2010/03/18

Março

Enfio a mão no jarrão da entrada. Espreito dentro da terrina chinesa colocada no centro da mesa da sala de jantar. Espanto-me sempre com a quantidade de coisas que a minha mãe consegue guardar dentro dos bibelots lá de casa: lápis de pintura estalada, canetas, clips, papéis, corta-unhas, alfinetes, agulhas de crochet, cadeados, porcas e parafusos, fotografias, elásticos, brincos, pulseiras, batons do cieiro, bulas de medicamentos, brinquedos pequenos dos netos. Uma vez, há já alguns anos, até lá encontrei um dos dentes de ouro do meu pai. Fiquei a olhar para ele e a lembrar-me do embaraço que sentia cada vez que soltava uma gargalhada. Parecia um pirata, um cigano, um maltês, um bandido qualquer. Ele a rir-se, feliz, eu a desejar que fechasse depressa a boca para que a europeia decência lhe voltasse ao rosto. A verdade é que a tolice da minha pré-adolescência me fazia ter vergonha do dente de ouro do meu pai e também dos chinelos que ele usava nos pés aos fins-de-semana. Na altura, os pés usavam-se cobertos, escondidos em sapatos de vela ou sapatilhas da le coque sportif. O meu pai, de pés escancarados, os dedos feios e amarelecidos, ofendia-me com os seus hábitos de gente do sul. Uma autêntica pornografia podológica.
Pego agora numa caixinha de argentaria, vinda de Lourenço Marques. A travessia do oceano, o vento salgado, deixou-lhe uma cor baça, triste. Verto tudo o que lá está dentro. Espalha-se o interior pela madeira de pau-preto. Tanta coisa, tanto quase-lixo. Não sei o que procuro. Não procuro nada. Quero apenas certificar-me que nada mudou nesta casa, que os objectos deste apartamento continuam guardiões das minudências dos dias dos meus pais. Um cheiro estranho de coisas velhas solta-se daquele bricabraque miniatura. Mistura-se o cheiro a ferrugem, que vem das chaves velhas da garagem, com o cheiro doce de um pacotinho de sementes de anis que a minha mãe trouxe do mercado de Margão. Março 2009

(os Marços da minha vida são sempre iguais.)

2010/03/12

Parece que vai chover.

Era o tempo dos cisnes, dos patos, das folhas da árvore de borracha que cheiravam a manteiga, do Jardim do Torel onde viviam todos os bichos-da-seda da cidade, enrolados sobre si, alheios ao ruído e ao frenesim. Era o tempo dos sonhos. Adormecia e, na escuridão, apareciam árvores com copas cor de cobre, milheirais, precipícios, gigantes que tinham sempre o rosto meigo de um primo afastado que estava internado no Júlio de Matos. Também eu, por vezes, aparecia na escuridão da noite e dos sonhos. Usava socas e tinha as unhas roídas. Nesse tempo não percebia ainda o meu corpo. Sabia apenas que se apertasse as coxas com muita força, durante algum tempo, até ao limite da exaustão, o meu avesso, o meu lado de dentro, seria invadido por uma crescente onda de calor que, pouco depois, se transformava numa sensação única, a melhor que até então experimentara. Aquela sensação durava pouco, era um arrepio, uma vertigem, uma explosão, mas era de uma intensidade tal que valia bem o esforço físico que exigia de mim. Depois da exaustão e do prazer chegava um cansaço morno, muito bom, que me deixava o corpo adormecido e apaziguado. Fazia-o em segredo porque era uma coisa boa e, naquele tempo, todas as coisas verdadeiramente boas - mascar pastilhas elásticas, beber coca-colas, brincar no pátio, experimentar os sapatos de saltos altos da minha tia, enterrar as mãos na terra, pegar na minha irmã recém-nascida ao colo - eram proibidas. Fi-lo durante a infância e a adolescência. Sempre em segredo. Partilhava o quarto com a minha irmã. Esperava que ela adormecesse. Na escuridão, em vez dos gigantes e das árvores com copas cor de cobre, apareciam então mãos que percorriam o meu corpo com vagar e urgência. Nunca percebi se a minha irmã, aconchegada no seu sono, escutava o restolhar dos lençóis e os gemidos quase inaudíveis que, volta e meia, não conseguia calar. Só sabia que a minha escuridão era diferente da dela.
Durante muito tempo, uma eternidade, achei que era a única rapariga do mundo que me masturbava. Sabia que os rapazes o faziam. Falavam entre eles sobre o assunto, vangloriando-se, de modo um pouco absurdo, das raparigas que imaginavam enquanto se tocavam freneticamente. A masturbação (palavra proscrita naquela altura no universo feminino e agora também) era permitida aos rapazes porque era uma inevitabilidade da sua natureza. Revelava virilidade e mostrava o lugar que homens e mulheres tinham na ordem do mundo. Os homens masturbavam-se, as mulheres não. Ponto. O prazer que uma mulher sozinha arrancasse do seu corpo era pecado, era uma coisa muito suja, muito porca, sinal de desvario, de transvio. Cabia aos homens inaugurar a vida sexual das suas namoradas e esposas. Na verdade, devia ser assim porque eu não conhecia uma única rapariga que se masturbasse. As minhas amigas nunca falavam do assunto e faziam um esgar de sincero nojo se a palavra “masturbação” fosse pronunciada. Convenci-me, pois, que era a única rapariga do mundo que pensava em sexo. Esse sentimento de orfandade, de pária, de indigente, deixava-me num estado de inquietude e incerteza. Por um lado, cedia aos ditames dos bons costumes e achava que estava perdida. Lastimava a minha pouca sorte. Queria ser como as outras raparigas que viviam dentro de corpos mortos. Essas raparigas, já mortas, morriam todas as noites um bocadinho mais. Era assim que eu queria ser. A vida de uma mulher morta é um sossego. Às vezes, porém, dava por mim a achar que o meu segredo tinha um lado bom: a prática de tantos e tantos anos de masturbação havia de me tornar mais tarde numa amante eficiente e competente.

