Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
Jaqueiras
Gosto mais de plantas do que animais. As plantas são mais discretas na cópula. O sofrimento não é evidente. De todas as árvores que vi na Índia há uma que se destaca pelo porte. A jaqueira. Tem a copa frondosa e piramidal. Os frutos nascem directamente do tronco. É extraordinária. Umas bolsas amarelas, esponjosas, enormes, crescem como angiomas cavernosos no pescoço das árvores. As jaqueiras são estranhas e, por isso, cativam. Fazem lembrar gente com bócio.
Matilhas
Procurei saber por que não os apanhavam, por que os deixavam andar em liberdade, largando doenças por toda a parte, roçando em nós a sua vagabundagem, triste e desoladora. A explicação que me deram remonta ao pai da nação indiana, que entendia que a grandeza dos estados se mede também pelo modo como tratam os seus animais. Por essa razão Ghandi promulgou uma lei que, entre outros disparates, proíbe o cativeiro e a morte dos animais vadios. Desde então os cães rondam livremente as cidades e os campos da Índia. Em Goa estão por toda a parte. Nas praias assediam as turistas gordas que descansam ao sol. Nos mercados aguardam junto dos talhantes os desperdícios do dia. Trazem no corpo todo o tipo de parasitas e doenças. De tão feios que são, com pedaços de carne doente, muitas vezes sem pêlo, fazem lembrar monstros mutantes criados em laboratório. Rivalizam com os homens as sombras dos jardins. Raramente andam sozinhos. Empoleiram-se nos bidões onde se queima o lixo. Copulam nas ruas perante a indiferença de toda a gente. Lembro-me, a propósito das cópulas caninas, de um dia em que almocei em Margão. Guardei dentro de mim a frescura do sumo de melancia e as grainhas minúsculas do baji puri. À saída do restaurante, topei com dois turistas, muito porcos, de rastas no cabelo e pés imundos, sentados de pernas abertas, maravilhados com o pitoresco da Índia. Agoniei-me mal os vi. Quis esbofeteá-los com severidade e mandá-los de volta para perto do mar, onde há praias, hotéis baratos, feiras típicas e festas com ácidos e trance music. Ainda não estava refeita dos turistas americanos quando dei de caras com dois cães que copulavam na berma da estrada, junto das bancas de vendedoras de tabaco e supari. A cadela tinha o focinho esfacelado como se alguém a tivesse arrastado pelo alcatrão. Latia dolorosamente. Afligi-me. O sexo não é muito diferente entre os animais. O macho alivia o seu desejo. A fêmea aquiesce, umas vezes cala-se, outras grita.
Remodelação
Para ministro da cultura um jurista (sou jurista, sei do que falo), que fuma charuto e, do alto da sua vida refastelada, se preocupa com as liberdades e garantias dos cidadãos. Para ministra da saúde uma mulher que não põe um pingo de maquilhagem e usa um corte de cabelo medonho, digno de uma professora de religião e moral ou de uma lésbica serôdia. Não auguro nada de bom.
2008/01/28
Na Tua Face
Reli um livro do Vergílio Ferreira e aborreci-me. Dizê-lo é sacrilégio, pecado, uma ignomínia monstruosa. Eu sei. Para me redimir rezei o terço da misericórdia que leva menos tempo e é apropriado à expiação dos pecados graves. Depois, chicoteei-me com uma vara de castanheiro que tenho sempre à mão para estas ocasiões. Tenho os costados numa lástima.
Travesti
Quando voltava para casa, já tarde, ouvi na rádio a Barbra Straisand e os Bee-Gees a cantar “I am a woman in love”. Parei o carro e olhei os prédios em redor. Foi então que percebi uma coisa. Fosse eu um travesti, daqueles exuberantes, almodovarianos, que cantam em bares e se vestem recamados de lantejoulas e vidrinhos, como sereias grotescas, e usaria o cabelo preto, muito comprido, aos cachos, chamar-me-ia Salomé, que é nome bíblico tão bonito, e cantaria esta canção.
2008/01/27
Oboé
"Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjugação de astros no infinito, deve vir nos livros. Ou mais provavelmente esse tempo nunca pára de existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir. Vou pensar melhor a ver se eu próprio entendo."
