(o meu primeiro blogue chamou-se Alice no País dos Matraquilhos. O segundo Pano-Cru. O terceiro 2º Andar Direito. Se o tivesse à mão dava-lhe um beijo na boca.)
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2007/07/31
Moka
Também gosto de olhar as montras das pastelarias. Há em mim uma inexplicável e antiga atracção pelas decorações dos bolos de aniversário. Agora estão na moda coberturas de maçapão coloridas. Detesto. Gosto de bolos decorados com cerejas cristalizadas, canudos de chocolate, creme moka, florzinhas de açúcar.
PSD
O PSD é um partido patético. A gente olha para o Marques Mendes ao lado do Alberto João, mendigando influências, e sente nojo, repulsa. A gente olha para o Luis Filipe Menezes, passeando pela praia de Matosinhos, sob o tórrido sol de Agosto, na companhia dos boçais da jota local, e sente pena. A gente olha para o Aguiar Branco, muito despeitado, cabelinho à marialva, amuado por não lhe terem dado troco e sente vontade de dizer “ó senhor, deixe de se armar aos cágados e vá a uma barbearia cortar decentemente o cabelo!”. E pensar que há coisa de quinze dias estive tentada a inscrever-me como militante. Os disparates que uma mulher faz por um homem.
2007/07/30
Otília
Não se chama Otília. Mas podia chamar-se. Otília é um nome redondo. Cilíndrico. Curvo. Gordo. Otília-Lua. Otília-Terra. Otília-Sol. Otília-Laranja. Otília-Bola. Otília-Berlinde. Otília-Melancia. Cruzo-me com ela quando, no final do dia, vou buscar os meus filhos. A hora da minha chegada coincide com a sua hora de saída. Trabalha num dos apartamentos do prédio dos meus pais. Não sei em qual. Tem um sorriso tímido. Escondido. Quase infantil. Parece uma menina grande. Vem sempre afogueada, cheia de sacos. O saco do lixo. O saco dos papéis, dos cartões. O saco dos vidros. O saco das embalagens. Deposita-os nos contentores coloridos que estão perto da porta da entrada. É nova. É bonita. Tem um tom de pele muito escuro. Deve ser guineense. Ou portuguesa, filha de guineenses. Tem a cor doce e amarga do chocolate para culinária. A cor das barras de chocolate Belleville que uso para fazer a mousse. É como se o seu corpo fosse feito de açúcar, pasta de cacau, manteiga de cacau e leite em pó. Apesar do corpo imenso, usa sempre roupas claras e decotadas. Roupas que lhe deixam a descoberto as formas. O seu corpo faz-me lembrar as antigas deusas da fertilidade que ilustravam o meu manual de História Universal do 7º ano. O meu olhar fixa-se sempre em dois pontos. Nas mamas e nos pés. Tem uns pés bonitos, inesperadamente pequenos. Os dedos muito certinhos, gordos, as unhas de um cor-de-rosa clarinho. As mamas, pelo contrário, são enormes, imensas. Parecem não ter fim, como se fossem florestas virgens, escuras, de vegetação cerrada, molhada, feitas de sombras, de sequóias, trepadeiras, arbustos espinhosos, musgos e fetos. Imagino-a a dar de mamar ao filho que, provavelmente, ainda não tem. Imagino-a com um namorado magrinho, de bigode ralo e olhos dengosos. Imagino-o a olhar para aquele peito, cheio de vontade de nele se afundar e, para sempre, se perder.
2007/07/29
2007/07/27
Ken
Tamborilo os dedos. Sinal de tédio. Vou correr. Agora toda a gente corre. Está na moda. O nosso primeiro-ministro, que faz lembrar o ken da barbie, tal é a artificialidade que lhe mina o corpo, também corre. É um homem estranho. Sobretudo, estranho. Parece feito de celulóide. Tento imaginá-lo na retrete ou a ter um orgasmo ou a chorar num funeral e não consigo.
Terra
«Ama-se um corpo como o êxtase de um terror paralítico. Ou como orientação ao impossível que não está lá. Com raiva desespero de quem já não pode mais e não sabe o quê. Como avidez insuportável não de o ter tido na mão, porque o podemos ter nela, sofregamente, boca seios o volume quente harmonioso da anca e tudo esmagar até à fúria, ter o que aí se procura e que é o que lá está, mas não o que está atrás disso e é justamente o que se procura e se não sabe o que é nem jamais poderemos atingir.»Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra
(Não é fácil viver dentro de um corpo morto.)
2007/07/26
Pensão Imperial (2)
Não é fácil encontrar uma mulher cujo rosto não lembramos. Mesmo que seja a mulher que amamos. Adriano procurava Amélia. Sentia que era capaz de a encontrar pelo cheiro. Um cheiro estranho, bom, mas de coisas desconhecidas. Cheiro de chuva, talvez. A caminho da pensão imperial, no metro, nos cafés, nas ruas, andava sempre com o nariz no ar. Farejava como um cão de caça. Aqui e ali. Só lhe chegavam outros cheiros. Perfumes enjoativos. Gotas de suor cobrindo corpos cansados. O cheiro a ranço que, logo pela manhã, escapava do quarto da D. Alzirinha e se espalhava por toda a pensão, até pela praça. Nada nem ninguém cheirava a chuva. Teria Amélia perdido o seu cheiro? Nesse caso, pensava Adriano, nada mais lhe restaria para a encontrar. Lembrava-se da sua roupa. Dos acessórios que usava. De tudo o que é efémero e se confunde. Não se lembrava porém nem das mãos nem do rosto de Amélia. Tentava e não conseguia. À noite, antes de adormecer, fechava os olhos. Fixava-se num pormenor. Na boca. Ou nos olhos. A partir daí tentava construir-lhe um rosto. Raramente o conseguia fazer.
