2007/08/31

Janelas Abertas

Sim, eu poderia abrir as portas que dão para dentro
Percorrer, correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos
Dentro do apartamento.

Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto fêmea, língua gelada
Língua gelada como nada.

Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada um matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito
Mas eu prefiro abrir as janelas
Pra que entrem todos os insectos.

Caetano Veloso

(Ccrta noite ouvi esta canção até de madrugada. Depois aconteceu o que tinha de acontecer. Deste esse dia, esta passou a ser a canção da minha morte.)

2007/08/30

SG

(amor primeiro, desde os onze anos, quando a Maria dos Anjos, professora de português, me deu a ouvir o Barnabé.)

Filhos

Deitado na cama, o barão trepador quis saber, ao certo, o que eu fazia no trabalho. Expliquei-lhe com aborrecimento. Que grande seca, mãe. Concordei e, mais uma vez, soprei-lhe ao ouvido que exigia que ele, quando crescesse, fosse médico ou cozinheiro. Aproveitei para, disfarçadamente, lhe cheirar o pescoço e, de raspão, beijar-lhe os lábios. Ele zangou-se com o beijo e disse, peremptório, que médico nunca. Tinha horror a sangue e ao estudo que a medicina exige. Mas cozinheiro, talvez. Sosseguei. No quarto ao lado, a estrelinha da tarde exigia atenções. Enfiei-me com ela na cama. Canta-me canções para adormecer, pediu. Cantei. Uma, duas, três, quatro, muitas. Ela acompanhou-me com um fiozinho de voz. Tão pequena e frágil. Tão feliz. Tão minha filha. Adormeceu no preciso instante em que me preparava para lhe cantar as aventuras de uma certa Etelvina que gostava de andar pela cidade, a semear ventos e a colher tempestades, a meter-se com ricaços, a dizer assim: você que passa de carro, pare aqui a ver se eu deixo, venha cá que eu já o agarro, dou-lhe um pontapé nos queixos. Adormeceu a estrelinha da tarde agarrada a um barbapapa vermelho e risonho. Fiquei só. O melhor de ser mulher é ser mãe.

Ratos

Duas ratazanas pastavam na relva. Quando anoitece sobre o rio, elas abandonam os juncos lamacentos e passeiam-se pelos relvados que, durante o dia, pertencem às meninas de crocs nos pés, aos rapazes que jogam futebol, aos namorados que soltam beijos nas copas das árvores. Uma terceira ratazana, vinda da escuridão, juntou-se ao grupo. Vinha, folgazã, com pezinhos ligeiros e vontade de aproveitar a frescura da noite. Viram-me os horrendos bichos passar, encolhida, largando gritos tolos, jurando a mim própria nunca mais na vida correr sozinha nos relvados. Muito menos de pernas ao léu. Não se mexeram. Ignoraram-me. Temi que me atacassem. Que desatassem a correr na minha direcção e me mordessem os tornozelos. Apressei-me em deixar os relvados. Atravessei, aliviada, a praça mais barulhenta e bonita do meu bairro. Perto dos caixotes do lixo, um cão vadio, muito magro, farejava os desperdícios. Um homem-breu fazia-lhe companhia. A cara preta de sujidade. O cabelo enfiado dentro de um barrete de cor indefinida. Mãos ferozes, vasculhando os caixotes, os restos, as sobras dos outros. Ignorou-me ostensivamente. Como as ratazanas dos relvados. O cão, porém, olhou-me com olhos doces de mágoa e abandono.

2007/08/28

Teresa Torga

(não há bandeira sem luta, não há luta sem batalha.)