Em Nome da Terra, Vergílio Ferreira
2008/01/24
Bosque
Há um bosque abandonado no meio da cidade. Os campos de basquete não têm tabelas há muito tempo. Já não existe circuito de manutenção. No parque infantil resta uma estrutura de ferro que o tempo ainda não conseguiu destruir. O relvado não é cortado há muitos anos. Está cheio de trevos, ortigas, ervas daninhas. O bosque é feito de verdes molhados e de sombras. É assustador quando o sol decai e as árvores esguias se agigantam, tomando novas formas e cores. Contam histórias de roubos e violações. Pouca gente se vê por ali. Um ou outro velho sozinho. Um homem a passear um cão. Outro sentado no banco. Há um velho que encontro sempre no bosque. Negro, de carapinha branca, magro. A primeira vez que o vi usava um saco de plástico enterrado na cabeça para o proteger da chuva miudinha. Levantava os braços ao céu como se rezasse. Da sua boca fugia um cantar baixinho e arrastado. Uma ladainha incompreensível. Tem no corpo a dormência, a lassidão, o langor próprio dos ébrios. Ontem estranhei-lhe a ausência. Quando já estava preparada para me ir embora, vi-o chegar. Ao contrário do que é habitual, trazia o passo firme e um saco de plástico nas mãos. Sentou-se num banco. Retirou do saco uma garrafa de sumo, uma caixa com sopa, uma carcaça, uma colher e começou a comer. Por causa dele continuei a correr. Olhei-o cada vez que me cruzei com ele. Sem pudor. Vê-lo sentado, sozinho e tão sóbrio, deu-me vontade de chorar.
Goa
Passei a noite de terça-feira a sonhar com o Paulo Varela Gomes e com apas de camarão. Pela manhã, a primeira coisa que fiz foi abrir o Público e procurar-lhe a crónica. Hoje escreve sobre Goa. Fala dos católicos de Goa, afastando as ideias românticas e paternalistas de certa estirpe intelectual portuguesa. Concordo com o que diz. A sociedade católica de Goa não é coisa de alguns velhotes renitentes. Pulsa de vitalidade. Não se esconde nas igrejas, não se resume à missa de domingo, não vive só nos escapulários assustadores da cidade antiga. O catolicismo está em todo o lado, na vida quotidiana das pessoas. Explode nos plissados das mulheres que assistem à missa do galo, nos fios e nos anéis de ouro que se mostram como troféus, nos sinos que tocam, pela madrugada, a chamar para a primeira missa, nos cruzeiros e capelas que nascem como cogumelos pelas estradas e veredas. Em Goa é normal encontram padres jovens, de batina, nas escolas e nas igrejas. São gente como nós. O catolicismo confere sobretudo aos goeses um sentimento de pertença, que, sendo um sentimento essencial, também assusta. Ria, a menina balão, e Lhea, um dia no balcão explicaram-me que, na escola, só brincam com as meninas católicas (hindus are very dirty! disseram, fazendo caretas). E quando lhes perguntei se casariam com um hindu não me responderam. Limitaram-se a olhar-me como se eu fosse doida. Uma menina hindu olhar-me-ia de igual modo se lhe perguntasse se alguma vez casaria com um católico. O catolicismo não morrerá, pois, em Goa. Está para ficar. Quanto à sociedade católica, que extravasa a fé, que se faz de outras coisas, de outros legados, não sei. Desconfio que daqui a alguns anos a fé católica será a única herança que restará da Índia portuguesa. O resto, a língua e a cultura, a delicadeza dos gestos, o afecto comovente por um Portugal que há muito não existe, desaparecerá à medida que forem morrendo os tais velhinhos renitentes.
2008/01/21
Livros
Descobri hoje que Portugal está cheio de leitores compulsivos. Eles estão na rádio, na televisão, nos jornais e nas revistas. No refeitório onde almoço. No comboio que me engole. Toda a gente se proclama leitor compulsivo. Não há gato-pingado que não faça alarde dos livros que lê. Não é o meu caso, asseguro. Há mais de um mês que não pego num livro. Não me apetece. Nem me faz falta. Faço mesmo questão, num mundo de literatos de pechisbeque, de nunca mais na vida pegar num livro.
Libélula
Certo dia fui com os miúdos passear aos jardins do Museu do Teatro. Ventava, era Inverno, e os bosques estavam húmidos, cheios de líquenes, cogumelos e musgos. Nessa tarde, lembro-me, sentia-me feliz. Não sei porquê. Porventura era o silêncio das árvores e as gargalhadinhas dos meus filhos que me serenavam. Sempre gostei de silêncio e dos ruídos pequenos que nele adormecem. Num dos lagos do jardim encontrámos uma libelinha gigante. Perdera uma asa e, incapaz de voar, debatia-se em vão para sair do laguinho de águas escuras. Era extraordinariamente bonita. Tinha o corpo verde, de um verde vivo e luminoso. As asas, rendilhadas, muito ténues, feitas de um sopro de anjo, eram azuis. Olhando-a, a gente esquecia-se dos monstruosos olhos de insecto, revirando-se em todas as direcções, das patinhas cobertas por escamas. Os meninos procuraram paus e canas e, com a ajuda de uma folha de plátano, tentaram puxá-la o para a margem. A minha filha agarrou-se a uma gárgula esguia que se debruçava sobre as águas e, assim, encavalitada no monstro tentou salvar a libelinha. Foi então que o meu telemóvel tocou. Era a Maria Emília. Já não sei a que propósito, talvez algum livro, outra coisa qualquer, falou do Alberto Pimenta, amigo antigo que traz no aconchego do peito. Trar-me-á a mim também dentro dela? Não sei porquê esse instante ficou marcado na minha memória. Não mais esqueci a libelinha, o cheiro das árvores, o corpo da Madalena tentando salvá-la da água. A partir desse dia, na minha cabeça - que é demente e, por isso, dada a estas associações - o Alberto Pimenta transformou-se naquela libelinha. Sempre que o vejo, ou escuto, vem-me à lembrança aquele bicho, bonito e feio, que morreu só no meio das águas escuras.