Medo
A montanha pariu um rato. O artigo do medo do Manuel Alegre tem honras de primeira página, direito a análise e comentários prolongados. O artigo não diz nada de novo nem de interessante. A gente já conhece aquela conversa de trás para a frente. Mas há quem, catapultando um artigo que nada diz, já se organize em abaixos-assinados, passeatas, manifestações para defender a democracia, a liberdade, a herança de Abril. É o caso do Jerónimo de Sousa, do Carvalho da Silva do camarada Saramago, gente que devia lavar a boca com lixívia antes de falar de liberdade.
2007/07/25
Caril de caranguejo
Associo o passeio de ontem, por precipícios de betão, a uma memória antiga. De tão distante e inicial, não sei se é sonho ou realidade. Tenho quatro anos. Estou numa cozinha. Abro a porta do frigorífico, da geleira, como se dizia no país das planícies infinitas, dos bichos, grandes e pequenos, das cidades cor-de-rosa batidas pelo mar, das lagartas leitosas crescendo por baixo da minha pele. Procuro o boião azul celeste onde a minha mãe guarda o leite condensado. Está numa das prateleiras da porta. Abro a embalagem. Enfio o dedo no líquido fresco, de consistência grossa, a fazer lembrar um caramelo branco. Meto-o na boca. É um instante de prazer que se esgota rapidamente. O prazer, seja ele qual for, tem mesmo que ser efémero. Volto a guardar a embalagem no frio. Reparo então que, ali ao lado, em cima de uma mesa, está uma travessa com caril. Não é caril de frango. Nem de peixe. Nem sequer de vegetais. É caril de caranguejo. Por isso, passados tantos anos, o recordo. A estranheza que me causa tal caril resulta de os caranguejos cozinhados serem muito pequenos, daqueles que encontramos imóveis nas rochas da praia e se esgueiram, velozes, por grutas e fendas mal pressentem um movimento ou uma sombra. O que há de comum entre os telhados tristes de ontem, o leite condensado e os caranguejos anões de Lourenço Marques? Não sei. Calhando nesse dia distante, em que olhei os caranguejos pequeninos do caril da minha mãe, o tempo também estava assim. Um calor pesado, a fazer curvar os corpos, a empurrar-nos os olhos para o chão. Um céu, cinzento, ameaçando com trovões e relâmpagos.
Mauser TV
Ontem, não sei se por causa do calor e da chusma de insectos que o verão sempre traz à cidade, só consegui respirar no telhado do prédio dos meus pais. Não sei como lá fui dar. E, no entanto, foram as minhas mãos que, no elevador, marcaram o décimo andar. Foram os meus pés que subiram as escadas de sol ladeadas pelos vasos da D. Fernanda. Foram os meus braços que empurraram a porta que separa o interior do exterior. Foram os meus olhos que observaram as placas de zinco que cobrem os telhados e também o cinzento do céu a anunciar trovões e relâmpagos. Foram os meus ouvidos que escutaram os ruídos distantes vindos do mundo lá em baixo. Os carros e o resto. Os gritos das famílias ciganas nos prédios do bairro social. Foram as minhas pernas que treparam os muros e me levaram para perto das chaminés e das antenas parabólicas. Grandes como cogumelos venenosos gigantes. Com letras cor de laranja desenhadas. Mauser TV. (Muitas vezes, sinto as veias estranguladas, entupidas de lixo. Há moscas varejeiras que vivem dentro de mim, alimentando-se da impudicícia que por cá há. Voam até acima e falam-me ao ouvido. Dizem-me sempre o mesmo.)
2007/07/24
Corpo (2)
Vou para a casa de banho dos meus filhos. Abro a torneira. Dispo-me. Em cima da bancada, um copo amarelo com as escovas de dentes do Whinny e do Mogli, um quadro que pintei para o quarto do João, mas que nunca pendurei, mil e um cremes, Klorane, Lâncome, Mustela, uma caixa de toalhetes. Olho-me novamente no espelho. Aquela que ali está, do outro lado, sou eu. Preferia que não fosse, mas sou. Um metro e meio de altura. Cinquenta quilos de carne, ossos, pele, cartilagens, órgãos, músculos, vísceras, líquidos. Cabelo preto, comprido, liso, à força de tanto o esticar. Alguns cabelos brancos, que não vejo. Olhos escuros. Um nariz grande, redondo. Uma pele de merda, cheia de poros abertos, pontos negros, vermelhidões. Umas mamas cada vez mais pequenas, cada vez mais caídas, como se fossem flores murchas dentro de uma jarra. Olho para a mancha castanha enorme na coxa esquerda, uma mancha estranha, irregular, que tem o recorte do mapa da Inglaterra. Onde ficará a Cornualha no mapa que tenho delineado no corpo? Sempre quis conhecer a Cornualha, as praias verdes e cinzentas, ventosas, o mar furioso, agreste, escuro. Só a minha irmã é capaz de perceber este desejo de conhecer a Cornualha. Tenho as pernas cobertas de cicatrizes. Estico os braços, vejo as minhas mãos pequenas, rodo-as para cima, em direcção do tecto. Vejo, no meu pulso direito, as marcas, quase invisíveis, de dois cortes. Ninguém dá por elas, ninguém as vê, é como se não existissem. Mas eu sei que estão lá e nunca as esqueço. Nunca as esqueço. É este o meu corpo. Tomai-o em nome de Deus. Às vezes, tenho vontade de o abandonar para sempre.
