Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2008/12/30
2008/12/28
Pretinha
É aquela pretinha com bom aspecto, explicou o homem à sua jovem esposa. Falava da condoleezza rice. A mulher sorriu com desinteresse e beberricou de um copo de vinho. Não deu gargalhadinhas tolas. Mas poderia tê-las dado. Afinal, uma pretinha com bom aspecto é algo que suscita espanto no seu mundo de pechisbeque e baquelite. Preparei-me para lhe lançar um olhar de piedade. Um olhar fugaz que não provocasse estragos de maior e que pudesse ser confundido com outra coisa qualquer. Os almoços em família não se prestam a insultos e eu acho, acho mesmo, que no Natal devemos mostrar piedade, que é um sentimento tão cristão, pelos tristes de espírito. Porém, antes que eu pudesse olhá-la de tal modo, a mulher alisou a saia plissada, curta, curtíssima, mostrou umas impecáveis pernas torneadas e começou a falar de outra coisa qualquer. Acanhei-me no canto da mesa e procurei o olhar do meu filho João. O João traz o mundo no olhar. Aninho-me lá com frequência.
2008/12/22
2008/12/21
Rosie
Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros
2008/12/19
2008/12/17
PSL
O problema da anunciada candidatura do PSL à câmara municipal de Lisboa não é o de vir revelar o quanto é frouxa, e pouco consistente, a liderança da Manuela Ferreira Leite à frente do PSD. Mais coisa, menos coisa, estou habituada a ser sistematicamente desiludida pelo partido com o qual me identifico. Os políticos que julguei sólidos e sérios mostram-se, à primeira oportunidade, pífios, reles, do mais ordinário que há. Veja-se o caso do Durão Barroso. O dito fez-me, pela primeira vez na vida, votar no PSD. Depois, metendo os seus interesses pessoais à frente dos interesses do país, fugiu. O problema da candidatura do PSL à câmara municipal de Lisboa não é, pois, o de vir mostrar que o maior partido da oposição não é uma opção credível para o governo do país. Isso já se sabe. O problema da candidatura do PSL, e é o que me assusta, é o risco, sério, do homem ganhar as eleições e, no seu estilo tão característico, novamente se instalar no poder. Nem quero pensar em tal hipótese.
2008/12/16
Mandamentos
Esta noite não fumarás. Cigarro atrás de cigarro. Até ficares com a boca com gosto e cheiro de estrebaria. Um odor acre de mijo de caprinos ao acordar. Esta noite não beberás. Nem martinis. Nem copos de uisqui com água gaseificada. Nem copos de vinho. Nem cervejas pretas. Esta noite não lerás. Nem a Bíblia dos Capuchinhos. Nem o livro de capa amarela e letras azuis. Com frases e pessoas inacabadas lá dentro. Nem o outro de capa castanha e letras bege que um colega de escritório te ofereceu no Natal. Esta noite não ligarás o pc. Personal computer. Deixa-o dormir na quietude fria da noite que é animal de estimação como outro qualquer. Esta noite não escreverás. Em sítio nenhum. Só deve escrever quem sabe. Ignorarás a Domitília Vento, a Rosa Maria, a Guiomar, a Judite, a Maria Adozinda e a mulher albina, de olhar simiesco, da estação de comboios. São mulheres que vivem dentro da tua cabeça. Esta noite não tomarás os comprimidos que escondes numa caixinha de cartolina roxa por baixo das cuecas e sutians. Estás demasiado cansada para morrer. Às vezes, é menos cansativo viver do que morrer. (Dezembro de 2006)
2008/12/15
Supari
Numa das gavetas do louceiro, entre as toalhas de linho que a minha mãe comprou para o enxoval, guardo pacotinhos de supari, caixas velhas de incenso, sabonetes de açafrão e sândalo, quadrados negros de kajal, masala tea bags, fiadas de flores de jasmim, já secas e esboroadas. Quando tenho saudades da Índia, o que acontece frequentemente, enfio o nariz na gaveta e deixo-me inundar pelos cheiros do mercado de Margão. O meu filho João faz o mesmo. Não sei, juro que não sei, o que faço aqui. Qualquer dia fujo.
2008/12/13
2008/12/11
2008/12/09
Laurinda
Ao que parece a Laurinda Alves será candidata ao Parlamento Europeu pelo MEP, o partido da boa vontade, dos cidadãos empenhados, dos puros de coração, dos que acreditam num futuro melhor. Uma graça de partido. Tenho pena dos deputados europeus. Se a Laurinda for eleita, o que não parece fácil, levarão com uma catadupa de propostas de legislação sobre cuidados paliativos.
