2009/10/30

Chá de Domingo

Olivia Arthur/Azerbeijão

Finados

Fiz um bolo de nozes para a minha sogra oferecer, pelo dia de finados, à sua comadre Maria. É tradição lá da terra. A minha sogra já não consegue cozinhar e a Fátinha, empregada de uma vida, fugiu-lhe de um dia para o outro com um namorado sapateiro. Quando me casei gostava do meu marido e desdenhava a sua aldeia, de casas feias, e a família, conservadora. Passado tanto tempo desdenho o marido e gosto da aldeia e da família. Adiante. A comadre da minha sogra vive do outro lado da estrada, tem cinco filhas de olhos claros, muito bonitas e altas, de cabelos aos cachos, parecem patrícias romanas, um filho polícia, o Artur, muitos netos e netas, uma casa que parece um castelo, sempre cheia de gente e de bichos. Um dos netos estuda medicina na República Checa. É o orgulho da família. Quando o menino chega pelas férias preparam-lhe caldos de borrego e compram-lhe bifinhos do lombo a vinte e cinco euros o quilo. O neto mais novo nasceu anão, mas, assegurou-me, certa vez, a D. Maria, numa conversa longa junto à capoeira, é muito bonitinho, uma inteligência, sem cabeça gigante, o corpo minúsculo nas proporções certas, benza-o deus. O malandreco aprendeu num instantinho a tabuada dos sete… , assegurou-me ela, ainda incrédula, enquanto atirava talos de couve e papas de pão às galinhas. À nossa volta, o quintal florescia cheio de vida e musgo. Espero que a D. Maria goste do bolo de nozes e me elogie os dotes culinários. Preciso desesperadamente que me afaguem o ego. O problema é que a Fátinha, a que fugiu com o sapateiro, era uma doceira e peras. É didícil chegar-lhe aos calcanhares.


Amieiro

O padre Pedro fumava ontem um cigarro à porta da igreja. Estava encostado a um amieiro frondoso e usava umas calças de ganga e uma camisa branca. De repente, é costume dele, deu uma gargalhada sonora e mostrou uma fileira de dentes muito direitinhos. Alinhei a racha da saia. Limpei o bico do sapato à barriga da perna. Sorri-lhe com candura e pureza. Ele sorriu-me de volta. Depois entreguei a minha filha à catequista.

Primeira vez

Melinda está no apartamento velho de Bombaim. Lara e Elaine despem a farda puída da escola. Desfazem as tranças negras. Melinda telefona ao marido. Combinam um passeio ao final da tarde na praia. Apanhamos um riquexó. No caminho, Lara, a mais pequena, mostra, com o indicador muito espetado, a mansão onde vive a maior estrela do cinema indiano. Tem três guardas fardados de metralhadora à porta. Um renque de palmeiras e hibiscos floridos de vermelho emoldura o sossego da estrela. Quando chegamos as meninas correm para o pai que as aguarda com maçarocas assadas. No areal há trapezistas, vendedores ambulantes, macaquinhos amestrados, freiras gordas, adivinhos, violadores da devassa ocidental, famílias inteiras que chegam ruidosas. Vendem-se cones de papel de jornal cheios de grão frito e gelados coloridos. Escuta-se um realejo de feira. Os abutres lançam sobre o areal uma sombra de morte. Ao olhar a minha prima Melinda e a sua família senti uma espécie de revelação. Deve ter sido o que os pastorinhos sentiram ao ver a tal senhora. Pareceu-me, nem sei explicar porquê, que a felicidade afinal é uma coisa muito simples. Um organismo primitivo. Uma amiba unicelular. Durante muito tempo, ainda agora, quando penso nessa tarde, nas gargalhadas das meninas, enroscando-se nas pernas do pai, dá-me um aperto no peito, uma melancolia que me sabe bem.

