Venho aqui pavonear-me. É o que os outros fazem. O ano termina em beleza. Com um convite para escrever numa revista única. Estou como a rã da fábula. Tinha tantas coisas interessantes para vos contar, queridos e estimados leitores, mas tenho de ir ali num instantinho vomitar o robalo e a salada de pimentos que comi gulosamente ao jantar e que, desde então, me andam a saracotear por dentro. Estou que não posso.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2009/12/27
2009/12/17
Recado
Estou triste e tal. O costume. Já esvaziei caixas de comprimidos. Já olhei a linha do comboio suburbano. O parapeito da janela. Vezes sem com conta os pulsos onde encontro marcas quase invisíveis de outras vidas. Igualmente tristes. Nos entretantos escutei, de uma assentada, os discos todos do Fausto e escrevi, a pedido do Pedro, um conto para a revista do jornal i. Sai no próximo sábado. Ficou catita. Olarila. Gosto muito de escrever. Mas cada vez gosto menos de escrever aqui.
2009/12/08
Tia Dé
Sentada no seu sofá branco, com uma mantinha azul a tapar-lhe as pernas, a minha tia vigia os movimentos da sobrinha pequena, não vá ela tropeçar, cair, bater com a cabeça na esquina da mesa e fazer um traumatismo craniano, era uma chatice. Chego com a minha mãe. Apesar do frio, trazemos connosco a alarido próprio das mulheres do sul. A minha filha enrola-se nos nossos pés como se fosse uma gata. É a sua maneira de nos dizer olá. Na televisão, um crocodilo gigante descansa sobre a mornidão das areias de um mangue. Enquanto espero que o chá de lúcia-lima arrefeça, decido arreliar a minha tia, tão confortável e regaladinha no seu sofá branco. Tia, sabes que estou a pensar em ir viver para a Índia?, digo-lhe sem tirar os olhos do terrível predador de olhos esbugalhados. Ela estremece e deixa que um silêncio tumular poise sobre a sala. Depois, gaguejando, diz Ó filha, tu és irreal, irreal, completamente maluca! E faz o gesto com o dedo. Apesar das minhas gargalhadas, ela continua. Aquilo é bom para passar férias, agora para viver! Aquela desgraça! Tu eras capaz de fazer isso aos teus filhos? E faz um ar recriminador como se morar na Índia fosse o mesmo que mandá-los para um colégio interno ou abandoná-los à porta de casa da Bárbara Guimarães e do Manuel Maria (não concebo maior desgraça para uma criança do que ter tais progenitores). Por fim, sossego-a. Ela ri-se, aliviada. Dá umas gargalhadinhas maravilhosas que parecem soluços de gente pequena. Quase lhe cai a dentadura. Mas o riso dela esconde um nervoso miudinho. Conhece-me bem a tia Dé.
(para grandes males precisam-se grandes remédios.)
2009/12/04
Marcovaldo
Acho lamentável a importância que, na obra de Calvino, se dá ao Sr. Palomar. Um exagero. Só porque o homem é contemplativo. Observa as ondas. Encanta-se com o voo dos estorninhos. Divaga, se bem me lembro, sobre o modo como os queijos estão dispostos nas prateleiras de uma mercearia. A insuportável possibilidade de poder preocupar-se com o detalhe e o acessório. Prefiro, de longe, Marcovaldo, o operário que quer caçar galinholas com piche, fazer um guisado com o coelho contaminado de peste, tratar o reumatismo dos velhos do seu bairro com picadas de vespões.
E é tudo.