Corpo (1)
Acordo. Abro os olhos. Na mesa de cabeceira, dois livros, um deles nunca o lerei, uma revista, um copo de água vazio, o caroço do damasco farinhento que comi antes de adormecer, a minha aliança pousada em cima do despertador. Olho para o despertador. Marca sete horas. Na verdade, ainda não são sete horas. Adianto sempre o relógio um quarto de hora. São seis horas e quarenta e cinco minutos. Fico deitada na cama, naquela dormência própria do despertar, a olhar para o relógio. Deixo-me ficar até que passem quinze minutos, até que o relógio marque sete horas e quinze minutos. Esses minutos, que marcam a diferença entre a hora que realmente é e aquela que o despertador me mostra, alongam-se, esticam-se, prolongam-se, demoram muito tempo a passar. É como se dentro de cada minuto houvesse mais segundos, não sessenta, mas cem, duzentos, trezentos, segundos dentro de cada minuto. Todos os dias este ritual se repete. Fico parada a olhar para os números, direitos, levemente inclinados para a direita, feitos de tracinhos verdes, à espera que passem: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, quinze. É um jogo, um jogo pateta, que gosto de jogar. Quando o despertador me mostra o número quinze, levanto-me. Sento-me na cama. Olho para o espelho; vejo os meus olhos inchados, a pele do rosto gordurosa, o cabelo despenteado, num desalinho. Assustadora, sinto-me assustadora. Sou especialmente feia quando acordo, o meu nariz parece maior quando desperto. Não gosto da imagem que o espelho me devolve. Levanto-me. Há um silêncio absoluto nesta casa. É o silêncio dos espaços amplos e vazios, das manhãs claras, dos sons calados, das fotografias antigas, amarelecidas, esquecidas dentro de gavetas de madeira carunchosa, com cheiro de cera e óleo de cedro. Apenas se houve, no rádio, baixinho, a voz da locutora da TSF.
2007/07/21
2007/07/20
General Tito
Durante o julgamento a Maria Odete chorou sempre. Os juízes a inquirirem as testemunhas e ela a fungar, a soluçar, a soltar gemidos prolongados que pareciam guinchos de ratos. Nas alegações finais, enquanto um dos advogados falava, começou a bater com as mãos no peito. Um despropósito, um exagero, parecia uma mulher cigana, não a esposa de um general. O juiz interrompeu a audiência e mandou-a sair. Ela olhou-o ofendida. Sr. Doutor, eu saio, mas não calo o amor que tenho ao meu marido!, disse ela. Mais valia estar calada. Nunca foi uma mulher muito inteligente. Ainda hoje me pergunto como consegui tirar o curso de enfermagem. Quando a conheci vivia num lar de freiras, na Rua da Sociedade Farmacêutica.
Eu ia buscá-la aos domingos para a matiné do cinema Condes. Nesses dias vestia sempre a farda e a Maria Odete usava um vestido rodado, de um verde profundo. Era um verde-musgo que me fazia lembrar os bosques de castanheiros da índia que ficavam por trás da casa dos meus pais. Com aquele vestido a Maria Odete ficava quase, quase, bonita. Tenho saudades dessas tardes mansas de cinema no Condes. Na audiência, quando o procurador a chamou a depor, ela jurou a pés juntos que não sabia de nada. Vinte anos a viver comigo e que não sabia nada, insistiu ela. Fez-se um silêncio na sala de audiências. Um silêncio de túmulo, prolongado que parecia não ter fim. Ninguém acreditou nela. O Procurador, como um cão esfaimado, raivoso, começou a questionar a Maria Odete e a pobre, encolhida, a responder-lhe, senhor doutor isto, senhor doutor aquilo, a desvendar-lhe a nossa intimidade, a explicar-lhe que eu não admitia poucas vergonhas lá em casa, que era um homem de respeito, muito conservador, um verdadeiro militar. Cada um tinha a sua casa de banho e à noite a casa mergulhava na mais completa escuridão. Toda a gente pensou que ela estava a mentir. Mas a Maria Odete não é capaz de mentir. A mentira exige inteligência e habilidade e ela é burra, burra que nem uma porta. Coitada. É uma boa mulher, a Maria Odete, limpa, boa cozinheira e muito obediente na cama. Por isso a escolhi. No dia da leitura da sentença, ficou sentada mesmo atrás de mim. Trazia um vestido verde-musgo. Eu lembrei-me outra vez dos bosques de castanheiros da índia que ficavam atrás da casa dos meus pais.
(O Público lembra hoje a extraordinária história da generala Teresinha ou do general Tito. Não sei como lhe chamar. Morreu na miséria e só numa casa forrada com placas de zinco.)
