2007/03/30

Raimunda

Não conheço a Raimunda. Nunca a vi. Sei que é brasileira e tem a pronúncia cerrada do nordeste. Conheço-lhe a história. Conheço bem os degraus do prédio que ela continua a esfregar com lixívia. Perdi a virgindade nesse prédio, deitada num sofá de cabedal, com os ruídos da rua a chegarem por uma janela aberta (como não detestar Sacavém?) Conheço também as pedras da calçada que, numa manhã de sol, se tingiram de um vermelho escuro e brilhante. Um rio de sangue saiu aos soluços de um corpo, numa ânsia de liberdade, fugindo da monotonia circular dos canais, das veias, das artérias. Correu pela calçada em direcção à pastelaria, chamou para a rua os clientes matinais que bebiam cafés, madalenas, bolos de arroz, pastéis de nata, dizendo-lhes “Corram! Lá fora, na calçada, está o corpo de uma mulher jovem. Foi golpeada pelo amante! ”. Não era o corpo da Raimunda que jazia na calçada. Era o corpo da amante do seu marido. Raimunda conheceu-a assim: morta no passeio em frente da Electro-Sacavém. História de folhetim. Possidónio e Raimunda. São nomes peculiares. Ecoam na minha cabeça pela sua estranheza. Caso os não conhecesse, duvidaria que fossem de gente de carne e osso. Mereciam uma vida de frases e silêncios.

Possidónio

A morte marcou-lhes o caminho. Conheci o Possidónio à saída do cinema. Vinha a sair da sala um do king com a minha irmã - era um filme do Almodovar, lembro-me agora - quando deparei com a M. Ela apresentou-me o homem que a acompanhava, um antigo pretendente da Costa de Caparica. Já velho. Alto e seco. Triste apesar dos sorrisos corteses. O cabelo encrespado e pintado. Parecia saído de uma revista antiga, de um tempo passado. Cheirou-me a mofo, ao bolor das casas velhas. Olhei-lhe o preto do cabelo, incapaz de esconder a velhice que lhe habitava os olhos e as mãos. Depois de duas ou três frases despedimo-nos. Nunca mais o vi. Através da M., porém, conheci a sua vida. As suas bizarrias. Era meticuloso com a alimentação, a higiene. Conheci a sua solidão. Também a sua morte. Entre fragas, precipícios e abismos. O mar lá em baixo, furioso, um demónio frio de águas agitadas, chamou-o com juras falsas. Disse-lhe assim “Vem, vem agora, vem sem medo, que apagarei toda a tua dor”. Ele foi. O corpo foi descoberto muito tempo depois. Inquieto-me sempre que penso nessa madrugada e na dor que o mar engoliu. Tenho medo do mar. Sempre tive. Está cheio da dor de outros.

2007/03/29

Amsterdam

Et quand ils ont bien bu
Se plantent le nez au ciel
Se mouchent dans les étoiles
Et ils pissent comme je pleure
Sur les femmes infidèles
Dans le port d'Amsterdam
Dans le port d'Amsterdam.

Cartaz

Gostava de ter a lucidez do Rui Marques e não dar importância ao cartaz que está no centro da minha cidade. Mas é superior às minhas forças. Fosse eu dirigente deste país e empalava (que a morte deste gente quer-se lenta e dolorosa) o senhor da barba mal aparada e do cabelinho com laca. Depois atirava com a sua carcaça aos cães.

Prianka

Passei várias tardes de tédio e modorra, no king, a entupir-me de cinema de autor para me tornar numa jovem interessante e interessada. Aos trinta e cinco anos rendo-me ao cinema indiano, popular, colorido, kitsch, trágico, dramático, coreográfico, cheio de paisagens paradisíacas, amores impossíveis e canções intermináveis. E, na minha próxima vida, quero ser igual à Prianka Chopra.

Errata

Não partilhámos, a amiga e eu, a professora. Partilhámos a psiquiatra.
(Gosto de brincar ao faz de conta.)

Giordano Bruno

Um destes dias, quando estávamos na cozinha da casa do lote 105 a lanchar, a minha mãe descuidou-se e largou um peido. Foi um daqueles peidos quase inaudíveis, que parecem um sussurro, mas que são muito mal cheirosos. Com o meu nariz grotesco fui a primeira a dar conta do nauseabundo cheiro. Imediatamente, em tom inquisitorial, comecei a acusar os presentes. Foste tu, tia? Tu pai? E tu, Susana? Madalena, não me digas que foste tu? Queria saber a identidade do giordano bruno das bufas malcheirosas para, impiedosa, o queimar nas labaredas da minha fogueira. Ninguém se acusou. Finalmente chegou a vez da minha mãe que, cirandando pela cozinha com a chaleira na mão, fingiu não me ouvir. Perguntei-lhe de novo. Pois a minha mãe, depois de uma hesitação pequena e querendo escapar-se ao escárnio familiar, acusou o meu sobrinho Pedro de três meses, o único desgraçado que, refastelado no colo materno da tia Dé, não se pôde defender de tão vil acusação. Desatámos a rir às gargalhadas com a mentirinha da minha mãe. O meu sobrinho, contagiado pelo nosso riso histérico, esboçou um sorriso tonto e baboso para a avó, consciente da sorte que é tê-la.

(Uma colega, com quem partilhei em tempos o perene entusiasmo por determinada professora, bonita, sofisticada e estudiosa dos russos do século XIX, disse-me um dia que a dita docente era a mãe que gostava de ter. Aquilo caiu-me mal. E nunca me esqueci de tal conversa. Não trocava a minha mãe por nenhuma.)

As mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Música: Adriano Correia de Oliveira
Letra: Manuel Alegre

Comité

Há quem se tenha por intelectual. Eu preferia ser trolha a ser intelectual. Desprezo pro-fun-da-men-te os intelectuais. Gostava, isso sim, de trabalhar com as mãos. Como diz o poeta, com as mãos tudo se faz e se desfaz. Não são de pedras as nossas casas, mas de mãos. Há, todavia, quem dê importância aos intelectuais. Veja-se o exemplo do Comité do PCP. Para além de operários metalúrgicos e engenheiros técnicos de produção animal, está carregado de intelectuais. É verdade. Contei-os. Alguns têm apenas trinta e poucos anos. Não é para qualquer partido. Mas nem todos os intelectuais do Comité do PCP são assim, novinhos e quase imberbes. Também os há maduros. O Vítor Dias que eu - imagine-se até onde pode ir a ignorância - julgava funcionário do partido, também é um intelectual. Na lista, logo a seguir, vem um tal de Vítor Manuel Batista, caldeireiro.

2007/03/27

S. Maia


(Abril não tarda.)

Vagina (2)

Procurei um espelho. Encontrei um demasiado grande. Apanhei o cabelo. Abri o roupão. Fiz caretas e esgares. Depois de alguma hesitação, resolvi enfrentá-la, afastando o que a cobre. Afinal, pensei, foi por ali, por tal abertura que os meus filhos abraçaram o mundo. Foi ela, a minha vagina, que se dilatou e lhes franqueou a chegada. Foi ela que mos trouxe. Sem lhes provocar qualquer tipo de problemas. Portanto, nem que fosse pelos meus filhos, eu devia enfrentar a minha vagina. Olhá-la de frente. Olhei-a então. Durante algum tempo. Não sei como são as outras porque não ando a espreitar vaginas alheias, mas detestei a minha. Fez-me lembrar uma amiba, um crustáceo, uma ostra, uma lapa daquelas que estão presas às rochas da beira-mar e que se encolhem quando as soltamos. É monstruosa. Feia. É uma coisa muito primitiva, um resquício de antiguidade, de rudeza. O pior é que a sua forma, a sua consistência e textura revela como é o nosso corpo por dentro. O nosso corpo é bonito por fora. Por dentro é horrível, uma massa de sangue, nervos, gorduras, órgãos, fezes, vasos, tecidos, sucos, cartilagens, carne. A vagina está fora e está dentro do corpo humano. Tem uma natureza híbrida. Revela o que está oculto e se quer manter oculto. Voltei a fechar as pernas. Olhei-me no espelho. Espreitei os miúdos, a dormir, sossegados. Calei o Joe Dassin. Fui fumar para perto do aquário.

Vagina (1)

A semana passada vi um dvd do Sexo e a Cidade. Às tantas, num episódio qualquer, à mesa do pequeno almoço, a Charlotte confessa nunca ter visto a sua vagina. As outras soltam gritinhos, escandalizadas perante tal revelação. Encolhi-me no sofá. Na altura, não dei muita importância ao facto. Esqueci-me. Porém, nos últimos dias tenho pensado no assunto. É estranho. Sei como são os meus pés. Sei como é o formato das minhas orelhas. Conheço a flacidez das minhas mamas. E a secura dos meus cotovelos. Porém, não sei como é a minha vagina. Assim como não sei como é o meu rabo. Nem sei como são as minhas costas. Que curvas se insinuam nas minhas costas? A pele é lisa, uniforme, ou manchada como o início das minhas pernas? Dei, então, conta que desconheço metade do meu corpo. Que nunca o vejo. Isso aborrece-me. Eu vivo com o meu corpo. Resolvi, por isso, tratar do assunto. Na impossibilidade de revirar a cabeça para olhar o meu traseiro e as minhas costas, decidi olhar aquilo que estava mais à mão. Ontem, depois de alguns minutos de estudo, abandonei os trogloditas nas suas cavernas, coloquei o Joe Dassin, que também é uma espécie de troglodita, a cantar e fui para o meu quarto.

2007/03/26

Patroa

Embirro com o patronato. Foi coisa que ficou do tempo das deambulações etílicas pela rua da palma. A minha embirração é tal que não sou capaz de assumir o papel de patroa. Há vários anos que tento despedir a minha empregada e não consigo. Compadeço-me dela, que é uma incompetente. Ao final do dia, faço-lhe o trabalho: esfrego, lavo, limpo, arrumo, varro, estrago as unhas que deixei de roer há apenas dois meses e que, pintadas de vermelho, são um regalo para os meus olhos. Enquanto dou conta do serviço doméstico, insulto-a devidamente, chamando-lhe uma série de nomes que devia evitar em frente dos miúdos: velha, cabra fanhosa, gaja e, claro está, puta. Volta e meia, imploro ao R. que a despeça. Ele é que representa a ala liberal, direita, racional no casal. Eu sou a esquerda emotiva, irracional, levemente engajada em determinados assuntos. Mas nada. Ele nada faz. Até parece que é para me provocar. A minha filha, perante o meu desespero, já me disse que, se eu quisesse, ela podia tratar do assunto. Muito pequenina virou-se para mim e disse: mamã, eu expulso-a! Tão querida, a minha filha.

Salazar

Das duas uma. Ou somos um país de brincar. Ou, então, somos um país com muito sentido de humor. Quero acreditar na segunda hipótese.

2007/03/24

Simran

Simran came to Mumbai from Hyderabad about 10 years ago after her family did not accept her as a hijra, a male to female transgender, in India. After having survived the tortures of sleeping on the side walks and begging for alms for years she now works as a prostitute to make a living. She now lives in a road side slum with Imtiyaz, a taxi driver, who is also her boy friend.

2007/03/23

Holofernes

Noite dentro, enquanto a chuva mansa tamborila nas vidraças, Judite rebola na cama, resfolegando como se fosse um animal. Uma égua ou uma vaca. De lábios túmidos. Cabelos emaranhados. A pele recamada de bagas de suor. Parece uma planta orvalhada. Uma deusa ignota, imperfeita. Espera Judite que a escuridão do quarto tome a forma do corpo de um homem.