Segunda vez

Lembro-me de te falar ao ouvido. Vou cuidar de ti. Até seres velho. Não sei como se faz, mas vou ser imortal, como os deuses, para nunca te deixar só. Vou ter muitos filhos. Até as minhas entranhas se cansarem e apodrecerem com cheiro de limão e manchas de bolor. Vou educar essas crias cegas para serem a tua bengala e o teu amparo. Repeti as mesmas palavras vezes sem conta enquanto te embalava. Meu amor. Até que as esvaziei. Tirei-lhes o sentido. Ficaram as palavras mortas, rotas, uns fiapos de espuma, pendurados no vazio. Quando não esperava, entrei-te pelos olhos dentro. Deixei de ser invisível. Senti o corpo quente. Inchei como um balão de feira. Era um deus louco e caprichoso que me soprava para dentro. Achei, pela segunda vez na vida, que podia ser feliz.

(não sei para que serve ser mulher e não ser mãe)

2009/10/27

Outono

Presto contas à clientela: nem sempre tenho vontade de escrever. Quando isso acontece tenho ganas de vir aqui carregar no botãozinho do delete. Depois, dá-me uma fraqueza, sei lá o que é, uma cobardia, e não consigo apagar-me. Tomo um sanax, choro um bocadinho, alivia-me sempre, e começo a ronda da noite. Velo pelo sono dos meus filhos. Cheiro os mais velhos. Belisco o mais pequeno. Passo serões inteirinhos a fazer bolos de erva-doce e argolinhas fritas de canela para eles impressionarem os colegas durante o lanche. Cozo marmelos. Faço panelões de doce de abóbora e dióspiros. Leio antes de adormecer. No fundo, bem lá no fundo, sou uma perfeita fada do lar. O que é que uma mulher pode querer mais da vida?

Lady, Puffy e Susy

Todas as tardes, três velhas de Moscavide vão passear para o lado de lá. Atravessam o passadiço que atravessa a linha de comboio e, com passinhos moles, bruxuleantes, levam pela trela as cadelinhas rafeiras. Muito gordas e feias. De pernas curtas e pêlo ruço. Olhos vermelhos e tristes. As três velhas de Moscavide chamaram às suas cadelinhas Lady, Puffy e Susy. Não prescindiram do i grego quando baptizaram os bichos de estimação. Cadelinha que se preze tem de ter i grego no nome! Dá um certo sainete. As cadelinhas são como as donas. Pequenas, velhas e incontinentes. Deixam rios de mijo muito amarelo no passadiço que atravessa a linha de comboio. Os cagalhotos espalham-se orgulhosamente por toda a parte. Por vezes, escondem-se sob a sombra dos degraus. Mais cedo ou mais tarde, acabam por ser espezinhados por um transeunte incauto que logo solta um enorme palavrão. Ninguém se livra do fedor e da humilhação. Os passageiros que precisam de mudar de linha ou querem ir para o lado de lá, têm sempre de atravessar o passadiço. É vê-los aos saltinhos, em biquinhos dos pés, de mão no nariz, numa dança absurda, tentando evitar o rasto de imundície do passeio das três velhas de Moscavide. Um dia tudo mudará. Tenho esperança e a esperança, dizem os entendidos, é a última a morrer. Surgirá um justiceiro, levemente parecido com o keanu reeves, que não parece inteligente, mas é giro e sabe voar. Aparecerá o tal justiceiro e abrirá um buraco na treliça do passadiço e por ele, uma a uma, atirará as cadelinhas à linha. Puffy! Lady! Susy!, gritarão as pobres velhas em desespero, arrepanhando com as unhas lascadas de verniz comprado no chinês da avenida o cabelo pintado de amarelo. Será em vão. Acabar-se-ão os cagalhotos e os rios de mijo amarelo. Será um alívio. Os passareiros baterão palmas ao heróico gesto. Eu - que tenho um nariz grande e muito sensível e, todos os dias, tremo só de pensar em atravessar o passadiço - alçarei a perna e darei um beijinho repenicado na bochecha do garboso justiceiro.

