fila dos frangos assados na churrasqueira onde os compro desde sempre. Às tantas, a rapariga que vende os frangos, virou-se para voltar o espeto. Foi então que tive a visão de um rabo imenso, enfiado numas calças baratas de cintura descaída. Por cima , vislumbrei o triângulo de umas cuecas fio dental cor de carne, com o rebordo de renda vermelha, muito encardidas e, certamente, malcheirosas. Fiquei agoniada. Virei costas e já não comprei frango nenhum. Fomos comer uma piza para gáudio da prole. Já tive de mudar várias vezes de lugar no comboio para não estar a olhar para um cu agrilhoado num fio dental. Mas o pior é o caso da minha irmã (desculpa lá falar no assunto). Grávida, prestes a rebentar, usa fio dental. Acho obsceno que uma mulher grávida use fio dental, principalmente se essa mulher for minha irmã e futura progenitora do menino dos meus olhos. Temo, juro que temo, pela personalidade do meu sobrinho. Ela não sabe, pobre coitada, mas a relação dela com o filho, pode estar seriamente comprometida pelo uso de tão inestético acessório. Enfim, para abreviar, que o assunto não merece maior delonga: com excepção da minha irmã, acho que as mulheres que usam fio dental haviam de ser todas colocadas no Campo Pequeno, despidinhas, só de tanga enfiada no cu, e, depois, tal qual como aconteceu nas bíblicas cidades de Sodoma e Gomorra, havia de haver alguém que as castigasse forte e feio por tanta depravação e mau gosto.
Sodoma
Resfolegando, entro no balneário. Lá está ela. Velha, para aí cinquenta anos, de cuecas e sutian, carnes flácidas, chinelo enfiado do pé, em frente ao espelho, a secar vagarosamente o cabelo. Usa um fio dental. Aliás, usa sempre umas cuecas fio dental enfiadas no rego do rabo. Hoje, para variar, as cuecas são pretas e têm uma coroa com brilhantezinhos à frente. A tipa está, de certa maneira, a coroar a sua própria vagina. Coisa linda. Odeio cuecas fio dental. Não percebo como é que há mulheres que as usam. O fio dental é a coisa mais ordinária que existe. Só as sopeiras, sejam elas de Massamá, da Cova da Moura, do Alto do Alagoal, ou dos lofts de Alcântara, é que usam fio dental. No balneário, no meu balneário, frequentado essencialmente por informáticas, juristas, economistas, gestoras de conta, administrativas, secretárias, bancárias em geral, são mais que às mães. Gordas, magras, velhas, novas, celulíticas, tudo exibe, num espectáculo de horripilante mau gosto, as nalgas, as nádegas, as bochechas do rabo. Andam naqueles preparos, de cá para lá, sentindo-se sexis, sensuais, boazonas, apetecíveis, preparadas, preparadíssimas para a qualquer momento serem tomadas de assalto e furiosamente fodidas. Tão parvinhas. Umas sodomitas frustradas. Credo.
2006/11/10
Eva
Entra uma rapariga na carruagem. Olho-a. Tem umas sandálias cremes calçadas, tipo colibri, de plástico bege, daquelas baratas que se compram no Paraíso do Calçado e cheiram mal quando se descalçam. Morena, com umas covas nos olhos e a sombra do buço a marcar-lhe o rosto, a rapariga não terá mais de 20 anos. O cabelo é enorme, escuro, exageradamente comprido. Deve chegar-lhe ao rabo. Faz lembrar uma Eva ignota. Vê-se que tem orgulho no seu cabelo. Não pára de lhe mexer. Faz nós nas pontas. Pouco depois, desmancha-os para logo de seguida fazer outros. Quando se cansa dos nós, começa a enrolar o cabelo em volta do pescoço. Como se fosse um lenço. Ou um colar. Ou uma corda para se enforcar. Ou uma serpente de língua bífida que, sibilante, lhe oferece uma maçã. Por fim, deixa de brincar com o cabelo e arremessa-o para trás das costas. Olha em redor e dá um estalido com a pastilha elástica que mastiga. Tem noção de que o seu cabelo dá nas vistas e isso alegra-a. O que a rapariga não percebe é que é a feiura do seu cabelo-serpente que prende o olhar de quem com ela se cruza. É um cabelo baço, sem brilho, sem volume, com uma ondulação incipiente. Tenho pena da Eva que masca pastilha elástica na carruagem do metro que vai para Odivelas. Se tivesse uma tesoura à mão cortava-lhe o cabelo, tornava-a banal, livrava-a dos olhares alheios.