Pensa Judite: quando a escuridão e o vazio se condensarem em corpo de homem, por fim, amainarei. A chuva continuará, mansa, a bater nas vidraças. Com calma, olharei para os ciprestes que lá fora permanecerão hirtos. Olharei para o homem deitado ao meu lado. Será grande como sempre o imaginei. Cabelo comprido. Barba negra como a escuridão que lhe deu corpo. Olhos de lobo, de lince, de leão, de cão esfaimado. Um bafo quente, nebuloso, sair-lhe-á de dentro. Será como um animal feroz sem açaime ou jaula.

Judite continua a pensar: tirarei a camisa que me cobre o corpo e deixarei que o animal-homem-escuridão me tome. Este é o meu corpo. Tomai-o em nome de Deus. Ele tomar-me-á como os bichos. Saciado, descansará, então, sobre os lençóis ainda mornos. Dormitará com um sorriso de anjo boçal no rosto. Em silêncio, pegarei no machado que se esconde por baixo da cama. Ergue-lo-ei. Com um golpe, com um único golpe, cortar-lhe-ei a cabeça. Ele abrirá os olhos segundos antes do cutelo o penetrar. Um grito mudo perder-se-á pelo quarto. Baterá nas vidraças fechadas como moscas cegas. Haverá sangue derramado pela cama. Um líquido viscoso, denso, quase preto. Quando a sua cabeça rolar para o chão adormecerei. Ao lado do corpo decepado. Antes, porém, direi o seu nome: Holofernes.
(Quando escrevi este texto estava furiosa com o mundo. Já não estou. Em vez de cutelo, devia ter usado a palavra cimitarra. Cutelo faz lembrar um talhante a esquartejar a alcatra de uma vaca.)

Lembrete

Tópicos a desenvolver: peido, lábio leporino, canzoada, Maria José Nogueira Pinto, calçada portuguesa, pastelaria kiss cream, intelectual, escravos, barba do Nani Moretti, Petit.

2007/03/22

Judite

Caravaggio, 1599

(Às vezes, sabia bem ter um Holofernes à mão.)

Gengibre

Quinta-feira é dia de shokado lunch. A rosinha feita de lâminas de gengibre cor-de-rosa que desfolho com lentidão e saboreio utilizando todas as papilas gustativas da minha língua è dos poucos prazeres físicos que tenho. É, por isso, lamentável que tenha escolhido esse preciso instante para ler a resposta do Rui Tavares à Helena Matos sobre o caso Mantorras. Bufei como uma vaca. Ruminei. Rezinguei. Insultei-o baixinho. Só sosseguei quando olhei para a fotografia e percebi que o Rui Tavares é uma daquelas pessoas que nasceu com 50 anos. É. Olha-se para a fotografia dele e percebe-se isso mesmo. A idade dele, para aí 80 (50+30), desculpa as posições que, por vezes, toma. São posições dignas do Vítor Dias. O problema não está na retaliação de Angola, mas sim na oportunidade dessa retaliação. Querer meter Angola, país que elogia e apoia os métodos de pacificação do Mugabe, e Portugal no mesmo saco não é só intelectualmente desonesto, é um bocadinho patético.

Otília

Não se chama Otília. Mas podia chamar-se. Otília é um nome redondo. Cilíndrico. Curvo. Gordo. Otília-Lua. Otília-Terra. Otília-Sol. Otília-Laranja. Otília-Bola. Otília-Berlinde. Otília-Melancia. Cruzo-me com ela quando, no final do dia, vou buscar os meus filhos. A hora da minha chegada coincide com a sua hora de saída. Trabalha num dos apartamentos do prédio dos meus pais. Não sei em qual. Tem um sorriso tímido. Escondido. Quase infantil. Parece uma menina grande. Vem sempre afogueada, cheia de sacos. O saco do lixo. O saco dos papéis, dos cartões. O saco dos vidros. O saco das embalagens. Deposita-os nos contentores coloridos que estão perto da porta da entrada. É nova. É bonita. É negra. Tem um tom de pele muito escuro. Deve ser guineense. Ou portuguesa, filha de guineenses. Tem a cor doce e amarga do chocolate para culinária. A cor das barras de chocolate Belleville que uso para fazer a mousse. É como se o seu corpo fosse feito de açúcar, pasta de cacau, manteiga e leite em pó. Apesar do corpo imenso, usa sempre roupas claras e decotadas. Roupas que lhe deixam a descoberto as formas. O seu corpo faz-me lembrar as antigas deusas da fertilidade que ilustravam o meu manual de História Universal do 7º ano. O meu olhar fixa-se sempre em dois pontos. Nas mamas e nos pés. Tem uns pés bonitos, inesperadamente pequenos. Os dedos muito certinhos, gordos, as unhas de um cor-de-rosa clarinho. As mamas, pelo contrário, são enormes, imensas. Parecem não ter fim, como se fossem florestas virgens, escuras, de vegetação cerrada, molhada, feitas de sombras, de sequóias, trepadeiras, arbustos espinhosos, musgos e fetos. Imagino-a a dar de mamar ao filho que, provavelmente, ainda não tem. Imagino-a com um namorado magrinho, de bigode ralo e olhos dengosos. Imagino-o a olhar para aquele peito, cheio de vontade de nele se afundar e, para sempre, se perder.

2007/03/21

Abishek


(Tenho um fraquinho pelo Abishek Bachan. Ainda por cima corre. Aqui está ele na maratona de Bombaim, ao lado da Rani Mukerji. A minha mãe prefere o pai do Abishek, o Amitabh Bachan. Mas eu não gosto daqueles dois tons de cabelo que ele usa. Não joga bem.)

O Romance de Diogo Soares

Diogo Soares
O grande general
Chamado "o Galego"
O homem dos olhares fatais
Comanda sessenta mil homens
De terras estranhas
Vencendo e lutando
Por quem paga mais
Eficaz nos sermões
Insinuante pois
Ganhou a simpatia
De príncipes e samurais
Já é governador
Do reino de Pegu
Mais forte do que o rei
Mais rico por golpes mestrais.