2009/10/20

Inquietação

Saio do Ministério. O porteiro faz-me mil salamaleques. Cumprimentos que são quase vénias. Senhora doutora para aqui e senhora doutora para ali. Sorrio. Convenço-me que mereço tantas mesuras, eu que sou tão medíocre. Estava preocupada com os assessores, os directores, os tecnocratas, os senhores de fato e gravata que esgravatam na máquina do Estado. Correu bem, afinal. Começo a subir a Infante Santo. Alguém me chama. É uma mulher baixinha, de cabelos brancos. Veste um anorak de um vermelho desbotado. Por cima da camisa, usa um cinto demasiado largo, muito datado, antigo, que lhe marca a esfericidade do corpo. Também esteve presente na reunião. Fixei-lhe o nome. Amélia dos olhos doces. Oferece-me boleia. Contrariada, digo-lhe que sim. Queria aproveitar o fim da tempestade. Subir ao Jardim da Estrela. Descer depois ao Rato. Imagino que não tenhamos nada em comum a não ser a portabilidade das pensões complementares no espaço comunitário. Falamos sobre tal assunto. Ela fala entusiasticamente. Eu vou respondendo. Debito as preocupações da Polónia que li num relatório qualquer do conselho. Às tantas, na rádio, uma canção desperta-me daquela dormência. Com tantas guerras que travei, já não sei fazer as pazes. Estremeço. Reparo que ela a canta baixinho. Pergunto-lhe se gosta daquela canção. Diz-me que sim, que gosta muito. Esquecemos de imediato as reuniões do conselho e da comissão. Esquecemos as pensões complementares, os regimes complementares, o princípio da subsidariedade e o da portabilidade. Avançamos manhã fora pela cidade.
(é esta semana.)

2009/10/15

Olé

Estivemos à beira de ser eliminados. Bastaram, porém, duas vitórias com duas equipas de segunda categoria para logo os portugueses desatarem a gritar olé. Assim se vê a mediocridade de um povo. Olé, gritaram os portugueses como se os húngaros e os malteses fossem gado bovino. Olé, gritaram os portugueses enquanto coçavam os testículos pequeninos de satisfação e exibiam unhas de gel e extensões de cabelo de plástico. Olé, gritaram os portugueses, eufóricos com tão pouco. Não se grita olé à equipa de outro país. Fazê-lo é humilhar um povo. E a humilhação é a arma própria dos fracos e dos medíocres.

(só se pode gritar olé quando o porto vier jogar à luz.)

Jezibela

Dou a mão à palmatória: chateou-me um pouco, só um pouco, o último Mia Couto. O livro é um encanto enquanto só são dois homens, outro que vem de quando em quando, dois meninos e uma burra chamada Jezibela. Depois, aparece uma mulher branca, chamada Marta. Como todas as mulheres brancas não tem competência para amar. O marido deixou-a pela quentura africana. A partir desse momento, em que, através da mulher branca, o mundo chega a Jesusalém, tudo se perde. O romance ganha densidade, o leitor começa a perceber a história, mas qualquer coisa se estilhaça. Perde-se a primeira loucura que é assim uma espécie de primeira inocência. O amor de Silvestre Vitalício pela burra - toma-a aos domingos, depois de se pentear e perfumar – é mais comovente do que tudo o resto. Tive pena quando morreu. Era uma burra tão doce e terna. Podia chamar-se Dordalma. Por desfastio vou ler um dos muitos livros da Agustina que ainda não li. Ainda bem que ela escreveu tantos. Desde domingo, quando escutei o Pedro Mexia e a Inês Pedrosa falar da escritora como se a conhecessem intimamente, por dentro, do avesso, que tenho vontade de a ler. Os candidatos a escritores, sobretudo as candidatas a escritoras, que enchem folhas de aborrecidos delírios femininos – também eu, às vezes, o faço; depois ganho juízo e esbofeteio-me até sangrar - deviam ser obrigadas a ler-lhe os livros. Poderiam assim perceber alguma coisa do que é isso de se nascer mulher e deixar o mundo em sossego.