(Ontem, o Alberto Pimenta esteve à conversa com a Paula Moura Pinheiro. Distinguiu a literatura-arte da literatura de consumo. A distinção pareceu-me demasiado simples. Há tanta presunção e arrogância na arte.)
(Ontem, o Alberto Pimenta esteve à conversa com a Paula Moura Pinheiro. Distinguiu a literatura-arte da literatura de consumo. A distinção pareceu-me demasiado simples. Há tanta presunção e arrogância na arte.)
2008/01/17
Pangim (2)
Ofereceu-me chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente, interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação, que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia. Fumava. Esse gesto pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.
(O Paulo Varela Gomes, o homem de rosto familiar com quem me cruzei em Pangim, escreve, a partir desta semana, todas as quartas-feiras no Público. Ainda bem. Os goeses que conheço nutrem por ele respeito e afecto. Os meus companheiros daquela tarde, Rafael e Percival, não se cansaram de lhe elogiar a cultura e o trabalho consistente à frente da Fundação Oriente em Goa.)
(O Paulo Varela Gomes, o homem de rosto familiar com quem me cruzei em Pangim, escreve, a partir desta semana, todas as quartas-feiras no Público. Ainda bem. Os goeses que conheço nutrem por ele respeito e afecto. Os meus companheiros daquela tarde, Rafael e Percival, não se cansaram de lhe elogiar a cultura e o trabalho consistente à frente da Fundação Oriente em Goa.)
Pangim (1)
A camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que, aos meus olhos, o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto. Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de um amigo. “Venha, venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos. Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados.
Livrarias
A livraria dos meus sonhos é a livraria de Ana e suas Irmãs, labirinto de aparente desordem, com corredores de sombras e muitas edições antigas. É lá que Elliot, num acaso tão bem planeado, esbarra em Lee e lhe fala de um poema de Cummings. Em Lisboa aparecem, e ainda bem, novas livrarias, depuradas, estilo muito clean, com cafetarias que servem chás e cafés aromáticos. É uma pena que eu goste de livrarias velhas.
Revolta
No Expresso desta semana, o António Pires de Lima, esse revolucionário que usa botões de punho só para disfarçar, a propósito da entrada em vigor da lei anti-tabágica, apelava à revolta. Não me lembro que o dito tenha apelado à indignação a propósito de qualquer outro assunto. Conta o António que agora vai ao Papa-Açorda e depois de uma bela refeição não pode fumar um charuto. A pena que eu tenho do António.
Primárias
Escolhemos um ou outro em função do acessório, do que não é político. Eu confesso-me mais inclinada para o Obama. Nem sei bem porquê. Apesar de mulher, há qualquer coisa na Sra. Clinton que não me agrada. Não é só o facto de ser loira. É demasiado cerebral e calculista. É capaz de aguentar todos os dissabores e contrariedades para levar a bom porto os seus desígnios. Não aprecio tanta determinação. Depois irritou-me o derrame certeiro daquela lágrima antes das eleições no New Hampshire. Quis mostrar que não é de ferro. Pelo contrário, é mulher e as mulheres choram. Não gostei daquela lágrima. Ficou-me atravessada. O choro, sendo próprio das mulheres, requer discrição e recolhimento. Não se chora em público a não ser que seja para convencer alguém daquilo que não somos. Já o Obama é afro-americano, um negro quase branco ou um branco quase negro, bonito, o que não é de desprezar tendo em consideração a frequência com que o novo presidente dos Estados Unidos nos vai aparecer pela frente, com reconhecidos dons de oratória, capaz de galvanizar os cépticos e entusiasmar os indecisos. É pouco. Mas é o que há. Só não gosto da mulher dele, a Michelle, que usa a carapinha lisa e tesa, com as pontas reviradas para fora, e que, nos comícios, se enlaça na cintura do marido como uma autêntica lapa. Eu não aguentava uma mulher assim. Livrava-me dela.
(Nada se discute. Ficam para segundo plano as ideias e as propostas. A raça, o género e tudo o resto continuam a ser determinantes nas nossas escolhas.)