Naquela cidade
Vivia um mercador
De nome Mambogoá
De fortuna sem fim
E naquele dia
O dia das bodas
Casava uma filha
Com Manica Mandarim
Diogo Soares passou por ali
Ao saber da festa
Felicitou noivos e pais
E a noiva tão linda
Ofereceu-lhe um anel
Agradecendo a honra
Por gestos puros e sensuais
Então o galego
Em vez de guardar
O devido decoro
Prendeu-a e disse-lhe assim:
"Ó moça formosa
És minha, só minha
A ninguém pertences
A ninguém, senão a mim".

O pai Mambogoá
Ao ver pegar o bruto
Tão rijo na filha
Ouvindo este insulto de espanto
Levantou as mãos aos céus
Os joelhos em terra
No retrato da dor
Pedindo e implorando num pranto
"Eu peço-te Senhor
Por reverência a Deus
Que adoras concebido
No ventre sem mancha e pecado
Não tomes minha filha
Não leves meu tesouro
Que eu morro de paixão
Que eu morro tão abandonado".

Mas Diogo Soares
Mandou matar o noivo
Que chorava abraçado
À moça assustada
Tremendo
E a noiva estrangulou-se
Numa fita de seda
Antes que a possuísse
À força o sensual galego
A terra e os ares
Tremeram com os gritos
Do choro das mulheres
Tamanhos que metiam medo
E o pai Mambogoá
Pedindo pelas ruas
Justiça ao assassino
Acorda a cidade em sossego.

Peregrinação, Fausto

2007/03/20

Teolinda

Comprei o novo livro da Teolinda Gersão, tida, por muitos, como grande contista. Não querendo ser desmancha-prazeres (hoje não quero vestir essa pele), direi apenas: escrevo melhor do que a Teolinda e nunca, a propósito do cansaço na vida de uma mulher-a-dias, diria que a pobre pela manhã não tem tempo de se maquilhar.

Sangue

Confessou o meu pai que a Maria Aurora Couto, amiga de um dos homens que encontrei no crepúsculo de Curtorim, lê, ou leu, este caderno. Imaginar que uma mulher como ela - bonita, serena, inteligente, lúcida – lê as asneiras que aqui escrevo deixou-me à beira de um ataque de nervos. Até tomei um victan para sossegar. E bebi uma cerveja. Que vergonha. Tanta maledicência, tanta inveja, tanto palavrão para aqui derramado. Refreio-me, por isso. Uma chatice. Logo hoje que estou com a menstruação e queria escrever sobre a cor do sangue que o meu corpo expulsa.

2007/03/19

Pátria Incerta

(Às onze e meia passa na dois o documentário da Inês Gonçalves, “Pátria Incerta”, visto no Doclisboa num dia de muita chuva na companhia da M. Quando o vi não conhecia ainda o sabor do rebuçados de tamarindo nem a aspereza doce da árvore dos chicus. Não sabia ainda que, em Goa, as estrelas descem do céu e flutuam, como borboletas nocturnas, nas varandas e nos alpendres. Não sabia ainda que Goa me pertencia.)

Brooklyn (2)

Hoje, pela manhã, no comboio, peguei novamente no livro. Por instantes deixei-o adormecido no regaço e observei as pessoas à minha volta. Ao meu lado, um rapaz negro, de pernas abertas, esparramado, inapropriadamente refastelado, lia um jornal de distribuição gratuita. À sua frente uma turista inglesa, encolhidinha, de dentes saídos, fazia um esforço por manter as pernas recuadas para não tocar nas do rapaz negro. Eu, ao lado, a topar tudo. A áfrica negra, provocatória, achando que a miséria lhe confere um estatuto de imunidade. O velho continente amedrontando-se, não querendo provocar os selvagens. Coitaditos, que já padeceram tanto. Não há pior forma de racismo do que a tolerância paternalista, que tudo justifica e perdoa. Retirar a responsabilidade a alguém é negar-lhe dignidade e, também, liberdade. A inglesa velha deveria pedir ao rapaz para encolher as pernas. Se ele se negasse deveria dar-lhe com a bengala na cabeça. É óbvio. Por mais que me cativasse o ar compungido da velha inglesa procurei abstrai-me. Abri o livro. Li. Voltei a Nova York e a Brooklyn. Foi então que deparei com a descrição do funeral de Harry, o estereotipo do malandrim gay, culto, velho, de picha pequena. Imaginei a cena. Rufus metamorfoseado de Tina Hoot irrompendo pelo funeral de Harry, vestida de negro, chorando. Imaginei-a cantando calada. Tão linda e jamaicana. Ao ver-me ali no comboio, com os prédios de Chelas a espreitarem pelas janelas, entre a inglesa encolhidinha, o negro malcriado e o travesti sentimental, foi-se embora a irritação. Senti a pele arrepiada e um nó na garganta. Sou uma sentimental. Da noite para o dia mudei de opinião. Gosto do último livro do Paul Auster. Limita-se a contar uma história, mas a verdade é que, como sempre, o faz muito bem. É que, como se diz por lá, enquanto uma história dura, a realidade cessa de existir. E isso é sempre bom.
(Texto escrito num berloque já assassinado. Lembrei-me dele a propósito da crónica de hoje da Helena Matos, no público, sobre Africa. Gosto muito da virulência da Helena Matos.)

