A minha casa faz de biblioteca à tia Dé. Chega com um livro na mão. Entrega-mo em silêncio e, com passinhos de mulher velha, vai às estantes do corredor buscar outro. Nunca se alonga em considerações sobre o livro que devolve. Nunca justifica a opção pelo livro que leva. É uma troca silenciosa, sepulcral, quase secreta. Aprendi a gostar de ler com a minha tia. Herdei dela os gestos, a melancolia, a resignação. É um legado pesado para se deixar a uma sobrinha.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2010/05/23
2010/05/19
Genoveva
Lembro-me bem do espanto que me causou o desenlace de “A Tragédia da Rua das Flores”. Tinha quinze anos e gostava me deitar no sofá verde da marquise a ler. O sofá atravessara o oceano dentro de um contentor e tinha um cheiro bafiento, ligeiramente adocicado, entranhado na entretela dos estofos. O sol entrava pelas vidraças. A casa estava em silêncio. Acabei de ler o livro e tive uma espécie de epifania. Uma mãe que, sem saber, por um acaso do destino, se apaixona pelo filho, que julga morto, e com ele vive um amor ardente, carnal e, depois, moída pela vergonha, se atira de um terceiro andar, pareceu-me uma trama notável. O máximo do atrevimento literário. Durante a adolescência li outros livros do Eça. Mais tarde, ganhei o costume de os ler nos intervalos de novas leituras. Volto, porém, sempre à Tragédia da Rua das Flores. Não há amor como o primeiro. Conheço as personagens melhor do que a palma das minhas mãos. A ira do tio Timóteo, as facécias do Dâmaso gordalhufo, impante, as intrigas de Mélanie, a inglesa, feia, seca, rancorosa, feiinha. Porém, nenhuma das personagens seduz como Genoveva. Genoveva é a mulher feita pecado. A primazia da beleza sobre o resto. É a mulher sem pudor, a cortesã, a concubina, a amante, faz do corpo mercadoria, mas com que sofisticação! É uma prostituta e o leitor nem dá por isso. A primeira vez que li o livro fiquei com a sensação de que Genoveva, que me causava repulsa e admiração, era uma mulher sábia e velha. Magnifica, bela, lasciva, desejada, mas, ainda assim, velha. Pois se tinha um filho com idade para com ela dormir! Tinha de ser velha. Hoje, no cabeleireiro, enquanto a menina Alice me arrepelava os cabelos e pela janela aberta chegava o ruído triste da avenida, lendo o livro, dei conta que estou prestes a chegar à idade de Genoveva. Trinta e nove. Porém, ao contrário dela que, se olhando ao espelho, garante que, com muito água fria e paz de espírito, será bela até aos quarenta e cinco, estou um caco. Nem os repelões esforçados da menina Alice me salvam. Perdi há muito o viço.
Inês
Folheei o novo livro da Inês Pedrosa e logo um vómito atrevido me galgou o esófago e se assomou à boca. Estava a livraria cheia de senhoras que procuravam livros sobre vampiros, quando fechei o livro com brusquidão e um “foda-se” quase inaudível se escapou da minha boca. À conta das competências literárias da Inês Pedrosa, uma mulher, gorda como um barril, dois olhitos encovados num rosto simiesco, ficou a olhar-me de esguelha e a abanar a cabeça cheia de nuances. Fugi da livraria e fui enfiar-me na tabacaria a folhear revistas de mulheres nuas. Esclareço. Tenho apreço pela Inês Pedrosa. Acho-a inteligente. Aprecio-lhe os repentes feministas. Invejo-lhe a cultura literária. É livre no que diz e nas crónicas que escreve. Como escritora, porém, até me custa dizê-lo, não vale um caracol.
(cada vez dou mais crédito às críticas literárias da revista Ler.)
(cada vez dou mais crédito às críticas literárias da revista Ler.)
2010/05/17
Pombas
Há sempre pombas na plataforma. Em mim, a vontade de as pontapear. Estivesse eu sozinha na plataforma e não hesitaria. Havia de me esforçar, apurar o golpe, trabalhar a rapidez do gesto, tornar-me numa espécie de guerreira de shaolin, ou coisa que o valha, absorta e confiante. Havia de alcançar o meu objectivo e, por fim, arremessar uma pomba contra a grelha de metal gigante que serve de pavoroso ornamento à estação e que desfoca os homens que, pela tarde, se encontram no descampado da feira popular.