Sul

Tenho um sul de casas rasteiras. Um monte com um moinho abandonado, um caminho de silvas e estevas secas, com um sobreiro e uma azinheira. As ruínas da minha infância vivem ali, entre as ervas altas da Primavera. O meu sul cheira a porcos. A noite traz um cheiro adocicado, excrementício, que entra pelas janelas e portas abertas. É um sul feito de uma só rua, habitada por gente que conheço e gosto. A tia Maria, com o cabelo já todo branco, sentada no alpendre da casa amarela, no meio de alguidares e bidões velhos, onde planta morangos, ervilhas, favas, tomates. A vizinha Bárbara, de olhos azuis que tem andorinhas nos corredores da casa. A vizinha Teresa, cada vez mais coxa, incansável na arte de falar. Remata cada frase com um “Pois então!”. Foi mãe de duas netas. A Dulce sempre pronta a contar-me as novidades das pessoas da aldeia, mesmo daquelas que não conheço.

O Luís de Vale de Armunha, que ganhou um prémio no totoloto. Comprou um Audi e uma Harley Davidson. Quando entardece conduz a motorizada, cruzando-se com tractores, camionetas cheias de cortiça e de gado, carros carregados da poeira e dos cheiros dos campos. Comprou também dez vacas, de excelente qualidade, numa feira de gado de Barcelona. De repente, apesar do olhar parado, dos dentes de coelho saídos, tornou-se no partido mais apetecível da aldeia. É assim a vida. Há também o Sebastião, a Patrícia, a Joana, irmãos redondos que sabem tocar acordeão. Inchados, fazem-me lembrar a fábula da rã que queria igualar, no tamanho e no porte, o boi. Tanto inchou que um dia rebentou. Qualquer dia os três irmãos também rebentam. Se lhes espetar um alfinete nas carnes gordas rebentarão como balões coloridos de feira.

Há, por fim, a prima Laura, perdida na loucura que herdou da sua mãe, oscilando entre a solidão, a tristeza e a euforia. Tenho sempre vontade de a abraçar. De lhe fazer festas nas mãos gordas, de unhas roídas, maltratadas. Umas mãos que, mesmo depois de lavadas, guardam o cheiro das coisas em que ela toca. O cheiro da terra, das laranjas, dos limões, das linguiças, dos coentros migados para a açorda, dos torresmos, da banha de porco e do pão. É o cheiro do sul e da planície que ela traz nas mãos. Os meus filhos enrodilham-se nas suas pernas, cabriolando. Mal chegam correm ao seu quintal. Eu, quando os vejo, sinto com uma dor no peito. Gosto mais deles por gostarem assim tanto dela. A prima Laura é a única pessoa que continua a tratar-me por Clarinha. Como se eu fosse, ainda, a menina que ali passava os verões, inquieta e desassossegada.

2007/08/27

Eduardo

Nunca gostei do Eduardo Prado Coelho. Encontrava nas suas palavras matinais a arrogância própria dos iluminados. Nele, ufano, todos os sinais de um insuportável diletantismo intelectual. Continuo a não gostar dele depois de morto. E, no entanto, para onde quer que olhe, dou de caras com epitáfios. Com pedras tumulares. Textos, todos ou quase todos, lacrimosos que leio e esqueço. A morte exige respeito, pudor e, sobretudo, brandura.

2007/08/10

Água

Acordei com corpo de água. Sou só chuvas mansas, rios, mar. A água presa nas garrafas de plástico também entrou em mim. Ping. Ping. Ping. Vou chorar-me até desaparecer.
(é tempo de sossego e silêncio.)

2007/08/09

Milton Nascimento

(também tenho um lado ocidental.)

Arte

A M. foi à bienal de Veneza e trouxe uns colantes para os miúdos. O da Dádá, como não podia deixar de ser, diz “I’m a dada piece of art”. O do João, em jeito de provocação, diz “I´m an abstract piece of art”. Fiquei a pensar. E eu?