Brooklyn (1)

Resolvi não gostar do livro do último Paul Auster. Ando numa fase de negação. Essa é que é essa. Ontem, depois de ler algumas páginas, deitei-me desiludida, considerando-o um escritor irrecuperável, achando as loucuras de brooklyn um livro menor na galeria dos seus romances. Deitei-me aliviada por estar quase a terminar o seu último livro, querendo, quanto antes, mergulhar no mar de madrid que, escrito por um português, não traz o tormento do texto traduzido. Já de luz apagada, continuei a vilipendiar o Paul Auster. É que, ainda por cima, sem eu querer, sem eu lhe dar autorização, teve a ousadia de me explicar Mallarmé. Eu sou praticamente analfabeta. É um facto. Tenho noção disso cada vez que leio o jornal, cada vez que vou a uma livraria. Ora, acontece que, há meia dúzia de dias, folheando um livro, deparei com o nome Mallarmé. Encolhi-me. Não sou capaz de o enquadrar seja no que for nem de lhe apontar uma obra. Decidi nesse instante que teria de o procurar, de lhe tirar medidas. Há tanta gente que enche a boca cada vez que pronuncia a palavra Mallarmé. Também quero. Sucede que descobri quem foi Mallarmé nas páginas do livro do Paul Auster, quando Tom a caminho de Vermont, numa verborreia literária insuportável, debita factos, nomes e datas. Ora, eu queria descobrir sozinha a importância de se chamar Mallarmé. Não queria que o Paul Auster, tutelar, professoral, me explicasse. Adormeci, pois, levemente irritada com o escritor nova iorquino e, noite fora, sonhei com laranjeiras e castelos.

2007/03/16

Bonsai

No rés-do-chão do meu prédio mora uma italiana, simpática e parideira, que costumava colocar as suas bonsai a apanhar sol no parapeito. Espreguiçavam-se as arvorezinhas anãs, tortinhas, contentes com as cócegas que os raios de sol lhes faziam. Às vezes, quando passava junto do parapeito, ouvia umas gargalhadas pequenas e jocosas. Um ah-ah-ah. Ou um eh-eh-eh. Quase sempre um ih.ih-ih. Perguntei ao R. se notava algum barulho estranho quando passava junto da casa da vizinha italiana. Disse-me que não. Só mais tarde percebi que as bonsai se riam de mim. Só precisavam da mornidão do parapeito para ser felizes. Desdenhavam, por isso, a minha habitual sobranceria, a minha injustificada sisudez. Aborreceu-me a felicidade e o atrevimento daquelas árvores. Um dia roubaram uma das nipónicas árvores da vizinha italiana, que, insultando a selvajaria dos portugueses, nunca mais voltou a mostrá-las no parapeito. Juro que não fui eu.

Chá

Fui ao celeiro. Comprei umas cápsulas de vinagre de maçã e um chá de emagrecimento. Espanhol. Olé. A embalagem anuncia carteritas termoselladas para conservar el aroma. Acontece que, para minha surpresa, o chá cheira - juro que cheira - a pipi mal lavado. Tive de o beber com a mão no nariz. Os nuestros hermanos são muito profissionais. Imagine-se: fazer carteritas termoselladas para conservar um aroma destes.

2007/03/15

Mississipi

Dois rapazes vagueiam num bote de madeira. O rio é uma prisão: Tem grades de silvas eriçadas onde crescem amoras gigantes, pretas, maduras. Os rapazes picam as mãos ao tentar apanhá-las. O bote atravessa pântanos, dedos de água, o sol espelha-se no rio, que é manso e tem a cor da ferrugem. Por fim, encontram uma ilha pequena de areia, onde três corpos repousam.

(Explicação: 1) Os dois rapazes são o Tom Sawyer e o Huckleberry Finn que revi há dias em desenhos animados. A minha filha pouco entusiasmada com as suas aventuras, eu desapontada com ela, a chorar com saudades das manhãs de sábado e de domingo, do sol a entrar pela vidraças da marquise, das minhas mães, ainda novas, de roupão vestido, limpando o pó do bibelots da estante. 2) As amoras são as que vi ontem no pingo doce. Cada embalagem de cem gramas custava 3.99 €. Contrariada, preteri-as pelas framboesas que custavam só 1,99 €. As amoras sabem-me ao Alentejo, ao pó do caminho do moinho, são quentes como o sorriso da Margarida e da Filomena, primas-irmãs, pintam-me as mãos de preto. As amoras sabem-me a tudo. As framboesas não me sabem a nada. 3) A ilha dos mortos não sei onde a fui buscar. Talvez a algum episódio do CSI. 4) Andam inteligíveis, compreensíveis, os meus sonhos. Aborrece. E tudo me dá vontade de chorar. Envelheço.)

Tibete

Steve McCurry
(Também gostava de ir ao Tibet. As senhoras usam adereços muito giros. Põe a bijuteria da Pedra Dura a um canto. )

2007/03/14

Narrador

Mas nem sempre gosto dos que leio. Há outros que não me dizem nada. É, por exemplo, o caso do narrador, cujo nome não recordo, de “Um Amor Feliz”, do David Mourão Ferreira. Nunca me poderia apaixonar por tal sujeito. E, no entanto, dá corpo a um dos romances que mais gostei de ler. Entre nós (o tal narrador sem nome e eu) manteve-se sempre uma enorme distância. Ele, delambido, bem me tentou cativar, mas eu não deixei. Achei-o vaidoso. Pedante. Bebia champanhe com morangos. Comia caviar. E patês. Pior, muito pior, arranjava as unhas na manicura. Eu era lá capaz de amar um vaidoso de unhas arranjadas! Jamais. Depois, o sujeito tinha uma estranha maneira de amar. Amava elitisticamente. Como se o amor fosse uma coutada privada de determinada classe, de uma elite. Como se só quem vive em Cascais, quem vai a exposições, quem lê, quem ama a arte, o etéreo da vida, soubesse amar devidamente. Não sei explicar. Já Claúdio não. Ama na mais profunda solidão. Ama os que já não estão e os que, estando, não querem estar. Ou não estão mesmo. É um homem inteiro, cheio de dúvidas, intimista, íntimo, inseguro também. Amei-o nas primeiras páginas.