Percebi que era uma mulher normal, alguns anos mais tarde, quando vi o primeiro filme do Steven Soderbergh. Foi uma revelação. Afinal havia mulheres como eu, mulheres que gostavam de sexo e que não esperavam pelos homens para cumprir os seus desejos. Suspirei de alívio. Ainda por cima, as mulheres desse filme, são só duas, eram muito mais bonitas e interessantes do que aquelas com quem me cruzava no bairro e na universidade. Tal facto consolou-me. Apaixonei-me naturalmente pelo James Spader, o impotente. Ainda hoje, quando penso no assunto, acho que o parceiro ideal para mim devia ser assim, impotente. Mas isso são conversas que ficam para outra ocasião. Nesse verão pedi à minha mãe que me costurasse um vestido largo, tipo bata, com botões à frente, igual aos que a Andie MacDowell usa no filme. Acreditei que um dia havia de amanhecer perto de alguém a quem pudesse dizer “parece que vai chover” e que esse alguém saberia ler tudo o que essas palavras não dizem. Hoje, passados tantos anos, lido bem com o meu onanismo. Faz parte de mim. É uma competência. Uma espécie de qualificação.

Caos

Há um balcão de cafés no piso inferior da estação de comboios. Dentro desse balcão costuma estar um empregado jovem, feio, magro e enfermiço. O homem do balcão, na realidade, não é enfermiço. É sadio e ligeiramente balofo. Esclareço: encontrei a palavra “enfermiço”, pela manhã, no livro que ando a ler e apanhei-a. Sou uma exímia caçadora de palavras. Tenho-as em cativeiro durante algum tempo. Depois liberto-as. Adiante. O empregado usa o cabelo arrepiado, como se fosse um ouriço, e no sobrolho direito traz a cicatriz de um piercing antigo. Movimenta-se com rapidez e eficácia. Mantém as bancadas impecavelmente limpas e rutilantes. Os escaparates das pastilhas elásticas e das batatas fritas estão sempre alinhados em cima da arca de gelados. Tira bicas e galões mornos para os passageiros que param no seu balcão antes de regressarem aos subúrbios. Massamá, Mem Martins, Cacém, Amadora, Bobadela. São sobretudo mulheres. Elas riem das suas graçolas e comentários. Nunca é grosseiro ou inconveniente. Trata por “donas” as mulheres que já conhece. A maior parte delas leva o rosto cansado, o cabelo desgrenhado do vento e da chuva, as camisolas com borbotos, as mães ásperas. Não usam botas de cano alto. Não sabem que este ano está na moda usar franja. O rapaz do cabelo arrepiado sabe que tem um papel importante na vida das mulheres que apanham os comboios da tarde. O café é um pretexto para, por breves instantes, respirarem fundo antes de mergulharem no caos doméstico.