Notas com Bolor

1) O Luís Felipe Menezes foi fazer política de proximidade para a Cova da Moura. E mais não digo. 2) A Márcia Rodrigues entrevistou o embaixador do Irão de véu e luvas pretas. Eu acho que a Márcia devia ser apedrejada em público. 3) Andam em polvorosa com a China e o não cumprimento das promessas de maior respeito pelos direitos humanos. Mas alguém acreditava que a China, por causa dos jogos olímpicos, deixaria de ser o que é? 4) Nem tudo na China é mau. Eu importava os pelotões de fuzilamento para exterminar certa e determinada jornalista, filha de uma autarca do norte muito ruim, que faz a cobertura do Mistério da Praia da Luz. 5) O Sean Pen esteve na Venezuela do Sr. Chavez e disse que a Venezuela do Sr. Chavez é um grande país. Coitadito. Embebedava-o com daiquiris e depois mandava-o fazer companhia à Márcia Rodrigues. 6) Em Timor, o presidente passou a ser primeiro-ministro e o primeiro-ministro passou a ser presidente. O partido que ganhou as eleições não foi chamado a formar governo. A democracia é uma coisa estranha. 7) Nem tudo é mau. Está cá o ministro dos negócios estrangeiros de Cabo Verde. Seja bem-vindo, senhor ministro. Dava tudo para saber dançar o funáná. Não quererá V. Exª levar-me ao Sarabanda (não é o do Bergman, que eu sou uma rapariguinha simples, uma triste pacóvia, pouca dada a profundezas melancólicas, mas o da EUA) e ensinar-me a abanar as ancas?

2007/08/08

Anna

Pierrot, le Fou

(Agradeço muitas coisas à minha mãe. Uma é ter-me chamado Ana.)


Sutura

Sento-me de pernas cruzadas na cama, bebendo o chá muito devagar e olhando as fotografias dos miúdos. O João sopra bolas de sabão. A Madalena, de amarelo, foge. Deito-me atravessada na cama. É a minha posição preferida. Os pés ficam de fora e eu, tão pequena, sinto-me maior. Fecho os olhos para que a dor passe. Procuro lembrar os sonhos dos dias anteriores. Primeiro sonho: estou em Maputo e rodo a cidade num carro. Os prédios são altos, estão pintados de branco. Há roupa colorida nos estendais. A cidade não é a cidade. Tem lagoas nos arrabaldes. Parecem tanques gigantes esculpidos na rocha. Dois meninos mergulham e os seus corpos desaparecem na água que é verde e amarela. Árvores gigantes largam flores vermelhas pelo chão. O lento leva-as para longe. Olho as lagoas na companhia dos meus irmãos. Quero mergulhar, digo. Eles riem. Segundo sonho: estou nas escadas rolantes de um centro comercial. O Nicolau Brayner espera por mim no piso de baixo, junto de uma loja de mercearias finas. Olho a montra, onde frascos de ovas rivalizam atenções com garrafas de vinho italianas. Alguém nos persegue. Quem será? Fugimos. Eu vou dar a uma casa de madeira na falésia. O mar é tão escuro e bonito, lá em baixo. Estou nisto durante muito tempo. A reconstituir sonhos como quem reconstitui cenas de crimes. Enquanto resonho os meus sonhos, levo as mãos ao nariz. Cheiram a cebola e a alhos. Adormeço com o barulho de uma explosão pequenina. Durmo a noite toda. Tenho um sono descansado que é coisa que nunca tenho. Nem com os comprimidos cor-de-rosa que a minha mãe me dá. Triticut. Tritifur. Triticon. Tritiqualquer coisa. Acordo com a voz do António Macedo. Levanto-me assustada. Sinto-me inesperadamente leve. Reparo então que tenha um buraco no torso. Estou vazia por dentro. Oca. Faltam-me vários órgãos. Estranho a ausência de dor e a calma de me ver assim. Olho em volta. Descubro os meus órgãos espalhados pelo quarto. Recolho os meus pedaços de corpo. Vasculho os cantos e as sombras. O coração está por baixo da cama, esquecido entre dois pares de sapatos velhos. Ainda bate. Encaixo-o dentro de mim. Suturo-me com a linha que utilizo para apertar os rolos de carne.

2007/08/07

Monstra

Fui comprar os livros que me faltam ler para o curso de literatura romena. No caminho de regresso, percebi uma coisa terrível: tal como a rapariga da fila do refeitório, também eu nunca fui devidamente, como dizê-lo?, fodida. O facto de ter algo em comum com a monstrenga bobadelense/mem-martiense/abobadense do refeitório aborrece-me.