Cláudio

Leio as últimas páginas do livro com o comboio a chegar à estação. “Até ao Fim”, do Vergílio Ferreira. Sinto os olhos molhados, um mar pequenino e escuro dentro deles. Como explicar? Comove-me a história triste, tão triste: Cláudio, pai, vela o filho morto, Miguel. O livro faz-se do diálogo que se estabelece entre ambos, durante essa última noite. Porque Miguel, o filho, está morto e não está. Como a dada altura diz Tina (a tal cujo corpo não preenche o nome: Albertina), não se morre de repente. Demora-se tempo a morrer. Morre-se devagar. Devagarinho. Também me comove a despedida. Triste sina, esta a de me apaixonar pelos homens que vivem entre as páginas dos livros, em vidas de letras e palavras. Desta vez, calhou apaixonar-me por Cláudio. Perdidamente. Porque quando se ama é sempre perdidamente. Não há graus, escalas, graduações no amor. Há quem pense que há. Há quem consiga graduar o amor. Como se o amor fosse um tonel de vinho tinto. Para ti, tenho três almudes de amor para dar. Para ti, tenho almude e meio. Para ti, tenho o barril inteiro. Adiante. Pelo menos, Cláudio termina feliz ao lado de uma Clara. Cláudio e Clara numa casa sobre o mar.

2007/03/13

Bárbara

Ela: Já reparaste que toda a gente te embirra.
Eu: Não é verdade.
Ela: Tens a mania que és melhor do que os outros!
Eu: Sou melhor do que a maior parte.
Ela: Estás a ver?
Eu: O quê?
Ela: Lá estás tu armada aos cucos.
Eu: E então?
Ela: Então que por vezes és muito injusta.
Eu: Dá-me um exemplo.
Ela: A embirração que tens à Bárbara Guimarães.
Eu: O que é que tem?
Ela: Não é embirração, é inveja.
Eu: Deves ser doida!
Ela: É inveja!
Eu: É uma embirração justificada.
Ela: Porquê?
Eu: É uma palerma armada em intelectual.
Ela: Há tantas por aí!
Eu: Mas o pior nela nem é isso.
Ela: É o quê?
Eu: Quem, como ela, lambe a pilinha do carrilho merece toda a minha embirração.

Caixinha

Encontrei o bilhete que escrevi naquele dia. Entre as páginas de um livro de ilustrações, parecia coberto por uma poeira de salitre. Quem o terá guardado ali? Sempre imaginei que a minha mãe o tivesse levado e escondido na caixa de cartolina amarela que está na gaveta da sua cómoda. É uma caixinha-de-esconder-sofrimento. Enganei-me. A minha mãe não levou o bilhete. Colocou-o ali, entre as páginas de um livro a que sempre volto.

2007/03/12

Inquietação

A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes.

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha.

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda.

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda.

José Mário Branco

(Mas não há inquietação que se compare à do José Mário Branco.)

1970


(Que bom é ouvir cantar em português, nessa língua que os imbecis dizem não se prestar à melodia e o idiotas, iludidos com a quimera do sucesso internacional, teimam em preterir. Que bom é ouvir cantar em português e sentir minhas as palavras dos outros.)

Lição em Pondá

Despimo-nos. Eu, a sobrinha europeia. Ela, a tia goesa, a menina que o meu pai carregava por caminhos sinuosos de chuva e lama até à escola. A nudez traz-nos a proximidade que tardava em chegar. Assim despedidas, a tia Amália começa a lição. Primeiro o saiote, bem apertado ligeiramente por cima da anca. O umbigo deve deixar-se sempre destapado. É por aí que o corpo respira, explica. Se se cobrir o umbigo o corpo sufoca. Depois a blusa que deve ser justa e tapar apenas o peito. Por fim, o rectângulo que envolve o corpo como se fosse um casulo. Há quatro passos essenciais que não se podem esquecer. O mais difícil é preguear decentemente a parte de baixo. É preciso ter mãos habilidosas para o fazer. À medida que a tia Amália fala, executa os gestos, enrolando-se na perfeição no tecido. Eu tento imitá-la.

Sentada na cama, Jessica come umas uvas pretas, muito doces e sem grainhas. Para me tranquilizar, diz que, em vez do sari, poderei sempre usar um churidar. Sorrio-lhe. Não gosto nada de churidares. A única peça que gosto no churidar é a dupata. Continuamos a lição. Por fim, com a ajuda de duas mulheres, consigo vestir o sari. A minha tia apanha-me o cabelo. Manda-me andar. Olho-a. “You can’t walk in a sari like you walk in your jeans. You have to walk with grace, Ana Clara!.” Ando. Ela abana a cabeça. Diz que temos de treinar o andar-de-sari. Reconheço-me nela. E, outra vez, vejo as mãos do meu pai no seu corpo. Ela faz-me uma festa no rosto. Gosto da festa que ela me faz, que é morna, como uma manhã de maio. Diz que pareço uma parsee por causa da claridade da minha pele. Que estranho, penso, sou uma europeia escura e uma indiana clara. Jessica, escura e gorda, continua a comer bagos de uva e ri-se.

(Ontem, fiz um esforço para lembrar os conselhos da tia Amália. Depois de várias tentativas consegui vestir o sari que o meu pai trouxe. Não fica bem dizê-lo, eu sei, mas fico linda.)

2007/03/09

Abstinência

Estou tão mal disposta. Apetece-me vomitar em grandes jactos a feijoada que comi ao almoço. Se possível para cima da Bárbara Guimarães ou do António José Seguro. Desconfio que é a falta prolongada do xanax que me provoca a agonia, o mal-estar, o cansaço, a astenia, a gula, a paralisia, a fraqueza, as tonturas, os pesadelos, o inchaço e tudo o mais. Tão triste, ser-se toxicodependente.