Parole
Ando com vontade de me calar. De vez. Cada vez que me leio dou conta da imbecilidade, da fragilidade do que aqui escrevo. Escrevo como se me flagelasse. Armo-me noutra que não eu. Quero impor-me um estilo virulento, desbragado, agressivo. E, no entanto, quase sempre, as minhas palavras não passam de palavras trôpegas, tantas vezes pretensiosas e risíveis. Detesto-as. Detesto-as verdadeiramente. Às vezes, como esta noite, sonho com palavras. Palavrazs escritas. Essas sim. São perfeitas. Por uma razão simples. Não existem.
2006/11/08
Maria Eugénia (2)
Quando chegaram a casa tinha as pernas feridas como se tivesse sofrido leves queimaduras. O marido assustou-se e desde esse episódio condescendera àquela paixão doméstica de Maria Eugénia e passara a trazer-lhe, das suas viagens, tecidos caros. Maria Eugénia passava tardes a fio a costurar. Fazia a sua roupa e também a que os seus filhos usaram até à altura em que começaram a exigir vestir-se, com os restantes colegas de escola, nas lojas de pronto-a-vestir. Queriam calças levis e camisolas beneton, muito coloridas e garridas. Um homem, novo, entra na sala. Vem espavorido como se fugisse de alguma coisa ou de alguém. Pede-lhe desculpa pelo atraso e apresenta-se. O meu nome é Baltazar Abelha, e esboça-lhe um sorriso. Traz umas calças coçadas, muito velhas e gastas. Senta-se em frente de Maria Eugénia que impávida o observa e aguarda. Abre uma capa de cartolina e começa.
Maria Eugénia (3)
- Como se chama?
- Maria Eugénia Almeida Valadares.
- Onde reside?
- Na rua Elias Garcia, nº 28, 3º.
- Quantos anos tem?
- Sessenta e dois.
- Qual a sua profissão?
- Não tenho profissão.
- Diga-me, então, Maria Eugénia, o que aconteceu?
- Matei o meu marido.
- Houve alguma discussão?
- Não.
- Como o fez?
- Com uma faca de cozinha. Espetei-lhe a faca.
- Porque o fez?
- Porque ele me abrigava a fazer coisas que eu já não era capaz de fazer.
- Como por exemplo?
- Prefiro não lhe responder.
- O que é que fez depois?
- Depois?
- Sim, depois de matar o seu marido?
- Lavei as mãos, penteei-me, saí para a rua, passei pela igreja, onde me confessei, e vim para aqui.
- Não fez nada ao corpo?
- Não.
- E não telefonou a ninguém?
- Também não.
- Já mandámos dois homens a sua casa e sabe que mais?
- Não.
- Não encontrámos corpo nenhum, nem qualquer outro vestígio de ali ter sido morto alguém.
- É estranho.
- Porquê?
- Porque o Alberto gritou bastante quando lhe dei a primeira facada. Tive que lhe espetar a faca várias vezes até que se calasse.
- Maria Eugénia Almeida Valadares.
- Onde reside?
- Na rua Elias Garcia, nº 28, 3º.
- Quantos anos tem?
- Sessenta e dois.
- Qual a sua profissão?
- Não tenho profissão.
- Diga-me, então, Maria Eugénia, o que aconteceu?
- Matei o meu marido.
- Houve alguma discussão?
- Não.
- Como o fez?
- Com uma faca de cozinha. Espetei-lhe a faca.