Besouros

Estou na fila do refeitório, mesmo ao lado do balcão das sobremesas de plástico. Gelatinas de pêssego, bavaroises de morango, tartes de maçã, tortas de chocolate com cobertura de coco. Na televisão passa uma reportagem sobre as demolições na azinhaga dos besouros. É, então que, vinda de trás, chega uma voz. Estes pretos vêm para aqui fingir que trabalham, põem-se a construir onde não podem, depois levam com os catrapilers em cima. Azar! Viro-me. Quero ver as feições de quem, com tamanha jactância, se manifestou. Vejo uma rapariga de casaco azul escuro e blusinha cor-de-rosa. Tem feições duras. Feias e suburbanas. Tem feições de quem nasceu na Bobadela, em Mem Martins ou na Abóbada, de quem tirou o curso na Lusófona e chamará Beatriz à filha feiinha que terá daqui a meia dúzia de anos. É gestora quase de certeza ou economista ou informática ou qualquer coisinha assim. Tem ar de quem nunca foi devidamente fodida. De quem nunca será devidamente fodida. Enquanto a observo de alto a baixo, penso assim: vai para a puta, escancarada, enorme e malcheirosa que te pariu. Penso. Mas não digo. E tenho pena de não dizer. Gostava de ser capaz de verbalizar os meus insultos. Não me faz nada bem guardá-los para dentro.

Embuste

Embuste: mentira artificiosa; dolo, falsidade; velhacaria.

2007/08/04

PJ Harvey

Je m´en vais.

2007/08/03

Theo (4)

Há pouca gente a preocupar-se com isto. Há pouca gente a denunciar isto. Quase ninguém. As pessoas metem-se nos seus casulos, olham para as suas causas, desviam o olhar. Theo van Gogh, sendo homem, não olhou para o lado, não ignorou a realidade destas mulheres. Denunciou. E por isso morreu. Ainda que isso pouco ou nada signifique, merece o meu maior respeito, a minha maior admiração. Por esta razão, hoje, mais do que a possibilidade de um texano pouco hábil, quase burro, ser reeleito para a presidência dos EUA, inquieta-me que um homem, numa qualquer rua de Amsterdão, quando circulava de bicicleta, a caminho do estúdio onde trabalhava, tenha sido assassinado por ser livre e por reclamar, para os outros, exactamente a mesma liberdade.
(A propósito do Charrua e da liberdade de expressão lembrei-me deste texto que escrevi, em 2004, num outro blogue. A liberdade exige coragem e nós somos, quase sempre, cobardes.)

Theo (3)

A questão que se coloca é a de saber se os países do Ocidente, sob a perigosa capa da diversidade cultural, do respeito pela diferença, podem aceitar tais práticas, tais rituais. A liberdade religiosa, a liberdade cultural justifica tudo, até aquilo que é injustificável? Há um inegável confronto de ideias, de culturas, de civilizações. De um lado, temos a liberdade religiosa, a liberdade cultural. Do outro lado, temos os direitos fundamentais, património inalienável da humanidade. Perante este conflito, quem deve ceder? É obvio que tem de ceder a liberdade religiosa. Assim como a liberdade cultural só pode ser tolerada se não puser em causa os direitos fundamentais. Ora, as práticas acima descritas põem em causa, precisamente, os direitos fundamentais das mulheres. Obrigar uma mulher a usar um véu é o mesmo que aceitar que a uma mulher jovem se pode tirar num ritual macabro o seu clítoris, coser-lhe a vagina para gáudio do macho na primeira noite, que a rasgará como se rasga uma folha de papel. Obrigar uma mulher a usar um véu é a mesma coisa que aceitar que uma mulher pode ser apedrejada em público até à morte por adultério. E não digam que elas andam assim porque querem. Andam assim porque lhes é negado um direito fundamental, a liberdade. Andam assim porque foram educadas no pressuposto da sua indignidade, da sua infinita menoridade, porque, desde pequenas, lhes ensinam que são inferiores.