Bo Derek

Soubesse escrever decentemente, sem erros, nem hesitações, com jactância e habilidade, e escreveria uma novela, cheia de palavrões e palavras-pedra. Não sei sobre o que seria. Talvez sobre uma prostituta-negra-albina-frígida-com-umas-grandes-mamas. Ou, então, sobre a dona-de-uma-agência-funerária-feia-e-levemente-marreca-tarada-sexual-com-umas-mamas-ainda-maiores.Qualquer coisa do tipo. Sei, porém, como lhe chamaria: “Bo Derek de Sapadores”. É um nome e peras.

Il caimano


(Finalmente.)

2007/03/08

Senhor Tobias

O senhor Tobias, responsável pelo economato do meu serviço, deixou-me uma flor na secretária. Vermelha, parecia uma gota gorda de sangue derramada por cima dos processos. Claro que não fui capaz lhe dar com a flor na cabeça. Corri até ele e agradeci-lhe com um beijinho. Depois sentei-me perto dele e falámos do Benfica. Assegurou-me que o jogo está ganho. Suspirei de alívio pelos benfiquistas que tenho em casa. O senhor Tobias é um grande benfiquista, um grande pescador de alto mar e um grande apreciador de vinho tinto. Temos sempre conversa um para o outro.

Super Mulher

A propósito do dia de hoje, o Público fala de mulheres trabalhadoras com filhos. Chama-lhes super mulheres. Na minha ingenuidade, pensei que o Público abordasse efectivamente a situação das mulheres que têm de trabalhar e cuidar dos filhos. Enganei-me redondamente. O Público limita-se a descrever, de forma aborrecida, a vida de duas ou três mulheres, bem sucedidas profissionalmente, repimpadas nas suas vidas, que gostam de parir como coelhas (espero, sinceramente, espero que, pelo menos, também gostem de foder como coelhas). Há uma tipa qualquer que pôde deixar de trabalhar porque o marido tem “uma óptima posição” na sociedade de advogados onde trabalha. Faz de motorista. Ao fim do dia é uma canseira. Tem de ir buscar as crianças à escola e andar, de um lado para o outro, a distribuí-los nas actividades. Esta tipa é uma super mulher? Há outra, com uma catrefada de filhos, é certo, mas com duas empregadas e uma equipa de babysitters e avós para a ajudar. É esta uma super mulher? Sem cair no discurso do politicamente correcto (eu sei que agora está fora de moda o politicamente correcto, aliás, agora é politicamente correcto ser-se politicamente incorrecto), digo: super mulheres são as senhoras da limpeza, os rostos precocemente marcados com sulcos profundos, as mãos gretadas, o cheiro da catinga entranhado no corpo, que entram no edifício quando eu saio ao fim do dia e o abandonam pela manhã quando eu chego. O edifício espreguiça-se em movimentos lentos e expulsa o cansaço destas mulheres. Eu olho para elas e pergunto-me sempre quando é que dormem.

(E, se alguém se atrever a entregar-me uma florzinha, murcha e desengraçada, arrisca-se a levar com ela na cabeça.)

2007/03/07

Manelinha

Quando cheguei do almoço o peixe boiava na bolha de vidro, numa água esverdeada, com o bucho muito inchado e as guelras dilatadas. Corri à casa de banho. Lá dentro, a D. Manuela, a Manelinha como lhe chamam as colegas do seu serviço, comia uma pêra, bojuda e madura. Sempre estranhei que a D. Manuela escolhesse para comer a sua merenda da tarde o local onde as outras mulheres evacuam, urinam, trocam pensos higiénicos, libertam peidinhos malcheirosos e bufas sonoras. Adiante. Pois, a D. Manuela fixou os olhos na bolha de vidro que eu trazia nas mãos. Ao dar-se conta da imobilidade do bicho gritou. “Ai, Doutora, não me diga que o coitadinho morreu!”, disse ela. E, cruzando as mãos no peito, começou uma litania insuportável sobre o padecimento dos animais e de que era por isso, pela afeição que se cria aos bichinhos, que ela, apesar de solteira, não queria bichos lá em casa. Queria poupar-se, explicou, a essa dor imensa. No final suspirou e enfiou mais um pedaço de pêra pela goela abaixo. Eu fiz um ar grave e disse-lhe “Pois é”. Depois despejei o cadáver do peixe na retrete e puxei o autoclismo.

Pai

Depois de três meses na Índia, o meu pai volta amanhã para Portugal. As gralhas gigantes vão deixar de pairar por cima da sua cabeça. Deixarão de observar os seus passeios pelos campos na companhia do seu sobrinho Francisco e também as suas movimentações apressadas no jardim e no quintal. Uma roseira aqui. Um hibisco ali. Cortem aquela papaeira. Podem a mangueira. Reguem os limoeiros que estão junto ao muro. As gralhas preparam-se para a ausência do meu pai e para a monção que não tarda a chegar. Do lado de cá, a minha mãe desdobra-se em preparativos e arrumações para que tudo esteja perfeito. Correu hoje ao cabeleireiro a arranjar-se, ela que é tão bonita. Penso no meu pai, na minha mãe, no meu primo Francisco Anastácio, o homem dos olhos doces e dos abraços sinceros, sempre transpirado, sempre despenteado, penso nas perninhas de galinha, com sabor a limão, que a Jessica, sua mulher, me preparou para comer na viagem de comboio para Bombaim, e dá-me vontade de chorar.

2007/03/06

Cebola frita

Ao almoço uma amiga disse, com propriedade e alguma presunção também, não ter gostado do último livro da Agustina Bessa Luís. Discordei e perguntei-lhe porquê. Explicou que, na opinião dela, a escrita da Agustina se tornara “demasiado feminina e literária”. Anui. Em silêncio, continuei a mastigar rodelas translúcidas de cebola frita e pedaços de carne de porco mergulhados num molho de natas enjoativo. Mudámos de assunto. Ainda não percebi o que ela quis dizer.

Maniaco-depressiva

A Paz viajou em busca do silêncio
Sitiou Berlim
Abdicou em Londres
A Paz saltou dos olhos do poeta
Atacada de psicose maniaco-depressiva.