Eu ia buscá-la aos domingos para a matiné do cinema Condes. Nesses dias vestia sempre a farda e a Maria Odete usava um vestido rodado, de um verde profundo. Era um verde-musgo que me fazia lembrar os bosques de castanheiros da índia que ficavam por trás da casa dos meus pais. Com aquele vestido a Maria Odete ficava quase, quase, bonita. Tenho saudades dessas tardes mansas de cinema no Condes. Na audiência, quando o procurador a chamou a depor, ela jurou a pés juntos que não sabia de nada. Vinte anos a viver comigo e que não sabia nada, insistiu ela. Fez-se um silêncio na sala de audiências. Um silêncio de túmulo, prolongado que parecia não ter fim. Ninguém acreditou nela. O Procurador, como um cão esfaimado, raivoso, começou a questionar a Maria Odete e a pobre, encolhida, a responder-lhe, senhor doutor isto, senhor doutor aquilo, a desvendar-lhe a nossa intimidade, a explicar-lhe que eu não admitia poucas vergonhas lá em casa, que era um homem de respeito, muito conservador, um verdadeiro militar. Cada um tinha a sua casa de banho e à noite a casa mergulhava na mais completa escuridão. Toda a gente pensou que ela estava a mentir. Mas a Maria Odete não é capaz de mentir. A mentira exige inteligência e habilidade e ela é burra, burra que nem uma porta. Coitada. É uma boa mulher, a Maria Odete, limpa, boa cozinheira e muito obediente na cama. Por isso a escolhi. No dia da leitura da sentença, ficou sentada mesmo atrás de mim. Trazia um vestido verde-musgo. Eu lembrei-me outra vez dos bosques de castanheiros da índia que ficavam atrás da casa dos meus pais.
(O Público lembra hoje a extraordinária história da generala Teresinha ou do general Tito. Não sei como lhe chamar. Morreu na miséria e só numa casa forrada com placas de zinco.)
Castração
“Com esse cabelo preto deves ter um bom grelo. Lambia-to todo! Ouvi isto às 9 da manhã, numa das ruas dos meus dias. Dito, quase aos berros, por um gordo, de bigode farto, fato escuro e a Bola debaixo do braço. Tentei fugir-lhe, mas, no semáforo, o gordo voltou a abordar-me. Acho absolutamente justificado o meu desprezo pelos homens em geral. Com excepção do meu filho, que tem a pilinha mais linda do mundo, deviam ser castrados. De forma dolorosa, se possível.
2007/07/19
Ensaio sobre a parolice (5)
A parola genuína vai ao cinema com o parolo genuíno para ver os filmes do Van Damme. Os filmes preferidos da parola encoberta são aquelas imbecilidades insuportáveis, tipo “Chocolate”, com a Juliette Binoche. O marido da parola genuína veste-se de fato de treino durante o fim–de-semana. A parola encoberta exige que o marido, durante o fim de semana, use camisinhas às riscas, calça vincada de sarja, creme ou azul-escuro. A parola genuína não tem educação. Não completou sequer o ensino básico. A parola encoberta estudou. É quase sempre licenciada. Por vezes, tem uma pós-graduação ou um curso de especialização, tirado numa universidade privada qualquer. Algumas parolas encobertas têm mesmo mestrados e doutoramentos feitos em Badajoz. Olé. A parola genuína acha que a Zara e a Mango são boas marcas de roupa. A parola encoberta sonha trocar as lojas dos centros comerciais pelas lojas de marca da Avenida da Liberdade. A parola genuína come de boca aberta, arrota e mastiga com vigor. A parola encoberta come direitinha, como se tivesse sido empalada, e limpa os beicinhos com a ponta do guardanapo de papel que coloca no colo. O sonho da parola genuína é ser uma parola encoberta. O sonho da parola encoberta é ser igual à Bárbara Guimarães.
Ensaio sobre a parolice (4)
A parola genuína gostava de ter um carro qualquer (se pudesse, escolheria um Opel Tigra) para não ter de andar de comboio e de camioneta. A parola encoberta tem um Volkswagen Polo, que paga às prestações, mas sonha ter um Audi A2 ou A3. A parola genuína, por falta de alternativa, tem os filhos nas piores escolas públicas. A parola encoberta faz do cu três bicos para ter os filhos num colégio particular qualquer desconhecido. Gostava mesmo era de os ter no São João de Brito ou no Manuel Bernardes. A parola genuína sonha em deixar de passar o mês de Agosto nos parques de campismo da Costa da Caparica. Quer ir para Quarteira ou para Armação de Pêra. A parola encoberta quer trocar o apartamento arrendado, à quinzena, em Albufeira pelos resorts de Punta Cana ou Varadero. A parola genuína foi uma vez, numa excursão, ver a neve na Serra da Estrela. A parola encoberta vai todos os anos, com o marido e os filhos, fazer férias de neve à Serra Nevada e a Andorra. A sopeira genuína fala da Quinta das Celebridades e das telenovelas da TVI. A parola encoberta vê exactamente os mesmos programas (neste ponto são iguais, nada as distingue).
2007/07/18
Ensaio sobre a parolice (3)
A parola genuína lê a TV Guia, a Maria, a Mariana, a Ana, a TV Setedias. Já a parola encoberta lê a Caras, a Vogue e a Blue Living. A parola genuína, pura e simplesmente, não lê livros. Nunca entrou numa livraria. Nem quer. A parola encoberta lê livros do Paulo Coelho, da Margarida Rebelo Pinto, do Nicholas Sparks. Já leu, evidentemente, o Código Da Vinci, o Equador e o Codex não sei das quantas. Ficou satisfeita consigo própria por ter sido capaz de ler livros com tantas páginas. Entre toda a porcaria que lê, apenas se salvam, com alguma boa vontade, os cansativos, sempre iguais, romances da Isabel Allende. A parola genuína assume as suas banhas. Está a borrifar-se para a celulite e para as estrias. A parola encoberta quer ser linda. Besunta, pela manhã e à noite, o corpo com cremes anti-estrias e anti-celulite, caríssimos, esverdeados da Vichy e da Clarins. Gasta rios de dinheiro com produtos de perfumaria e de maquilhagem. Fez nuances para ficar com uns reflexos louros no cabelo. A parola genuína compra na Feira do Relógio, no Lidl, no Minipreço. A parola encoberta faz um ar de nojo quando se fala no Lidl. Diz que prefere fazer as suas compras nos supermercados do El Corte Inglês ou do Pingo Doce. O sonho da parola genuína é sair do Catujal, dos Unhos ou de Camarate e ir viver para um apartamento de quatro assoalhadas na Quinta da Piedade. O sonho da parola encoberta é ir viver para o Parque das Nações ou para o centro de Lisboa.
