2007/10/17

Escafandro

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amem! disse Maria da Conceição e aspergiu-se abundantemente com água benta. Percorreu o corredor lateral. Uma mulher nova rezava em frente de São Domingos. Aos seus pés, um renque de flores artificiais ornamentava o altar do santo com uma paz de cemitério. Sentou-se na nave principal e pousou o missal no regaço não sem antes lançar um novo olhar à desconhecida que continuava a bichanar palavras de fé ao monge mendicante de pés descalços. Respirou fundo. Sentia-se bem dentro da igreja. Era como se Deus, pelas vidraças, lançasse mãos cheias de uma poeira brilhante que se transformava em consolo, paz e silêncio. Maria da Conceição gostava de passar ali o início da tarde, dormitando perto do Senhor Deus que nunca lhe falara, mas que a escutava sem azedume ou aborrecimento. Deixou-se estar. Um raio morno aqueceu-lhe o corpo, afagando-lhe o ventre e o rosto. Maria da Conceição fechou os olhos. Adormeceu. Sonhou com um castelo, propriedade de um gigante de cabeleira hirsuta e carranca embrutecida que fazia lembrar o rosto rude e provinciano do cura que celebrava a missa das oito. A cozinha do castelo estava atafulhada de açafates de vime cheios de duchesses, azevias e tarteletes fofas de doce de abóbora. O gigante do sonho fê-la acordar com um estremecimento. Olhou em redor e pareceu-lhe ver numa pilastra mais recuada uma sombra alta e ameaçadora. Os gigantes saltam muitas vezes dos sonhos para os locais adormecidos do mundo. Com a mão limpou um fio de baba que lhe escorria pela boca. Levantou-se. Antes de voltar a casa passaria pela pastelaria e pediria um bolo. Não um bolo seco, mas um desses bolos com creme que se comem com um garfinho e se acomodam em caixinhas de papel coloridas. À saída procurou um derradeiro conforto apalpando a madeira maciça das portadas. Passou as mãos nodosas pela madeira e, ao olhá-las, reparou nas veias saídas, nos sinais que a idade deixara como marcas cruéis na sua pele de velha. Olhou para a praça onde um grupo de raparigas mal vestidas montava uma banca. Uma delas aproximou-se e perguntou-lhe se não queria contribuir para Rede2000, uma organização finlandesa empenhada na erradicação da pobreza no mundo. O nosso país tem mais de dois milhões de pessoas que vivem numa situação de pobreza extrema, explicava a rapariga, tal traduz uma injustiça e constitui uma ofensa à dignidade pessoal e um desrespeito pelos direitos humanos. Espectáculos de luzes, concertos, acções de rua, tudo se faria para lembrar os que nada têm, continuava a rapariga mostrando um sorriso metálico e monstruoso. Maria da Conceição não sentia pena dos milhões de pobres que inundavam o mundo com a sua miséria e desalento. Sentia, isso sim, pena daquela rapariga que nunca experimentara na pele os raios de sol que entravam pelas vidraças da igreja e que envolviam o corpo como um escafandro morno de luz. Enfiou o missal bolso do casaco e soltou uma moeda de cinquenta cêntimos no regaço do homem que pedia na porta da igreja. Este, deixou de coçar os testículos e, sorrindo, lançou-lhe um hálito fétido de vinho barato.