Guilherme
O Guilherme Silva veio sugerir que o plenário da Assembleia da República deixe de se realizar à sexta-feira. Para evitar o constrangimento e a vergonha dos deputados faltarem às votações. Eu acho bem e não me importo que o meu director siga o exemplo e determine que, à semelhança dos deputados, à sexta-feira, não façamos a ponta de um corno: não há análises de propostas de lei, não há elaboração de articulados, não há idas a tribunal. Nada. Nadinha.
2008/12/07
Notas Domésticas
1) João, o primogénito, entra na casa de banho e pergunta se alguma vez apanhei uma bebedeira. Depois senta-se na sanita à espera da resposta. Digo-lhe que não, que nunca na vida apanhei uma bebedeira. Nem um pifo pequenino. Ele sai em silêncio. Não gosto de mentir aos meus filhos. Gosto ainda menos que eles percebam que lhes minto. 2) Há tanto a dizer sobre sutiãs de amamentação. Depois das mamadas, naquela atrapalhação de gestos, por querer rapidamente retomar a compostura, esqueço-me muitas vezes de fechar as portinholas. Quando, antes de deitar, me dispo e dou de caras com as guaritas em baixa, os mamilos flácidos espreitando nos triângulos gordos, sinto-me uma porno star de trazer por casa, velha e patética. 3) Lembro, volta e meia, a tarde em que fomos a uma sessão de terapia conjugal. A psicóloga, bonita, tinha um ar aborrecido e usava uma camisola branca de angorá. Atrás dela, como que a emoldurá-la, via-se uma tela com gomos de laranja. Não me lembro das ponderadas palavras que a senhora doutora disse. Mas lembro, com detalhe, a camisola de angorá e a pavorosa tela laranja. 4) Madalena, a bela, toca violino com a insegurança própria de tudo o que começa. E, no entanto, quando me ensina a ler as pautas põe uma voz segura e adopta uma postura de pedagoga. É bom aprender com os filhos. 5) Oiço, vezes sem conta, o amor Clandestino dos Deolinda. Há muito tempo que não escutava uma canção tão bonita. E cantada em português que é a língua mais bonita do mundo. Quando a escuto fico com vontade de apanhar um pifo pequenino.
2008/12/04
Pasolini
Quase todas as casas, à beira da ruína, têm à frente um pequeno portal: e aqui…eis-me diante de um dos factos mais impressionantes da Índia.
Todos os portais, todos os passeios transbordam de corpos adormecidos. Estão deitados no chão, contra as colunas, contra as paredes, contra as ombreiras das portas. Os seus panos envolvem-nos por completo, encardidos de sujidade. O seu sono é tão profundo que parecem mortos embrulhados em sudários esfarrapados e fétidos. São jovens, rapazes, velhos, mulheres com os seus filhos pequenos. Dormem enrolados ou deitados de costas, às centenas. Alguns estão ainda acordados, especialmente entre os rapazes: param vagueando em redor ou falam baixo sentados à porta de uma loja fechada, nos degraus da entrada desta ou daquela casa. Há os que estão a deitar-se neste momento, a envolver-se no seu lençol, tapando a cabeça. A rua toda está cheia do seu silêncio: e o seu sono é semelhante à morte, mas a uma morte, por sua vez, doce como o sono.
Pier Paulo Pasolini , O Cheiro da Índia
Todos os portais, todos os passeios transbordam de corpos adormecidos. Estão deitados no chão, contra as colunas, contra as paredes, contra as ombreiras das portas. Os seus panos envolvem-nos por completo, encardidos de sujidade. O seu sono é tão profundo que parecem mortos embrulhados em sudários esfarrapados e fétidos. São jovens, rapazes, velhos, mulheres com os seus filhos pequenos. Dormem enrolados ou deitados de costas, às centenas. Alguns estão ainda acordados, especialmente entre os rapazes: param vagueando em redor ou falam baixo sentados à porta de uma loja fechada, nos degraus da entrada desta ou daquela casa. Há os que estão a deitar-se neste momento, a envolver-se no seu lençol, tapando a cabeça. A rua toda está cheia do seu silêncio: e o seu sono é semelhante à morte, mas a uma morte, por sua vez, doce como o sono.
Pier Paulo Pasolini , O Cheiro da Índia
2008/12/02
Goa
Nunca aqui escrevi sobre o primo Renato, goês delicado, de infindável ternura. Nem sobre o Cristo falante que, numa tarde de mornidão, mandou o tio Rosário gastar o dinheiro da casa no jogo. Também nunca escrevi sobre a noite vista do terraço, o fio de palmeiras, indicando o caminho para Rachol, onde mil morcegos habitam as profundezas do claustro, matilhas de cães vadios roendo a escuridão, o pequeno arbusto de tulsi, com um pau de incenso ardendo em sinal de respeito. Durante a noite os deuses habitam o quintal. Comem chicus e limas. Brincam com os lagartos e os esquilos. Escondem as garrafas de vinagre e de feni entre as ervas altas. Só para arreliar a tia Maria.