2009/10/13

Oráculo

Anda muita gente preocupada com as sondagens. Que são falíveis. Que condicionam o voto. Que manipulam eleitores. Dou pouco atenção às sondagens. Interessam-me mais as previsões dos comentadores políticos. Os tarólogos observam as cartas e fazem mirabolantes previsões de ano novo: o Benfica campeão, a Elsa Raposo a entrar para um convento, o final do caso Casa Pia, o nível de vida dos portugueses a melhorar significativamente. Os entendidos da bola analisam tácticas e equipas e arriscam resultados de partidas. O professor Mambo olha os búzios e assegura futuros risonhos de fortuna, amor, saúde e, se necessário for, sexo satisfatório. Os comentadores políticos não são muito diferentes. São uma espécie de bruxos. Analisam a vida política e conseguem, por vezes, de forma extraordinária, prever resultados eleitorais com que mais ninguém sonha. Umas vezes, acertam. Outras vezes, não. Nuns casos e noutros, os comentadores políticos aparecem como uma raça de eleitos a quem o futuro foi revelado em selectos oráculos por insinuantes vestais de beleza impar. Não é para qualquer um.

(Contaram-me, mas ainda me custa a acreditar, que o Carlos Magno previu na Antena 1 a vitória da Elisa Ferreira no Porto.)

Directores

Vi ontem o debate dos directores dos jornais. O João Marcelino é um autêntico gigolô. A barba, o fatinho levemente acetinado, a camisa preta, a gravata, tudo nele tresanda. Cheira mal. Fede. O José Manuel Fernandes é um senhor. Quero cá saber se esteve mal na publicação da notícia de Agosto, se investigou pouco, se se precipitou. Aprendi a pensar o mundo ao longo dos anos a ler o Público e, confesso, estou triste por ele o deixar. Um dia vi-o à saída do Nimas. Ele ainda era muito gordo. Chovia. Fiquei a observá-lo. Invejei-lhe a companhia, eu que passava mais um domingo de solidão no cinema. Não fosse eu de recato e ter-lhe-ia dado um beijo na boca. À chuva e pelo crepúsculo. Uma mulher agradece como pode. É uma pena que a vida nunca imite a ficção. O Henrique Monteiro é um assombro. Disse ontem tudo o que havia a dizer. Não revelou a tal fonte que fez chegar o mail ao Expresso. Mas para bom entendedor meia palavra basta. Só os tolos não querem compreender. Remeteu o Marcelino à sua grotesca insignificância e viscosidade. Palmas.

Pavilhão 21

Estás sentada nas escadarias do pavilhão 21. Uma mulher de olhos claros fuma ao teu lado. Tem a cabeça pequena envolta num lenço cor-de-beringela. Usa um robe fresco. Tem mãos grandes, dedos longos e finos, as unhas compridas pintadas de branco. Reparo nos chinelos velhos que lhe sobram nos pés. Sorris. Estás gorda. Nunca te vi tão gorda. Olho para ti e não penso nos comprimidos que tomaste com as primeiras chuvas. O pensamento que me ocorre é frívolo, inconfessável: se não tiveres cuidado, muito cuidado, arriscas-te a ficar quadrada, com o corpo da tua mãe. Vestes uns corsários pretos, com atilhos nos joelhos, usas uma camisola alegre, de um tecido fino, quase transparente. Nas pálpebras, um risco grosso, mal traçado, de um verde vivo. Estranho a preocupação de te maquilhares depois do que aconteceu. Explicas que tens de falar com o médico por causa da medicação da noite. Não dormes bem. Acordas sobressaltada, com pesadelos. O teu sono não é reparador. Os sonhos cansam-te por sentires o corpo desprendido. Também sinto o corpo descarnado durante a noite. Pedes-me para esperar. Sento-me nas escadas, perto da mulher magra que ali permanece, parada. Parece uma feiticeira. Tiro um livro da mala. Leio a frase que sublinhei "Quero dizer-lhe uma coisa, doutor: a minha Aninhas é feliz".