2010/05/12
Leitores
Chega um rapaz à estação. Veste um fato escuro e traz pelos ombros uma gabardine cor de camelo. Senta-se num banco. Abre, com acanhamento, uma mala de mão. Tira um estojo de pele que parece uma agenda de secretária ou um enorme estojo de manicura. Não é. É um livro. Olho com estranheza o rapaz e o seu livro. Não gosto de livros electrónicos. Não por os achar anódinos, insonsos, não palpáveis, desinteressantes. Há malucos para tudo e gostos não se discutem. O que me amofina nos livros electrónicos é que apagam todos os sinais que um livro pode dar sobre o seu leitor. E isso é terrível. Impedem-nos de avaliar, rotular, etiquetar os desconhecidos com quem nos cruzamos. Estilhaçam qualquer possibilidade de relacionamento. Ao contrário do que por aí se diz, as pessoas avaliam-se pelo modo como se vestem, pelo modo como se penteiam, pelo modo como comem, falam e também, sobretudo, pelos livros que lêem. Um estafermo, gordo, transpirado, sapatos descambados, o rego do rabo espreitando por cima do cós das calças de ganga, torna-se um encanto, uma autêntica estampa, se tiver em mãos o livro certo. Por exemplo, o último do Mário de Carvalho. Já um rapaz catita, bem apessoado, comedidamente adamado (estão por todo o lado os modernos homens adamados!), de dentes perfeitinhos, derme limpa, barba rala, pode tornar-se um pavoroso mastodonte se tiver nas mãos um romance histórico da Isabel Stilwell. Os leitores lêem-se como se lê um livro. O problema dos leitores de livros electrónicos é que são ilegíveis. Uma pessoa olha para um LLE e sente-se defraudada. O rapaz da estação, com o seu estojo de manicura no regaço, fez-me lembrar as senhoras que encontro no comboio e que forram os livros do Nicholas Sparks para não se sujarem. Ele, como elas, são leitores, o que já não é mau, mas são leitores um bocado foleiros.
Domingo
Domingo. Subo a serra até ao Catujal. A luz da manhã é aguada, triste, cinzenta. Uma névoa cobre tudo, tornando o ar baço e disformes as sombras. No banco de trás, a minha filha dormita. Usa um fato de treino azul, por baixo, um mailot cravejado de estrelas brilhantes. Um homem corre à chuva com um impermeável amarelo. Desce a serra até à beira-rio onde os bairros concertados têm alamedas floridas e ciclovias de macadame vermelho. Aqui, as casas clandestinas nascem aos borbotões, sem ordem, tino, harmonia. Têm vista paro o rio. As paragens da camioneta estão cheias de gente apesar de ser quase madrugada. Ali, um homem de turbante amarelo, ali, outro com o rosto esfacelado, bexiguento, deve ser brasileiro, acolá, perto de um portão, uma negra gorda, vestida de estampados largos, com o cabelo teso, mexe no nariz. A padaria está aberta. A frutaria também. O churrasquinho vaidoso tem uma carrinha de fornecedores à porta. A funerária está fechada. Só os mortos podem descansar até mais tarde no catujal. Os vivos não podem aninhar-se no conforto morno da noite que o sono é um luxo. Uma mulher velha, com uma bata azul, atravessa a passadeira à minha frente. Leva nas mãos um talego com pão. Olha-me com indiferença.
(Não olho com indiferença os subúrbios mais feios de Lisboa. Não os olho com despeito, horror ou sobranceria. Encontro neles beleza. Muita liberdade. É um sentimento insuportável, o meu, uma espécie de caridade, de esmola, uma coisa que faz lembrar virtudes teologais.)
2010/05/10
Sinos
Há uma coisa boa na vinda do papa a Portugal. São os sinos. O sino da Igreja de Nossa Senhora de Fátima e o sino da Igreja de Moscavide, sempre obedientes, ordeiros e disciplinados, andam num desatino, numa aceleração de repiques festivos, anunciando a chegada do santo padre. Trazem uma promessa solene de felicidade. Não sei falar a linguagem dos sinos. Não me interessa o que têm para me dizer. Gosto só de os escutar.
2010/05/06
2010/05/05
Unhas
A Dulce da contabilidade almoça sempre com o marido no refeitório. Leva-lhe o tabuleiro, tempera-lhe a salada, arranja-lhe o peixe. Ele fala de futebol e de automóveis e só tira as mãos dos bolsos quando tem a paparoca prontinha à sua frente. Chama-se Adão e é chefe do economato. Pela postura, inchada e insuportável, percebe-se que se tem em grande consideração. Julga-se merecedor de certos privilégios e de tantas mesuras. Gerir resmas de papel e contar tinteiros para as impressoras, mais do que o reconhecimento das chefias, confere-lhe estatuto conjugal. Ele é o chefe do economato e do lar. Há que preservar a superioridade do macho e a resignação da fêmea. Estou mesmo a ver a Dulce, ao serão, em frente do televisor, enfiada num roupão fresco de terilene, a cortar-lhe as unhas dos pés. Ele, de cavas, esparramado no sofá de napa, aos gritos cada vez que a pobre lhe corta um espigão. Há mulheres que mereciam ser açoitadas até à morte.