Ensaio sobre a parolice (2)
Depois, por muito que me custe, tenho que admitir que, por enquanto, as mulheres são mais parolas do que os homens. São. Não vale a pena negar. Está-lhes, está-nos, no sangue. No entanto, o número de espécimes masculinos parolos tem vindo a aumentar a um ritmo estonteante, fulgurante, preocupante. Cada vez há mais parolos. Daqueles que aparecem nas revistas cor-de-rosa, tipo Nuno Eiró, que participam nos concursos da TVI e da SIC, daqueles que se preocupam, obstinadamente, com a imagem, que usam gel na cabecinha oca, que abusam dos perfumes, que vão ao solário, que vão aos cabeleireiros da moda para ficarem com um ar despenteado, informal. Fazem cristas. Usam óculos escuros enormes. Parecem umas moscas varejeiras. Porém, apesar deste avanço, em matéria de parolice, as mulheres continuam a ganhar aos pontos. Adiante. Grosso modo, há duas categorias de parolas. A parola genuína e a parola encoberta. A parola genuína é o que é. A parola encoberta é aquela que, sendo parola, vive na ilusão de que o não é. Acha-se até uma mulher moderna, com um quê de sofisticação. Escusado será dizer que prefiro, de longe, a parola genuína à parola encoberta. Eu explico porquê.
Ensaio sobre a parolice (1)
Abordo o assunto da parolice. É matéria importante. Devia preocupar-nos enquanto nação, uma vez que, mais coisa menos coisa, somos um país de parolos e parolas. É uma espécie de flagelo nacional. Até as nossas crianças aprendem a ser precocemente parolas. O sonho de qualquer criança é fazer um casting e ser vedeta numa das telenovelas da TVI. As meninas com 11 ou 12 anos querem ser iguais à Britney Spears. Vêem os Morangos com Açúcar. Vêem todas as outras telenovelas da TVI e da SIC. Pintam as unhas com produtos baratos comprados em lojas chinesas. Fazem madeixas no cabelo. Vão passear para os centros comerciais, com mini-saias curtas, que escondem peidinhas virgens, cobertas de triângulos de penugem. Usam telemóveis. Vestem-se, muitas delas, como se fossem umas putas. Há tempos vi uma miúda que não devia ter mais de dez anos. Vestia uma t-shirt mínima, que lhe deixava a descoberto o umbigo e os ombros. A t-shirt tinha escrita uma frase qualquer que não recordo. Só sei que uma das palavras estampadas na t-shirt era “sexy”. Eu olhei para aquela miúda e imaginei-a a perder a virgindade aos doze anos. Uma miúda destas, que passa a infância, a ver as telenovelas e a sonhar ser igual à Luciana Abreu, a beata mais atarracada do mundo, está perdida. Irremediavelmente perdida. Quando crescer vai conseguir alcançar um feito inultrapassável: ser ainda mais parola do que a sua mãe.
Faustino Manso
Compreendam as razões pelas quais me desgosta o José Eduardo Agualusa. Esqueçam a estrutura narrativa confusa, as personagens levemente pretensiosas, as referências literárias forçadas. Tudo isso se perdoa e se esquece. Outros dislates, porém, não consigo esquecer. Primeiro chama velhas às canções do Jacques Brel. Segundo, utiliza a palavra defecar e defecadores. Acho que isto diz tudo. Agora que é muito giro, repito, lá isso é.
2007/07/17
Tebaldo
Durante três horas o homem roncou. O bravo Tebaldo a agonizar no palco e ele ao meu lado a dormir profundamente, prolongando o ronco até ao insuportável, acordando volta e meia, engasgado, para dar uma tossidela ou duas, cof-cof, depois voltando ao seu sono ruidoso de homem velho. Durante três horas o homem roncou. As pessoas da fila da frente voltaram-se indignadas. A mulher, do outro lado, beliscou-o várias vezes. Do balcão chegou mesmo um chiu feroz. Mas nada incomodou o grande roncador. No intervalo, explicaram-me que é psiquiatra, uma sumidade na sua área. Parece que é um espectador assíduo. Vai, com frequência, a concertos de música clássica, a espectáculos de teatro e ópera. Ressona alarvemente em todos. Um fio de baba escorrendo-lhe da boca. Desejei ardentemente que o bravo Tebaldo, tão bonito, saltasse do palco e que, com um golpe certeiro, lhe enterrasse a lâmina na carne, calando-o para sempre. Mas nada. Nem Tebaldo, nem Mercúrio, nem o sonso do Romeu, se mexeram. Uns palermas. Durante três horas o homem roncou. Quando o espectáculo terminou acordou sobressaltado. Depois levantou-se e, com alarido, aplaudiu. Até gritou um bravo. Como é bom ir ao teatro.