Um bando de pardais chapinha num charco. Chilreiam, fazem muito barulho, ziguezagueiam como se fossem crianças pequenas a brincar felizes no pátio de uma escola. Noutro charco, um pássaro maior, preto, com um bico amarelo. Será um melro? Gostava de dominar a ornitologia, saber o nome dos pássaros, reconhecê-los pelas cores, pelas formas, pelo falar. Ao fundo da alameda três pombos voam rasteiros. Aterram perto de um aloendro florido de branco e de uma pereira pequena carregada de frutos. Chegam vozes, vindas do lado direito do pavilhão 21. Um homem muito velho ampara uma rapariga. Andam devagar. Sentam-se também na escadaria do pavilhão 21. O homem tem o rosto queimado, muito envelhecido, cheio de rugas e vincos. Usa o cabelo branco, comprido, puxado para trás. O produto que utilizou para fixar o cabelo dá-lhe um ar antigo e sábio. Usa um bigode fininho e bem aparado. A camisa aberta torna visível um cordão de ouro com um crucifixo exageradamente grande. Tem a unha do dedo mindinho mais comprida do que as restantes. A rapariga veste umas calças de ganga desbotadas e uma camisola azul de alças que lhe deixa a descoberto as costas claras, cobertas de borbulhas e de pequenos furúnculos vermelhos com pus. Tem a boca aberta, sempre aberta. Parece não a conseguir fechar. Um fiozinho de saliva, quase invisível, escorre-lhe pelo queixo. Os olhos estão mortos, perdidos no chão. A rapariga começa a chorar. O homem tenta acalmá-la.

- Não chores filha! Tens é que te por boa. Estás aqui para ficares boa!

- E a minha casa?

- Deixa lá a casa, que ela não foge! Não penses nisso. Ainda ontem, a Maria Augusta te foi lá regar o feijão verde e os tomates.

- Foi?

- Então, eu mentia-te? E não te preocupes com a Carlinha que ela está bem.

- Coitadinha...

- Coitadinha, porquê? É muita esperta, é uma miúda muita esperta... é como a mãe dela.

A conversa é interrompida pela chegada imprevista de um rapaz baixo, atarracado, de cabelo ruivo. Usa calções, chinelos, uma camisola de mangas cavas verde. Os olhos estão escondidos atrás de uns óculos escuros. Nas mãos traz um saco de plástico cuja transparência deixa a descoberto o conteúdo: um frasco de gel de banho e um rádio pequeno do qual irrompe a voz do Serge Gainsburg e da Jane Birkin. Tem um ar determinado. Aproxima-se das escadas e dá um aperto de mão à rapariga. Fala muito devagar, arrastando as sílabas, tornando difícil a compreensão das suas palavras.

- É o teu pai?

O homem velho esclarece-o.

-Não, não sou o paizinho dela. Mas fui eu que a criei. É como se fosse minha filha.

O rapaz gordo faz um sorriso rasgado.

-Muito prazer. Chamo-me Júlio.

- Como?

- Jú-li-o.

- Ah, Júlio! Muito bem, muito bem! António, o meu nome é António.
Ficam a olhar um para o outro, acenando a cabeça, sorrindo, fazendo vénias pequeninas e curtas. Parecem chineses ou japoneses. O rapaz farta-se daqueles gestos e, sem se explicar, abandona as escadarias do pavilhão 21. Perde-se de novo nos caminhos labirínticos do hospital. Parece um gnomo, um duende, um anão. Leva com ele, aprisionados dentro do saco de plástico, o Serge Gainsburg e a Jane Birkin. Tive vontade de lhe pedir para ficar nas escadarias do pavilhão 21. Até que a canção terminasse. Há um bosque encantado no meio da cidade.

Buscopan

A Laurinda Alves, para além de arquitectos, gosta do Seu Jorge que cresceu numa favela. Duvido que o Seu Jorge goste da Laurinda. Ainda bem que tenho sempre um buscopan à mão.