2010/03/05

Goa

Não sei explicar a noite. Não gosto da noite. Só as noites em Goa me trouxeram sossego e felicidade. Assim que o meu pai adormecia, corria a buscar uma cerveja ao frigorífico e fugia para o terraço. Arrastava uma cadeira para a beirinha do estendal, afastava as roupas tesas que a Caetaninha deixava estendidas pela manhã e acendia um cigarro. Esse era o instante preciso em que a noite se transformava. Tornava-se mais intensa, ficava com corpo de mulher e eu encostava-me nela. Passei as noites ali, no terraço, olhando a linha da estrada que leva ao Seminário de Rachol. Escutava os ruídos: pássaros, matilhas de cães passando nas várzeas, o vento afagando as folhas do tamarindo, chupando-lhe o azedo dos frutos, o sacolejar da cerveja dentro da garrafa, os deuses brincando junto do tulsi, a ventoinha no quarto do meu pai. Pelas frestas do telhado chegava-me, por vezes, o ressonar da tia Maria e os soluços do Cristo falante. Chora o Cristo falante noites inteiras porque tem saudades do tio Rosário. Eu sei que tem. À noite, o mundo reduzia-se aos seus sons e na sua penumbra só eu existia.
Setembro, 2007

Trela

Cheguei cedo a casa. A tempo de ouvir a jornalista falar na comissão de ética para alguns deputados. Pode não se apreciar o estilo, a forma, a agressividade, mas não se devem ignorar factos. A liberdade exige, devia exigir, uma atitude séria. Cheguei cedo a casa. A tempo de ver a deputada fazer esgares enquanto a jornalista falava. Achei-a feia, com ar de rainha má, seca, velha, mesquinha, um apêndice dispensável, eu que sempre gostei dos seus olhos. Cheguei cedo a casa. A tempo de ver a deputada levantar-se, com sobranceria e arrogância, por duas vezes, enquanto a jornalista falava. Grandessíssima puta, disse. E mudei de canal.

(Deve ser triste viver com uma mordaça e com uma trela.)

2010/03/03

Pensão Coimbra

Há muitos anos, chegou, vinda de Goa, uma prima afastada do meu pai. Queria ser freira. Vinha para o lar das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Ou coisa que o valha. Chamava-se Maria de Lurdes. Era jovem, pálida, quase branca, cheia de sardas, o cabelo sempre preso numa trança grossa. Os lábios eram carnudos e tinham a cor das framboesas frescas. Era bonita se quisesse ser bonita. Achei-a insuportável, uma mosquinha morta, mal falava. Às vezes, dava por ela a fixar-me com um olhar triste e um sorriso pateta nos lábios. Esteve uma semana em nossa casa. O meu pai levou-a a visitar Fátima, o Cristo Rei e a comer queijadas em Sintra. Depois, conforme combinado, foi entregá-la ao cuidado das freiras. Soube-se, passado pouco tempo, que tinha mandado às ortigas a vocação religiosa. Afinal não lhe interessava uma vida de clausura, orando a deus nosso senhor, prestando auxílio aos pobres, ensinando o pai-nosso aos meninos da catequese e aos adultos do catecumenato. Estava, havia dias, na Pensão Coimbra, ali na Praça da Figueira.