(Nada se discute. Ficam para segundo plano as ideias e as propostas. A raça, o género e tudo o resto continuam a ser determinantes nas nossas escolhas.)
2008/01/13
Shakira
Em vez de jogarem play station fui dar com eles, de boca aberta, a olhar para ela. Eu também olhei. Vi-lhe as pernas infindáveis, os pornográficos sapatos de plataforma, o corpo de boneca, o decote em bico e desliguei-lhes a televisão. O meu filho, e os seus amigos, gostam da Shakira. Eu também. Mas, para manter as aparências da aborrecida materna decência, digo-lhes que não.
2008/01/10
Frei Paulo
Frei Paulo percorre os corredores do hospital num passo apressado. Veste uma bata branca com uma cruz cor de clara de ovo ao peito. Traz o corpo ensopado de fé. Para a maior parte das pessoas a fé é uma manta confortável que apazigua angústias e tristezas. A fé de Frei Paulo, porém, não o serena. É um espigão que se enterrou, há muito, na carne e não o deixa descansar. Enquanto fala sorri. Nunca pára de sorrir. Foste à Índia? E foste a Calcutá, ver o trabalho da Madre Teresa? pergunta ao meu filho. O João acomoda o cansaço da viagem de regresso na cadeira e olha a avó deitada, velha e bonita. Tenta manter os olhos abertos. Diz-lhe que não foi a Calcutá, só a Bombaim, mas que já me ouviu falar da Madre Teresa. Ao contrário da irmã Lúcia, que nunca fez nada na vida, que só sabia rezar, rezar, rezar, a Madre Teresa devia ser santa. Arregalo os olhos ao meu filho e arrependo-me de certas conversas que temos. Frei Paulo dá uma gargalhada. Conta-lhe, depois, a história dos meninos de Nampula e do milagre da multiplicação dos lápis. As gargalhadas do capelão ficam a pairar, como pássaros, sobre os corpos adormecidos das mulheres da enfermaria um. Pelo canto do olho, espio a mulher da cama nº 39. Tem Alzeimer. O seu olhar, vítreo e comatoso, faz-me lembrar o dos borregos enforcados nos mercados marroquinos que pairavam sobre a minha cabeça de menina. Borregos gelatinosos. Uma goteira de sangue escorrendo-lhes do corpo em direcção ao meu. Eu fugia. Desviava o olhar dos bichos e fixava-os nas pirâmides de laranjas, nos corações dos figos-da-índia, oferecendo-me a doçura fresca dos desertos, nas espigas de milho, assando devagar, tisnadas pelas brasas mortiças de fogareiros velhos. Volto a olhar a mulher da cama nº 39. Durante a noite, quanto as luzes se apagam, arranca os drenos. Sai da enfermaria, cruza-se com os espectros dos padres jesuítas, que murmuram orações antigas. Procura o aquário da entrada principal. Olha os peixes por serem como ela. Serenos e sem lembranças. A mulher da cama nº 39, se pudesse, transformar-se-ia num enorme peixe prateado e nadaria para sempre entre cardumes de atuns e robalos. No mar ninguém estranharia a ausência de passado. Frei Paulo continua a falar. Conta histórias da Índia e de Moçambique, países que conhece bem. Pede-me para o visitar um dia na capela do hospital. Gostou de me conhecer. Di-lo várias vezes. Gargalha continuamente. Escuto-o com um afecto inesperado. Onde está a minha brusquidão? Na enfermaria voam pássaros sobre corpos doentes, há açafates de vime pelo chão, cheios de tâmaras, figos-da-índia e biscoitos de manteiga, há uma mulher-peixe adormecida, um menino cansado e um capelão risonho que fala de um Deus que queria meu.
Sarkozy
O presidente francês entende que, no que toca à imigração, há que favorecer a imigração do trabalho em detrimento da imigração familiar. A igualdade, argumentou, não é dar a cada um a mesma coisa, mas dar a cada um segundo as suas dificuldades, as suas limitações e a sua história. O imigrante é, pois, para o presidente francês, um autómato, uma peça de engrenagem, um escravo que se aceite, exclusivamente, na medida em que preenche as necessidades de trabalho da grande França. O imigrante não é visto como um homem. As suas necessidades de afecto são irrelevantes. É uma visão inacreditavelmente monstruosa. Inaceitável. Ficamos a saber que para o presidente Sarkozy, que veio esta semana anunciar-se, em jeito de messias pateta, arauto de uma política de civilização, que pretende humanizar a sociedade, há homens de primeira e homens de segunda. Espero que quando estiver em cima da Carla Bruni, comendo-a com satisfação e vaidade, um raio lhe fulmine a pila, lhe decepe vários membros e lhe deixe a carranca num estado de monstruosa feiura.