Etiópia
Na Etiópia, país distante de gente esguia, 34 adversários do primeiro-ministro Zenawi, foram condenados a prisão perpétua. Há coisa de dez anos, um casal goês esteve, durante alguns dias, em casa dos meus pais. Ela chamava-se Belmira, pintava os lábios de vermelho escuro e tinha uma gargalhada fácil. Não me recordo do nome do marido. Era um homem titubeante, franzino, frágil. Eram afáveis. À despedida abraçaram-nos como se nos conhecessem há muitos anos. A minha mãe, tão portuguesa, estrangulada pelo abraço da D. Belmira, olhava-me de viés, como que a dizer ai filha, que exagero, salva-me desta mulher. Trabalhavam ambos nas Nações Unidas. Viviam em Addis-Abeba. Falavam, com orgulho, da sua vida, da sua cidade de areia. Eu escutava-os com atenção e inveja. Penso muitas vezes neles.
2007/07/16
PSD (2)
Percebo, agora, que, em sonhos, estive à beira de cumprir um desejo antigo de infância: casar com um médico. Sou filha de duas enfermeiras. Passei a infância e a juventude a ouvir falar no Dr. Lucas, cirurgião em São José e no Dr. Sá Couto, pediatra na Estefânia. Herdei, pois, das minhas mães o deslumbre bacoco pelos médicos. Mas contará o Luis Filipe Menezes como médico? Tenho dúvidas.
2007/07/15
2007/07/13
Mata-Bicho
Antes de adormecer penso em nomes. Nomes para livros, nomes para filhos, nomes para filhas, nomes para crónicas, nomes para contos. Há um certo masoquismo nesta tarefa de encontrar nomes para filhos que já não me nascerão, títulos para enxames de palavras que nunca escreverei. Encontro, sempre encontrei, alívio na dor. Se tivesse outra filha chamava-lhe Rosa. Se tivesse outro filho Gaspar. Se escrevesse um conto, uma história, qualquer coisa, usaria uma prosa açucarada e chamava-lhe “Mata-Bicho”.
Desabafo matinal
Se há coisa que me amofina são pessoas que lêem para depois mostrar que leram. Os livros feitos medalhas que enterramos nas nossas carnes. Pois que fique assente: também já li os clássicos russos.
2007/07/12
Quelimane
Todas as famílias têm segredos. A minha família é pródiga em histórias, incertezas, meias verdades, omissões, em calar a dor. Olho para os meus irmãos. Não vivo longe deles, sem as vozes dos filhos deles chamando-me tia. Um dia partiremos para Quelimane. Lá encontraremos o homem que engoliu o mar e, na sombra de uma árvore frondosa, enroscada numa capulana garrida, a menina que escutava canções do Roberto Carlos.
2007/07/11
Ferrugem (início)
A boca ficou a saber-me a ferrugem, disse Laura enquanto se vestia. Depois abriu a janela e cuspiu. Olhou as árvores do quintal. A nespereira estava carregada de frutos podres e, perto do muro, um limoeiro oferecia-se a quem passava na rua. Laura puxou a saliva e cuspiu outra vez antes de fechar a janela. O silêncio espalhava-se pelo quarto, tão denso e baço que parecia poder cortar-se às fatias. Virou-se para o espelho e começou a escovar os cabelos. Tinha-os longos, muito lisos e brilhantes. Sabes, o sangue é que costuma saber a ferrugem, continuou sem esperar resposta. Por cima da cómoda um gato de loiça olhava-a com olhos moles de preguiça. Só ele parecia escutar as palavras de Laura. A mulher apanhou o cabelo e prendeu-o com um elástico. Tirou da mala um desodorizante. Isso geralmente sabe-me a ervas frescas esmagadas, disse enquanto vaporizava as axilas com um cheiro mentolado. Olhou em redor à procura dos sapatos. Descobriu um por baixo do reposteiro e outro aninhado por baixo da cama, entre sacos de plásticos e bolas de cotão. Calçou-se. Os pés denunciavam-na sempre. Mais do que a voz ou a forma quadrangular do tronco. Por mais que pintasse as unhas, por mais que amaciasse a pele com cremes e óleos, tinha pés ossudos, pés de homem. O professor do 4º direito, para a arreliar, quando a ouvia queixar-se da masculinidade de tais membros, dizia-lhe que ela tinha pés de deus grego, pés de Hércules, de Jasão, de argonauta, de Ulisses, uns pés iguaizinhos aos de Cristo na cruz. Ria-se o professor e quando ria abria muito a boca e mostrava a glote (?) que tinha a forma perfeita de um sino. Laura não achava graça. Se pudesse entraparia os pés como as chinesinhas de antigamente. Ainda por cima calçava o 44. Era uma chatice para arranjar sandálias de salto alto.
2007/07/10
Uganda
Esta noite sonhei com o Uganda. Sonho já esboroado e distante. Na clareira de uma floresta, duas meninas correm. Devem ter dez ou doze anos. Vestem uma espécie de uniforme. Camisas brancas, desfraldadas, e saias azuis, pregueadas. Têm o cabelo entrançado. São bonitas e felizes como todas as meninas que conheço. Ouvem-se cigarras, outros barulhos de Verão. As meninas correm em liberdade. Oiço o eco das suas gargalhadas pequenas. De repente, a expressão dos seus rostos altera-se. O pânico e o medo tomam conta dos seus corpos. Fogem do que não se vislumbra. Fogem de sombras que se escondem entre as árvores que limitam a clareira. Sombras que têm a forma de homens velhos e gangrenados.