Theo (2)

Theo van Gogh foi capaz de denunciar o que se passa com as mulheres islâmicas. Fê-lo com uma mulher que, sendo muçulmana, se recusou a fechar os olhos perante a opressão a que as restantes são sujeitas. Este homem e esta mulher fizeram mais pelos direitos das mulheres do que as activistas de esquerda que, invocando tais direitos, se preocupam apenas, de uma maneira quase histérica, consigo próprias, com as suas barrigas, com a questão do aborto. Estas activistas, ululantes, detentoras de dois ou três neurónios, estão-se literalmente nas tintas para os direitos das mulheres islâmicas. Nunca vi nenhuma levantar a voz contra a obrigação de uma mulher usar um véu a cobrir-lhe o rosto. Assim como nunca vi nenhuma preocupada com esse ritual macabro, tribal, primitivo, inadmissível, indizível que é a excisão do clítoris feminino. Pelo contrário, estas mulheres enleiam-se no politicamente correcto e arranjam fundamentos antropológicos, culturais, para justificar o injustificável. Admitem a utilização do véu e a excisão do clítoris e falam, a propósito de tais práticas, em liberdade cultural e liberdade religiosa. Eu estou-me a borrifar para os sociólogos, para os antropólogos, para as justificações históricas e culturais. Reclamo para estas mulheres exactamente os mesmos direitos que reclamo para mim. Nem que isso signifique ter de deitar para o caixote do lixo, pela pia abaixo, uma cultura milenar, séculos de tradições.

Theo (1)

Nada de novo. As notícias sobre as eleições nos Estados Unidos são atrasadas, desactualizadas em relação ao que ouvi pela manhã na TSF. Atravesso os olhos pelas páginas. Sem grande atenção. Quase a chegar ao fim tomo conhecimento do assassinato do realizador holandês Theo van Gogh. Aqui está uma notícia que me assusta. Este homem foi morto por uma única razão: por expressar livremente a sua opinião. Realizou uma curta-metragem, a que deu o título adequado de "Submissão". Este pequeno filme fala sobre o Corão, mais especificamente sobre a opressão a que as mulheres estão sujeitas na religião islâmica. O argumento deste filme foi escrito por uma deputada liberal, oriunda da Somália e muçulmana, Ayaan Hirsi. Este realizador, segundo as autoridades holandesas, terá sido morto por um homem de 26 anos, com a dupla nacionalidade marroquina e holandesa, com ligações a movimentos radicais islâmicos. Ou seja, foi assassinado por quem não admite os princípios basilares da democracia, por quem luta contra a liberdade de expressão, por quem ignora, se bate contra os direitos fundamentais que, melhor ou pior, caracterizam apenas o Ocidente.

Charrua

Fazer do Charrua um herói da liberdade é o mesmo que tratar a Bárbara Guimarães como letrada. O Charrua não é um herói. É simplesmente um malcriadão. Não merecia, claro está, a suspensão a que a zelosa e subserviente directora regional do norte o votou. Mas também não merece ser tratado como um mártir da liberdade de expressão. Até quer pedir uma indemnização por danos morais ao Estado. Deus nos acuda quando a liberdade de expressão e a liberdade política se confundirem com uma graçola alarve de um funcionário subalterno qualquer. É tão fácil empregar mal as palavras.