Fortunato
Lavei os dentes até me sangrarem as gengivas, fiz o seretaide, inalei uma poeira branca que atravessou a traqueia e se espalhou pela minha floresta brônquica, apliquei no rosto um creme novo, opalino, quase amarelo, de consistência leitosa, que me suscitou dúvidas e incertezas. Sempre ouvi dizer, talvez sem fundamento, que o esperma tem qualidades milagrosas na área da cosmética feminina. Como a baba do caracol. Espalhei o creme e, por momentos, deixei-me ficar a olhar para o espelho. Dei conta das minhas imperfeições: os pêlos do buço, as sobrancelhas hirsutas, os poros dilatados na testa e no nariz, a pele cansada do sol, envelhecida, o canino inferior do lado direito torto e pontilhado de manchas de tártaro, as narinas dilatadas.
Depois de uma hesitação muito pequena, uma coisa de nada, foram dois ou três segundos, abri a caixa dos comprimidos que está na gaveta do armário. Levei um sanax à boca. Senti-me vencida pela vida. Não tarda nada, sei-o, volto a fumar, a beber, a encharcar-me de comprimidos. Volto a aborrecer-me com o recato da vida doméstica, a nausear-me com a sobriedade dos dias iguais. Não tarda nada, é um instantinho, volto a não tolerar viver apenas para o cumprimento das tarefas maternais. Amo os meus filhos. Com fúria, certo desespero. Quero-lhes bem. Mas não me basta o que têm para me oferecer. Deitei-me com a certeza de que é a concupiscência que dá cabo de mim. Não fora o desejo e a insatisfação e seria uma mulher moderadamente feliz. Li durante duas horas. Consolei-me. Adormeci no preciso instante em que um carro atravessou a rotunda e o clarão dos faróis entrou pelas frinchas dos estores. Dormi como não dormia há muito tempo. Não acordei uma única vez. Não senti o corpo abandonado e vencido que dorme ao meu lado. Não ouvi o assobio longínquo que vem do sistema de ventilação da casa de banho e que, não sei porquê, me lembra desfiladeiros e desertos de terra vermelha.
Não escutei o meu filho, no quarto ao lado, pedindo o biberão, soluçando a sua solidão até voltar a adormecer, cansado e suado. Não me levantei para percorrer, na penumbra, os corredores do apartamento até à cozinha. Tropeçar num triciclo, apalpar paredes, ligar o interruptor, uma luz de velório cobre a noite, sentir o frio dos mosaicos, abrir a porta do frigorífico, meter à boca dois morangos, um quadrado de chocolate, duas fatias de presunto, um cornichon. Dormi como não dormia há muito tempo. E voltei a sonhar. Sonhei com um camionista de rosto flácido. Chamava-se Fortunato e tinha um camião encarnado.
Depois de uma hesitação muito pequena, uma coisa de nada, foram dois ou três segundos, abri a caixa dos comprimidos que está na gaveta do armário. Levei um sanax à boca. Senti-me vencida pela vida. Não tarda nada, sei-o, volto a fumar, a beber, a encharcar-me de comprimidos. Volto a aborrecer-me com o recato da vida doméstica, a nausear-me com a sobriedade dos dias iguais. Não tarda nada, é um instantinho, volto a não tolerar viver apenas para o cumprimento das tarefas maternais. Amo os meus filhos. Com fúria, certo desespero. Quero-lhes bem. Mas não me basta o que têm para me oferecer. Deitei-me com a certeza de que é a concupiscência que dá cabo de mim. Não fora o desejo e a insatisfação e seria uma mulher moderadamente feliz. Li durante duas horas. Consolei-me. Adormeci no preciso instante em que um carro atravessou a rotunda e o clarão dos faróis entrou pelas frinchas dos estores. Dormi como não dormia há muito tempo. Não acordei uma única vez. Não senti o corpo abandonado e vencido que dorme ao meu lado. Não ouvi o assobio longínquo que vem do sistema de ventilação da casa de banho e que, não sei porquê, me lembra desfiladeiros e desertos de terra vermelha.
Não escutei o meu filho, no quarto ao lado, pedindo o biberão, soluçando a sua solidão até voltar a adormecer, cansado e suado. Não me levantei para percorrer, na penumbra, os corredores do apartamento até à cozinha. Tropeçar num triciclo, apalpar paredes, ligar o interruptor, uma luz de velório cobre a noite, sentir o frio dos mosaicos, abrir a porta do frigorífico, meter à boca dois morangos, um quadrado de chocolate, duas fatias de presunto, um cornichon. Dormi como não dormia há muito tempo. E voltei a sonhar. Sonhei com um camionista de rosto flácido. Chamava-se Fortunato e tinha um camião encarnado.