(Como explico este sonho? A Dra. D., em cujo divã nunca me deitei, com certeza, teria para ele uma interpretação de cariz sexual. O meu medo do sexo. Eu sou uma das meninas. As sombras que espreitam atrás das árvores representam o meu pai. Eu tenho medo do sexo porque no fundo, bem lá no fundo, tenho medo dos homens, os quais, de uma forma ou doutra, associo sempre à figura paterna. Sei lá. A semana passada, num final de tarde, entre um scone e uma meia de leite, li uma reportagem num suplemento de domingo que encontrei esquecido numa mesa de café. Falava das bolsas de castidade que o governo do Uganda atribui às meninas que recusam ser escravas sexuais e optam por se manter virgens até ao casamento. Acho que sonhei com as meninas do Uganda porque a miséria dos outros me conforta sempre. Dá-me a precisa dimensão da pequenez dos meus padecimentos. Mas esta explicação, simples e assexuada, a Dra. D. não aceitaria.)
2007/07/09
IC 19
Um homem novo conhece um homem mais velho. Tem um corpo seco e esguio. As suas mãos e os seus braços são grandes. Tão grandes que parecem poder estrangular o mundo. Tornam-se amantes. A primeira vez que dormem juntos, o homem mais velho confessa que é casado, pai de três rapazes adolescentes. Também conta que vive, com a mulher e os filhos, longe da cidade, numa moradia, em Sintra. Tenho uma piscina grande e dois setter irlandeses, diz com satisfação. Fala pausadamente. Afirma que nunca deixará a sua mulher. Explica que a ama, que a quer, que ainda a deseja. Mente. O homem mais velho sabe que a mentira é eficaz para se criar uma verdade. O homem novo não responde. Pede apenas que o abrace. Quer sentir os braços de gigante à volta do corpo. Continuam a encontrar-se, sempre ao entardecer, quando os seus corpos deixam de ter sombra. O homem novo decide vender a sua casa no centro da cidade. Uma casa feita de luz que acolhe os ruídos dos pássaros e os murmúrios do rio. Para estar perto do homem mais velho, compra um apartamento em Queluz. Um quarto estreito. Uma cozinha pequena de azulejos azuis com electrodomésticos Bosch.Uma sala com uma janela rectangular que dá para uma rua triste, inclinada, que desemboca numa rotunda. Ao fundo, vê-se a IC 19. Agora, todos os dias, o homem mais velho, antes de voltar à sua moradia, à sua mulher, aos seus três rapazes, aos seus setter irlandeses, passa por aquela rua. Nela estaciona o seu Audi cinzento. Sobe até ao 4º direito e, por breves momentos, com brusquidão, entra naquele outro homem que, por uma migalha do seu amor, prescindiu de viver.
Noite
Nunca aqui escrevi sobre o primo Renato, goês delicado, de infindável ternura. Nem sobre o Cristo falante que, numa tarde de mornidão, mandou o tio Rosário gastar o dinheiro da casa no jogo. Também nunca escrevi sobre a noite vista do terraço, o fio de palmeiras, indicando o caminho para Rachol, onde mil morcegos habitam as profundezas do claustro, matilhas de cães vadios roendo a escuridão, o pequeno arbusto de tulsi, com um pau de incenso ardendo em sinal de respeito. Durante a noite os deuses habitavam o quintal. Comiam chicus e limas. Brincavam com os lagartos e os esquilos. Escondiam as garrafas de vinagre e de feni entre as ervas altas. Só para arreliar a tia Maria.
Tango
Noite fora, na televisão, enquanto os outros dormem, deparo com um filme que sempre me suscitou curiosidade. Foi um dos primeiros filmes que a tia Dé viu depois da revolução. Vejo o Marlon Brando. Velho. Com o olhar toldado. Como se estivesse louco. Vejo a Maria Schneider. Cheia de caracóis. O cabelo macio. Feito de lã. Ou de bocadinhos de nuvem. Reparo nos seus seios duros, espetados, que assomam no decote em v da camisola de malha lilás. O filme corre sem interesse. Às tantas, deparo com a tal cena do pacote de manteiga. Sempre ouvi falar desta cena. Pensei que fosse erótica. Ou sensual. Enganei-me. É uma cena dolorosa. A Maria Schneider chora. O Marlon Brando grita-lhe ao ouvido. Fala-lhe de Liberdade e da Sagrada Família enquanto a cobre. Apago a televisão. O aparelho agoniza. Emite um gemido de ruídos pequeninos e electrizantes. Deixo os dois amantes dentro do televisor, tomando-se um ao outro como se fossem animais. É uma merda de filme. Não vale um caracol. Sento-me no chão da varanda. Fumo um cigarro. Descubro ao meu lado o tubinho para fazer bolas de sabão de um dos meus filho. Inalo o fumo. Depois expiro para dentro das bolas de sabão. Em vez da habitual transparência, as bolas ficam turvas e pesadas. Aguentam durante breves segundos. Depois, puf, explodem em fiozinhos de fumo. Volto a pensar nas tais palavras. Liberdade e Sagrada Família. São incompatíveis. Há que optar por uma ou por outra.