Tinha vindo da Índia com um homem mais velho que abandonara a mulher e dois filhos pequenos em Margão. Custou-me acreditar quando a minha mãe me contou, em surdina, com a gravidade que o assunto lhe merecia, que a Maria de Lurdes era amante de um homem casado. Imagina tu, com aquele ar de quem não faz mal a uma mosca e a estragar uma família!, disse-me, piscando os seus olhos pequeninos. Passei naquele instante a olhá-la, à Maria de Lurdes, com outros olhos. Com certa admiração. Afinal era mulher de carne e osso, capaz de sentir a urgência do desejo e de lutar por ele. Toda a gente se escandalizou. De Goa chegaram telefonemas longos e doridos. O meu pai ficava ao telefone, com a carranca fechada, a beiçola muito estendida, escutando os lamentos e os urros da família mais próxima da Maria de Lurdes. Pediam, por tudo, que a salvasse de uma vida de perdição e pecado. Em Goa não há divórcios nem separações. Não há vergonha maior para uma família do que um casamento desavindo. Um divórcio é muito, muito pior, do que uma mulher só dar à luz meninas. O meu pai aceitou a missão e certa noite, lembro-me como se fosse hoje, rumámos à pensão Coimbra. Era uma noite de Inverno. O Natal chegaria em breve e as ruas estavam já iluminadas.


Fiquei no carro à espera com a minha mãe enquanto o meu pai subiu para falar com os amantes. Imaginei-os, sem falar português, vindos da pacatez de uma aldeia goesa para o turbilhão de uma cidade que não compreendiam. Imaginei-os, transidos de frio, deitados numa cama de pensão, a escuridão húmida do quarto cobrindo-lhes o corpo. Imaginei-os, nus, amando-se com embaraço e tristeza. Tudo aquilo era profundamente miserável e desolador. Tive vontade de chorar. O meu pai chegou pouco depois. Não conseguira convencê-los a voltar. Soubemos, passado algum tempo, que tinham ido para Londres. Trabalharam na cozinha de um restaurante. Ela lavou loiça até as suas mãos gretarem e sangrarem. Ele tratou dos desperdícios até o cheiro do lixo se entranhar nas fibras da sua roupa de agasalho. A dureza da vida que levaram em Londres fez com que o seu amor acabasse. Acontece muitas vezes. Só nos livros e nos filmes é que o amor vence montanhas, ultrapassa dificuldades, é enorme, belo e eterno, como um diamante. Na vida real, o amor não tem essa grandeza nem esse brilho. É perecível. Esgota-se. O amor vale pouco. O goês voltou para a mulher e para os seus filhos. A Maria de Lurdes voltou para sua aldeia. A família, muito sábia, recebeu-a em silêncio. Nunca falaram sobre o assunto. A vida continuou como se nada tivesse acontecido.

2010/03/02

Casos

Manhã cedo. Uma mulher explicava às amigas que o seu vizinho do quinto andar, casado, com dois filhos, andava a dormir com certa loira que também costumava apanhar o comboio das oito e vinte. Têm um caso, concluiu. A mulher falava muito baixinho. Assuntos de encornanço devem falar-se com discrição, com cuidado e tento na língua, que a gente nunca sabe quando a desgraça nos bate à porta. Tive pena do vizinho do quinto andar. Não por as mulheres do comboio virem, logo pela manhã, a escarafunchar na sua vida íntima. Meteu-me pena que o homem tivesse um caso. Antigamente, os homens não tinham casos. Tinham amantes. E tudo era diferente. Ter um amante é uma coisa quase literária. Infelizmente, os amantes estão em desuso. Estão fora de moda. Já não se usam. Ninguém diz que tem um amante. As pessoas agora têm casos. Conhecem-se na internet, nos ginásios, nos escritórios, nas empresas. Ter um caso é uma coisa muito ordinária. Um dia, que seja infiel, exijo ter um amante. Não sou mulher de ter casos.

2010/03/01

Espanhola

Fui à D. Bia comprar outro jornal. Ando farta do Público. Reparei na capa da revista deste mês. Acho humilhante ser uma espanhola a fazer a primeira capa apelativa da Playboy portuguesa.

Cavalos

Li o que a Isabel Coutinho escreveu no Público sobre as correntes de escrita, na Póvoa do Varzim. Percebi que o ambiente que se vive nestes encontros de escritores não é muito diferente do ambiente que se vive na maior parte dos escritórios de advogados de Lisboa. Enfim. Entretanto, isso é que não me sai da cabeça, quatro cavalos pastavam, pela manhã, na fronteira que divide Chelas do Bairro do Armador.