Agnés Jaoui

Quando os meus filhos forem crescidos hei-de cobrar tudo o que deixei de fazer por causa deles. Tanto que gostava que ter visto, hoje, no São Jorge, o filme da Agnés Jaoui com o Jean-Pierre Bacri. Fazem um par tão bonito. Eu gosto. E gostos não se discutem.

2009/10/07

Esmola

Ia a correr para a estação dos comboios, feliz com a chegada da chuva, a pensar nos dióspiros maduros que apanhei no sábado e na galinha que depenei no domingo, sob as orientações jocosas da Maria, quando fui abordada por um homem que, mexendo vigorosamente no pénis, me pediu para lhe fazer um broche. Trazia a cara torcida, num desatino, numa urgência, como se fosse uma questão de vida ou de morte. Abordou-me assim do nada. Logo pela manhã. Tinha eu deixado o João à porta da escola, a Dá das sabrinas amarelas na aula de violino, o Joaquim a gatinhar pela selva, mandando às ortigas a hipotonia que trouxe ao nascer. O homem pediu-me um broche como quem pede uma esmola. Achei o pedido inoportuno. Sobretudo, desolador. É tão justificado o desprezo que tenho pelos homens em geral.

Trio Maravilha

A rapariga do sorriso alucinado, olhos esbugalhados, que escrevia no Y às sextas-feiras, na companhia da Inês Nadais e da Alexandra Lucas Coelho, o trio maravilha (as saudades que tenho do Y de então, agora só lá escreve a Isabel Coutinho sobre coisas estranhas e incompreensíveis), será a nova directora editorial do Público. A minha alma está parva. As surpresas que uma pessoa tem na vida. Não conheço a Bárbara Reis de lado nenhum, mas acho muito bem. Mulheres ao poder!

Mia Couto

O Carlos Vaz Marques entrevistou o Mia Couto para a Ler. Geralmente, os entrevistados têm direito à capa da revista. Até a Margarida Rebelo Pinto, essa grande escritora, teve tal honra. O Mia Couto não teve. Meteram lá o Bolaño. Outra coisa não se esperava. O Mia Couto é dos mais conhecidos escritores da língua portuguesa. A sua escrita, todavia, é desconsiderada por muitos. Acham-no cansativo, demasiado poético, uma linguagem cheia de trinados, de palavras imaginárias que são bonitas, na sua estranheza e exuberância, mas que não servem para nada. E maçam. A sua escrita está fora de moda. A escrita deve ser nos dias de hoje como o mobiliário do ikea. Minimalista. Depurada. Massificada. O bom gosto ao alcance de qualquer um. Como as estantes billy. Gosto do Mia Couto. Leio-o e sei que a casa do Zumbo continua à nossa espera. Natália, a menina que escutava canções do Roberto Carlos, também. A menina já é velha e tortinha. Anda esquecida. Não lembra o dia em que o homem indiano chegou e lhe arrancou o bebé dos braços. O Agualusa, lá de cima do seu sucesso, unânime e merecido, veio dizer que o Mia Couto cresceu. Eu, se fosse o Mia Couto, mandava-o dar uma volta ao bilhar grande. Para além do resto, que é muito, o Mia Couto é um homem bonito e não é nada fácil encontrar um escritor assim que escreva em português. Também por isso merecia ser capa da Ler.


(Correndo o risco da repetição, direi: a Ler é um revista feita por homens e para homens. Quem a faz nunca pensa nas mulheres e no bem que certas coisas nos fazem. Os homens, mesmo os intelectuais e eruditos, gostam de olhar para a maxmen e ver mamas e cus de silicone. As mulheres são diferentes. Também gostam da volúpia das mamas e dos cus de silicone das outras mulheres. Nos homens, todavia, procuram a beleza dos detalhes e o mistério do que é pouco evidente. Ora, tirando a capa do Agualusa e do António Barreto, uma mulher não se governa com a Ler. Um verdadeiro desconsolo.)

