2009/12/27

Martin Schoeller

Venho aqui pavonear-me. É o que os outros fazem. O ano termina em beleza. Com um convite para escrever numa revista única. Estou como a rã da fábula. Tinha tantas coisas interessantes para vos contar, queridos e estimados leitores, mas tenho de ir ali num instantinho vomitar o robalo e a salada de pimentos que comi gulosamente ao jantar e que, desde então, me andam a saracotear por dentro. Estou que não posso.

2009/12/17

Recado

Estou triste e tal. O costume. Já esvaziei caixas de comprimidos. Já olhei a linha do comboio suburbano. O parapeito da janela. Vezes sem com conta os pulsos onde encontro marcas quase invisíveis de outras vidas. Igualmente tristes. Nos entretantos escutei, de uma assentada, os discos todos do Fausto e escrevi, a pedido do Pedro, um conto para a revista do jornal i. Sai no próximo sábado. Ficou catita. Olarila. Gosto muito de escrever. Mas cada vez gosto menos de escrever aqui.

Tia Dé

Sentada no seu sofá branco, com uma mantinha azul a tapar-lhe as pernas, a minha tia vigia os movimentos da sobrinha pequena, não vá ela tropeçar, cair, bater com a cabeça na esquina da mesa e fazer um traumatismo craniano, era uma chatice. Chego com a minha mãe. Apesar do frio, trazemos connosco a alarido próprio das mulheres do sul. A minha filha enrola-se nos nossos pés como se fosse uma gata. É a sua maneira de nos dizer olá. Na televisão, um crocodilo gigante descansa sobre a mornidão das areias de um mangue. Enquanto espero que o chá de lúcia-lima arrefeça, decido arreliar a minha tia, tão confortável e regaladinha no seu sofá branco. Tia, sabes que estou a pensar em ir viver para a Índia?, digo-lhe sem tirar os olhos do terrível predador de olhos esbugalhados. Ela estremece e deixa que um silêncio tumular poise sobre a sala. Depois, gaguejando, diz Ó filha, tu és irreal, irreal, completamente maluca! E faz o gesto com o dedo. Apesar das minhas gargalhadas, ela continua. Aquilo é bom para passar férias, agora para viver! Aquela desgraça! Tu eras capaz de fazer isso aos teus filhos? E faz um ar recriminador como se morar na Índia fosse o mesmo que mandá-los para um colégio interno ou abandoná-los à porta de casa da Bárbara Guimarães e do Manuel Maria (não concebo maior desgraça para uma criança do que ter tais progenitores). Por fim, sossego-a. Ela ri-se, aliviada. Dá umas gargalhadinhas maravilhosas que parecem soluços de gente pequena. Quase lhe cai a dentadura. Mas o riso dela esconde um nervoso miudinho. Conhece-me bem a tia Dé.
(para grandes males precisam-se grandes remédios.)

2009/12/04

Marcovaldo

Acho lamentável a importância que, na obra de Calvino, se dá ao Sr. Palomar. Um exagero. Só porque o homem é contemplativo. Observa as ondas. Encanta-se com o voo dos estorninhos. Divaga, se bem me lembro, sobre o modo como os queijos estão dispostos nas prateleiras de uma mercearia. A insuportável possibilidade de poder preocupar-se com o detalhe e o acessório. Prefiro, de longe, Marcovaldo, o operário que quer caçar galinholas com piche, fazer um guisado com o coelho contaminado de peste, tratar o reumatismo dos velhos do seu bairro com picadas de vespões.
E é tudo.