- Porque o fez?
- Porque ele me abrigava a fazer coisas que eu já não era capaz de fazer.
- Como por exemplo?
- Prefiro não lhe responder.
- O que é que fez depois?
- Depois?
- Sim, depois de matar o seu marido?
- Lavei as mãos, penteei-me, saí para a rua, passei pela igreja, onde me confessei, e vim para aqui.
- Não fez nada ao corpo?
- Não.
- E não telefonou a ninguém?
- Também não.
- Já mandámos dois homens a sua casa e sabe que mais?
- Não.
- Não encontrámos corpo nenhum, nem qualquer outro vestígio de ali ter sido morto alguém.
- É estranho.
- Porquê?
- Porque o Alberto gritou bastante quando lhe dei a primeira facada. Tive que lhe espetar a faca várias vezes até que se calasse.
2006/11/07
Maria Eugénia (1)
Maria Eugénia tamborila com os dedos no tampo marmóreo da mesa. A sala está mal iluminada e uma humidade branda transpira das paredes. Aqui e ali topam-se manchas pequenas de bolor. Terá perto dos sessenta anos. Uma camisa clara mostra um colo branco e macio enfeitado com colar de pérolas que usa rente ao pescoço. Tem as mãos arranjadas e as unhas pintadas de um rosa esmaecido, muito claro, que faz lembrar coisas antigas. O seu porte mostra uma austeridade própria de quem tem tudo. Só os ricos se podem dar ao luxo de ser austeros. É sabido. Maria Eugénia aguarda não sabe muito bem o quê ou quem. Alisa o pregueado da saia com as mãos. Sente a maciez do tecido, uma lã cinzenta, com arabescos de flor-de-lis, que o marido lhe trouxe de uma das suas últimas viagens a Itália. Ao princípio, quando se casaram, o marido desdenhara-lhe o hábito da costura. Como mulher de um advogado, queria vê-la vestida nas lojas do chiado, chique como as mulheres dos seus colegas e sócios. Comprava-lhe vestidos, saias, casaquinhos. Para o agradar Maria Eugénia guardava os presentes no roupeiro e ocasionalmente soltava um É lindo, Alberto! Porém, a primeira vez que usara uma saia oferecida pelo marido, sentira-se estranha como se aquela não fosse a sua pele. Quando chegaram a casa tinha as pernas feridas como se tivesse sofrido leves queimaduras.
Lady Lazarus
Dying
Is an art,
like everything else,
I do it exceptionally well.
(...)
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
Sylvia Plath
Is an art,
like everything else,
I do it exceptionally well.
(...)
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
Sylvia Plath
2006/11/03
Imigrantes
Um relatório qualquer da OCDE, divulgado ontem, concluiu que o fluxo imigratório diminuiu forte e feio em Portugal nos últimos anos. É uma tristeza. Nem os imigrantes nos querem. Humilhação maior para um país é quase impossível. Quando nem sequer os imigrantes consideram um país como lugar de esperança é sinal de que esse país está moribundo. É já só uma carcaça podre que será debicada pelos abutres, vestidos de fato e gravata, e outras aves necrófilas. Uma das poucas saídas para Portugal é a imigração. Ter ao dispor gente que quer trabalhar é oportunidade que não se pode desperdiçar. É que os que cá estão preferem viver do subsídio de desemprego e de outros apoios idênticos que o estado social criou. Aliás, uma das razões para o sucesso da economia de Espanha consistiu precisamente mas vagas imigratórias que o país teve nos anos noventa e soube aproveitar. A imigração traz problemas. Traz mal-estar social, traz o confronto com o outro, tantas vezes difícil e truculento. Mas traz mais vantagens do que desvantagens. Não tenho quaisquer dúvidas sobre isso. Um país é tanto maior quanto maior for a sua abertura aos outros. Os EUA, quer se goste ou não (e eu gosto), continua a ser disso um exemplo maior. A nós, já ninguém quer. Nem os imigrantes. Estamos tramados.