2009/10/01

Croquetes

Que fique claro: por mim, podeis beber margueritas e roer aperitivos até cairdes para o lado. Podeis até em êxtase paralítico ficar enquanto escutais as palavras do Bolaño ditas pela boquinha sensual da Soraia Chaves. Mas não baralhais as coisas. Nunca, em tempo algum, escrevi que não se pode gostar do Vergílio Ferreira e do tal Bolaño, que, estou certa, é um escritor bestial. Poupai-me, pois, à ironia sem graça que eu sou já uma mulher depressiva. Uma desgraçada. Estou sempre à beirinha do precipício. Calai-vos e ide lá roçar o cu para as lx factorys desta cidade, onde, para além de beberetes literários, se fazem arraiais aos santos populares com música étnica. A música pimba fere ouvidos selectos. Acreditai: vós, os pândegos, para além de escritores assim-assim, sois um nadinha burros e um nadinha distraídos.

Macaquinhos de imitação

Escutei um discurso diferente daquele que os jornalistas, analistas, comentadores e politólogos, têm, ao longo dos últimos dois dias, em catadupa e como é costume e desejável, analisado com total imparcialidade e rigor. Estava em casa com o meu Joaquim pequeno, solzinho da minha vida. Os outros andavam a monte. Sentada no chão da sala, as pernas abertas, o meu filho aninhado, fazendo construções de legos, um fio de ranho a escorrer-lhe do nariz, preparei-me para escutar o discurso do senhor presidente. Esperava um sermão aborrecido, cheio de paninhos quentes, institucional e apaziguador. Qualquer coisa que nos preparasse para a nova legislatura. Assim como a vacina da gripe nos prepara para o inverno. Enganei-me. Veio de lá um discurso explosivo. A meu ver, frontal e corajoso. Só pecou por tardio. O presidente disse aquilo que ninguém esperava. Chamou as coisas pelos nomes. O que não é habitual. Abalou os alicerces da democracia ao insinuar que o ps é um partido tentacular, uma espécie de polvo, que manipula e instrumentaliza a sociedade portuguesa. Esqueceu-se de dizer que o psd, sempre que pode, tenta imitá-lo. Mas, reconheçamo-lo, o ps tem a engrenagem melhor oleada. A maçonaria por detrás dá sempre jeito. O presidente deixou demasiadas dúvidas no ar? Deixou. Mas são dúvidas legítimas. Qualquer pessoa que leia jornais as tem. A mim, que sou uma simples jurista assalariada, mãe de família, habitante dos subúrbios, conforta-me que o presidente da república as tenha expressado em vez de fingir de está tudo bem. Não está tudo bem. Está tudo mal.

O congelamento da nota do juiz Rui Teixeira pelo conselho superior da magistratura, forçado por juízes conselheiros nomeados pelo ps, é demasiado grave para passar incólume. É bem demonstrativo do tal poder monstruoso do ps. O papel da procuradora Cândida Almeida na investigação do caso Freeport também. A senhora procuradora, já se percebeu, não está lá para investigar nada, mas sim para empatar, justificar, arquivar. Ora, se a justiça é, há tantos anos e com a complacência de todos, nos momentos chave, controlada pelo ps e pela maçonaria (casos há em que antes de se conhecer a sentença já os arguidos dormem descansados, certos de que serão ilibados), por que não há-de a comunicação social e o resto também sê-lo? Sentada na minha sala, enquanto o ouvia, aplaudi o senhor presidente que é feio que nem uma porta e tem uma boca que causa repulsa e nojo. O Joaquim largou os legos e com as suas mãozinhas tronchudas também o aplaudiu. O ranho já lhe chegava à boca. Macaquinho de imitação. O entusiasmo foi de pouca dura. Ouvi, logo de seguida, o António José Teixeira, o Ricardo Costa e a Constança Cunha e Sá. Desinchei. Confirmei as minhas suspeitas: não percebo um boi de política.