Foi nessa altura que as pombas
Solicitaram nas agências as tarifas
Mas não viram mais o poeta
Que gozava na Suiça
Duma licença graciosa.

A Paz saiu aos saltos para a rua
Comeu mostarda
Bebeu sangria
A Paz sentou-se em cima duma grua
Atacada de astenia.

Foi nessa altura que as pombas
Solicitaram nas agências as tarifas
Mas não viram mais o poeta
Que gozava na Suiça Duma licença graciosa.

José Afonso

(O médico olhou para o papel que trazia nas mãos. Retorceu o bigode. Depois disse “Minha senhora, confirma-se o diagnóstico”.)

Bilhete

Quero transformar-me em pó, cinzas, poeira, em nada. Tornar-me definitivamente no vazio, numa recordação, numa lembrança. Passar a ter apenas expressão nas fotografias que envelhecem devagar nos álbuns que fiz há muitos anos, quando era nova, quando me sentia nova. Habita-me uma dor que não sei, não consigo descrever. É uma dor que não se sente, mas que está lá, espalhada, derramada pelo meu corpo. Cobre-me, evanescente, como se fosse uma gaze translúcida. Só por estar lá, só por existir, não me ferindo, fere-me. De uma maneira insuportável. Ácida, a dor corrói-me por dentro. Às vezes, parece que tenho caruncho, um exército de insectos minúsculos dilacera-me, come-me os órgãos e os membros. Não consigo olhar-me no espelho. Mesmo, pela manhã, quando lavo o rosto e me penteio, executo esses gestos rotineiros sem nunca me olhar. Habito o meu corpo. É isso. Limito-me a habitar o meu corpo, invólucro de qualquer coisa que adivinho menor. Sinto constantemente um nó a estrangular-me a garganta. Sinto esse nó em cada segundo, em cada minuto, em cada hora que passa. Fujo de mim.

2007/03/05

Vício (3)


(Eu sei que não bate a bota com a perdigota. O que será uma perdigota?)

Vício (2)

Também corro o risco de me viciar nas revistas cor de rosa que não se param de falar da bancária maneta que mandou o amante brasileiro matar o marido alcoólico e que tem um filho pequenino, coitadinho, e outro, para aí de vinte anos, tão bicha, tão bicha, tão bicha, e feio, que uma pessoa, mesmo sem querer, sente dó de tal criatura. Uma tragédia.

Vício (1)

Não sou grande apreciadora de blogs. Há, na blogosfera, uma histeria colectiva, um sentimento de companheirismo e permanente discussão, uma vaidade, uma democraticidade que me aborrece. A democracia pode ser uma coisa tão sem graça. Mas tenho de dar a mão à palmatória. Há blogs únicos. Como este. Já me tinham falado da Bunny, do seu Xu e da vontade de ambos de procriar. É precioso. Corro o risco, sério, de me viciar neste blog.

2007/03/02

Laurinda

Gostava muito mais do Público de antanho. Por exemplo, neste, tão colorido e levezinho, não encontro os anúncios eróticos. Eu bem os procuro, entre suplementos, e nada. Depois, gostava que me explicassem, por que razão sou obrigada a levar com a Laurinda Alves à sexta-feira. O que é que eu tenho a ver com a Gracinda que a Larinda encontrou no recinto do santuário de Fátima e que, entre orações e devoções, lhe disse “gosto tanto, tanto, tanto, tanto, tanto de si!” Li aquilo e imaginei logo uma cena de engate entre a Laurinda e a Gracinda ao pé da capelinha das aparições. Depois fala das óperas a que assiste no São Carlos e tece elogios rasgados ao novo hospital da Luz. Tivesse a Laurinda bom senso e calar-se-ia com estas miudezas. Como ela bem sabe, o hospital da Luz, com as mordomias próprias dos mais caros hotéis, servirá apenas aqueles que o puderem pagar. Não faz mal que assim seja. O que chateia é que uma beata como a Laurinda, na sua coluna, se limite a falar dos que têm tudo e esqueça os que nada têm.

2007/03/01

Mariana

Sete saias tem Mariana
e um emprego em Miraflores.
Viveu ontem de recados
mas hoje vive de amores.

Sete carros vão chegando
pelas tardes de Belém,
com sete homens que a beijam
entre Sintra e o Cacém.

"Não tenho amores,
nem tenho amantes pois,
quantos amados não sei.
Tenho alguns amadores,
olha para mim,
lá na terra onde morei
escutava pela rádio o folhetim".

Sete saias tem Mariana,
à noite no Parque Mayer
dança bolero em dó menor
ali num cantinho qualquer.

"Ai de mim", diz Mariana,
se um dia amor me faltar
ao almoço eu já não como
e como menos ao jantar.

Fausto, Madrugada dos Trapeiros, 1978

Escola

Uma das razões que me faz gostar da escola do J. e da M. são os pais dos outros miúdos. Felizmente os tios do bairro fazem questão, nem que para isso tenham de fazer do cu três bicos, de manter a sua descendência nos colégios da zona. Acho bem. Gosto pouco de misturar os meus filhos com criancinhas que parecem Nunos Melo e Teresas Caiero pequeninos. Até ver só topei com uma tipa, cavaleira, claro está, de madeixas loiras, nariz adunco, feia de morrer, tratar o filho por você. Ela, a dizer “O Martim não sabe que a mãe não gosta de birras! Pare de chora, por favor!” e meia dúzia de pessoas a olhá-la de esguelha. Evidentemente, aquela mãe enganou-se na escola. A gente não a quer lá. À semelhança daquelas pessoas que não querem crianças ciganas a frequentar a escola dos seus filhos, eu não quero na escola dos meus este tipo de gente. Havíamos de fazer um boicote à mãe do pobre Martim.

Tina

Tina Modotti fotografada por Edward Weston (1927). Encontro, com facilidade, a beleza nas mulheres. Nos homens não.