Outros

Nestes últimos tempos, tem-se assistido a um levantamento de gente que, de repente, se lembrou de defender, com unhas e dentes, a imigração. De um momento para o outro, descobriram que a imigração é uma coisa boa. Descobriram que a Europa está envelhecida e cansada e que os imigrantes são cruciais para inverter a curva da evolução demográfica. Descobriram também que se não fosse o trabalho dos imigrantes a Europa parava. Não havia pontes. Não havia prédios. Não havia estradas. Nem centros comerciais para passearmos nos domingos de sol. Deixaria de haver quem nos servisse nos restaurantes. Não haveria quem cuidasse das nossas casas e dos nossos filhos. Não haveria ninguém para trabalhar no campo, nas colheitas de morangos, de tomate e sei lá do que mais. Esta gente também descobriu que se não forem os descontos que os imigrantes fazem para os regimes previdenciais, no futuro, não haverá dinheiro para pagar as nossas pensões de reforma.
Ou seja, de repente, esta gente descobriu que os imigrantes são parte da solução dos nossos problemas e que devemos, por isso, aceitá-los. Mas atenção! Devemos aceitá-los em função das nossas necessidades. Esta ideia enoja-me. Causa-me náuseas. Estabelecemos as vantagens e desvantagens da imigração em função das nossas necessidades. E então as necessidades deles? Poderá uma palermice politicamente correcta, sei que parece, mas acho que as portas da Europa deviam estar sempre abertas aos imigrantes. E isso mesmo que a Europa não tivesse os problemas que tem - o envelhecimento da população, a escassez de mão de obra, o facto de existir cada vez menos população activa a efectuar descontos para a segurança social. É que é muito bonito dizer-se que todos os homens nascem iguais em direitos. É muito bonito celebrar, com pompa e circunstância, os aniversários da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Mas a igualdade de direitos passa necessariamente pela igualdade de oportunidades. E essa só se alcança se aqueles que nascem no fim do mundo puderem lutar por uma vida diferente. Porque é que alguém que vive num país em guerra não pode sonhar com a paz? Porque é que alguém que vive num país com fome não pode sonhar com o pão? Porque é que as oportunidades se hão-de determinar em função do país em que cada um nasce? Não compreendo isto. E não aceito. Se as políticas de imigração adoptadas pelos países europeus, para além das suas próprias necessidades, não tiverem em consideração as dos imigrantes, ter-se-á de concluir que o princípio da igualdade de direitos, apesar de consagrado nos textos internacionais e nas constituições de todos os países, é desprovido de qualquer sentido útil, incapaz, consequentemente, de empreender qualquer tarefa de garantia contra as desigualdades e discriminações.

Benazir

Enquanto pico as cebolas para o refogado penso na Benazir Bhutto. Depois de anos de exílio, acusada de corrupção e nepotismo, vai voltar ao Paquistão. A Benazir tem ar de quem não sabe picar decentemente uma cebola. Há-de ter mãos longas, intermináveis, cuidadas. Mãos de cera, hábeis a executar gestos lentos e a repousar no regaço. Olho para as minhas mãos. São de terra.

Instrumentalina (2)

Corro. Canso-me. Olho para o relógio. Observo os transeuntes que passeiam pelo parque. Um casal jovem beija-se num varandim junto ao rio. O homem da bicicleta volta a aparecer. Quer saber se vou à meia maratona. Mentindo, para me cativar, volta a insistir que corro bem. Agradeço-lhe o elogio. Ele, porventura espantado com o meu inesperado rasgo de simpatia, sorri. Acelera na sua bicicleta. Desaparece numa vereda verde. Ladeada de pinheiros mansos e montes pequeninos. Fico a olhar para ele. Lembro-me, então, de um dos contos da Lídia Jorge. Instrumentalina. Antes de o ler, não sei bem porquê, associava-o a instrumentos musicais. Também à minha tia Adélia, durante muitos anos, enfermeira instrumentista em São José. Instrumentalina. Instrumento. Instrumentista. Volto a olhar o homem da bicicleta. É, agora, um ponto minúsculo e insignificante. Tem a precisa dimensão do que é. Quase nada. Percebo que usa umas calças de nailon. Daquelas brilhantes e justas que parecem colants. Numa cor mortiça e feia. Um verde-bolor a fazer lembrar uma lonjura de águas paradas, sombras e líquenes. Má opção. Um homem deve correr sempre, mas sempre, de calções azuis e t-shirt branca. Mesmo que o céu se enfureça e lhe atire bolas brancas de granizo, velozes como balas.