2007/07/05
Lobo Mau
Enquanto pedia à D. Beatriz, que é baixa, gorda, de cabelos cor de cenoura e olhos verdes, muito pintados, a fazer-me lembrar guerreiros neozelandeses, um maço de cigarros e o jornal, uma rajada de vento enfunou-me a saia de pregas, despenteou-me o cabelo, levantando-o no ar, como se fosse um corpo único, e fez abanar, com indelicada brusquidão, a estrutura do quiosque. Estremeci. Não gosto de vento. Nada mesmo. Ao ouvir os tremores das placas, para esconder o pavor que tenho a ventanias, disse-lhe "Ó D. Beatriz, qualquer dia isto ainda lhe cai tudo em cima!". Ela olhou-me e não me respondeu. Estranhei. Guardei o troco devagar, à espera da resposta. Ela nada. Olhos muito parados. Vítreos. Um olhar imbecil a traçar-lhe o rosto. Como se tivesse fumado uma ganza ou estivesse na fase terminal de uma bebedeira. Não me disse nada. Vim-me embora. Deixei-a no seu pagode chinês, de olhos parados, entre jornais, revistas, isqueiros, fascículos, lenços de papel, pastilhas e meias. Muda. Calada. Com o tal olhar imbecil colado ao rosto. Atravessei a rua e lembrei-me, sei lá porquê, de uma certa noite num certo parque de campismo, perdido no norte de Espanha. Ventava furiosamente. Ao ponto de dobrar a estrutura da tenda, trazendo junto de mim, deitada, imóvel, petrificada, os fustigadores tecidos oleados. Senti pânico. O medo a entrar-me pelos orifícios todos do corpo, tomando conta das pernas, dos braços, do tronco, da cabeça, de tudo o que há lá dentro. Passei a noite em claro. Exausta. Sem conseguir dormir. Ao meu lado, o meu marido, que nessa altura ainda não era meu marido, ressonou a noite toda. Ruidosamente. Fazendo um coro sinistro com os assobios furiosos do vento. Odiei-os. A ambos. Ao vento, pela fúria, pelo medo que me provocava. Ao meu então namorado pela indiferença que tinha ao meu medo. Mas isso já foi há muito tempo. Há muitos anos. A verdade é que continuo a ter medo do vento. É um medo infantil de se ter. Porventura, digo eu, terá a ver com as histórias que ouvi em miúda. Porquinho, porquinho, deixa-me entrar! Pelas barbichas do meu focinho que não hei-de deixar! Então, o lobo mau soprou, bufou, gritou. E a casa foi pelos ares.
2007/07/04
2007/07/03
Pantagruel
Não gosto de dar sugestões de leituras. Muito menos de partilhar livros. Ao contrário dos que alardeiam, com gritos de indignação, não me queixo de que se lê pouco e mal em Portugal. Na verdade, estou-me nas tintas para o que os outros gostam de ler. Mas detestaria que os meus livros, os que leio e me passam a habitar, resvalassem para as mãos de toda a gente. Tornar-se-iam banais. Deixariam de ser objectos únicos que se amam com as mãos. Tenho um amor táctil pelos livros. Mas, pronto, para demonstrar boa vontade, faço uma sugestão: Pantagruel, de Rabelais. É divertido, desbragado, mordaz, inventivo, muito fácil de ler, apesar de escrito há quinhentos anos. Há uma edição muito bonita da Frenesi com ilustrações do Gustave Doré.
(Obviamente, interrompo a cadeia. Era o que mais faltava dar confiança a esta gente.)
Acra
Quatro dezenas de chefes de estado africanos estão reunidos na nona cimeira da União Africana. Que fazem eles? Procuram soluções para a crise no Darfur? Discutem a situação do Zimbabwe? Não. Os tais chefes de estado estão, desde domingo, a debater a viabilidade dos planos megalómanos do líbio Khadafi e do zimbabweano Mugabe de fazer nascer uma administração conjunta de todo o continente africano. Querem os ditos assim criar uma espécie de país único, uma só Africa. Ora a gente olha para os países deles, Líbia e Zimbabwe, e pede a Deus que nunca, mas nunca, tal sonho se realize. Imagine-se o que bichos peçonhentos, hienas, kizumbas, como Khadafi e Mugabe poderiam fazer numa África unida. Uma pessoa lê estas notícias e não sabe se há-de rir ou chorar.
2007/07/02
Lebres
Passam velozes. Como se fossem gazelas ou lebres. Solitários ou bafejando em manada. Touros, bisontes, bois almiscarados. Olho-os. Um rapaz negro passa, correndo por cima do muro que nos separa do rio. Movimenta-se na perfeição. O seu corpo de ébano é uma máquina eficaz. Os homens têm elegância a correr. Quando correm, em passadas largas, e pesadas, quase sinto o rio tremer. Já as mulheres correm mal. A maior parte não sabe correr. Terão certamente corrido em meninas. Desaprenderam, depois. Metem os pés para fora. Enrijecem os braços, não sabendo o que lhes fazer. Abanam a cabecinha como se fossem aqueles cães articulados que, entre almofadas de renda, se colocavam na parte de trás dos automóveis. Bufam como vacas. Quando são gordas, abanam as mamas, as carnes flácidas, transpirando uma gordura quente e amarela que se espalha por todo o lado. Um homem gordo corre como um touro, um rinoceronte, um elefante até. Uma mulher gorda corre como uma perua imensa, soltando gorgolejos insuportáveis. Glu-glu-glu-glu. Por vezes, tento imitar os homens-lebre. Acelero um pouco o ritmo. Corro mais depressa. Aumento a passada. Dou balanço. Desisto pouco depois. Corro o risco de morrer junto ao rio. Nunca serei uma lebre. Sou uma tartaruga. Vagarosa. Velha. Tenho mais de cem anos. Corro com passos pequeninos. Mas corro muito. Olarila. E chego sempre à meta.
(ando desconfiada que sou uma pessoa amarga.)