Instrumentalina (1)

Sinto alguém atrás de mim. Oiço o chiar de uma bicicleta que se move devagar, o rodado em cima da terra batida. Parece crepitar de madeira húmida. O ruído persegue-me durante alguns minutos. “Sabes que corres muito bem?”. Uma voz sussurra-me aquelas palavras. Ignoro. Não olho sequer. Correr exige-me total dedicação. É um homem quem me fala. Montando na sua bicicleta continua. “Também pedalas ou só corres?” Continuo a correr. Não me aborrece que alguém me persiga enquanto corro. Não me incomoda que esse alguém seja um homem montado numa bicicleta. Não me incomoda sequer que esse homem me interpele com tão pouca habilidade e engenho. Incomoda-me, porém, que alguém que não conheço me trate por tu. O tu como prenúncio de uma proximidade futura ou de uma intimidade desejada. Gosto do tu. Reservo-o para os que me são queridos. A única das minhas pessoas que não trato por tu é a Mila. Impaciento-me, por isso, quando o homem da bicicleta me volta a tratar por tu. “Importa-se de me deixar correr sossegada?”. O homem encolhe-se. Espanta-se com o meu pedido. Balbucia qualquer coisa. Afasta-se. Continuo a correr. Gostava de chegar até à galinha do Guimarães. Duvido que alguma vez lá chegue.

2007/08/01

Bruxa

Quero morrer em sossego, velha, velha, velha, encolhida como quando nasci, sem ninguém a chocalhar-me os ossos. Ouvir, por fim, o silêncio. Ai de quem se atrever a mexer-me no corpo! Ai de quem se atrever a quebrar a paz com lágrimas e gemidos! Virei, feita espectro de luz, uma bruxa hedionda, de cabelo desgrenhado e unhas compridas. Esbofetearei as noites de quem me chorar.

Santo Onofre

Rogério abre os olhos. Pelas frinchas dos estores entra uma luz amarela que faz dançar as partículas de pó. Rebola para lá. Depois para cá. Tacteia os lençóis com gestos lentos como se a cama fosse um gato dócil, merecedor de afectos e afagos. Sente-os ainda mornos. Para além do calor, Alberto deixou também o seu cheiro habitual. Um cheiro levemente adocicado, de mel e cânfora. O cheiro que lhe habita o corpo é o dos rebuçados que, com parcimónia, chupa ao longo do dia. É, por isso, por causa dos rebuçados de mel e cânfora, que o cheiro de Alberto é assim, doce e antigo. Rogério fecha os olhos e recorda a primeira vez que entrou ali, naquela casa, naquele primeiro andar de corredores frescos e escuros, com um convite para jantar. Quis ser simpático. Trouxe uma garrafa de vinho barata e, para agradar a Alberto, trouxe também um pacotinho de rebuçados de funcho, muito caros, comprados numa mercearia fina da Baixa, recomendados por uma colega do escritório. Entregou-lho e pacotinho pardo e, com um sorriso, disse-lhe “É para, de vez em quando, mudares de sabor!”. Alberto amofinou-se primeiro, depois deitou o pacote no lixo. Por fim, com a calma habitual, explicou-lhe a diferença abissal (foi mesmo esta a expressão que utilizou), entre os conhecidos rebuçados do Dr. Bayer, que abominava, as degenerescências modernas, carregadinhas de vitamina C e xilitol, com sabores ultra frescos de laranja, morango, os abastardamentos caramelizados estrangeiros e os seus queridos rebuçados peitorais do Santo Onofre. Rematou pedindo desculpa e explicando que não gostava sequer de funcho, erva de sabor enjoativo e propriedades essencialmente diuréticas. Rogério, que agora está deitado na cama, recorda a expressão grave que nessa ocasião marcou o rosto de Alberto, abrindo-lhe sulcos e gretas. Desde então aprendeu a não lhe acicatar hábitos e manias. Deixa-os em paz. Aprendeu também a não mais estranhar os pequenos rebuçados cor de âmbar, do tal Santo Onofre, que ressumando dias antigos, sente quando beija Alberto.