A notícia tem sido dada com a discrição que as coisas que respeitam ao regime cubano sempre merecem no nosso país. A gente lê as notícias que vão aparecendo, aqui, ali, e sente que quem as escreve o faz contrariado. Os factos são relatados com uma secura que não é habitual. Quem escreve não faz dos homens que chegaram a Espanha heróis nem das mães, mulheres, filhas, que desfilam de branco em Havana, heroínas. Quem escreve não se interessa pelo seu sofrimento, nem simpatiza com a sua causa. Tudo na vida é relativo e os atentados à liberdade só devem ser apontados para promover certas causas. Não se utiliza a adjectivação. É raro explicar-se, preto no branco, as razões pelas quais estes homens foram presos. Os factos são relatados de raspão, sem merecer grande desenvolvimento ou comentário, até porque a Igreja Católica desempenhou um papel fundamental na negociação e a igreja não merece respeito ou apreço (às vezes, reconheço, merece muito pouco). As notícias abordam, por outro lado, a entrevista que Fidel Castro, entretanto, deu. Quase sempre, ao falar de Fidel, os jornalistas falam da sua coerência. Nem outra coisa se esperava. A coerência, em princípio, é uma qualidade. É bom ser coerente. Mas a coerência não é uma virtude que valha por si só. É profundamente desonesto dizer-se que Fidel é coerente. Quem, durante décadas, silencia um país, não é coerente. É déspota, autoritário, manipulador.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
Violante (3)
Também Violante encontrava a graça divina no nascimento daquelas crianças e, antes de completarem três meses, levava-os à igreja para serem baptizados. O padre de S. Teotónio era um homem tristonho e apagado. Trazia os cantos da boca sempre caídos. Não era dado a conversas, não fizera amigos na aldeia, escondia os olhos atrás de uns óculos que pareciam permanentemente embaciados. Passava o tempo livre na alameda de álamos que ficava ao lado da igreja, caminhando de cá para lá e de lá para cá. Dormitava muito. Corria o rumor que tinha pouca fé. Assim era. A fé fora-o abandonando ao longo da vida. Fugira-lhe pelos orifícios do corpo. Chegara aos cinquenta anos com mais dúvidas que certezas. Sabia que tinha obrigação de deixar o sacerdócio, tornar-se um homem comum, procurar um emprego, arranjar uma mulher. Fosse ele um homem íntegro e havia de assumir as suas ideias, cumprir o seu destino. Mas, aos cinquenta anos, sem família, sem habilitações para exercer um ofício, o corpo adormecido e aquela cara de carneiro mal morto, olhos molengões, beiçolas estendidas, que podia fazer? A coerência enobrece os corajosos, e ele, sabia-o bem, era cobarde. E, depois, estava tão habituado às guloseimas que as devotas lhe ofereciam por altura da Páscoa. Travessas de arroz doce, garrafinhas de licor de poejo, bolos de amêndoa sarapintados de passas de uva inchadas em aguardente. Uma delícia! Deixava-se andar. Dizia a missa, sem entusiasmo, mas com eficiência. Dava catequese aos sábados de manhã. Organizava a quermesse por altura da festa da paróquia. Era sempre brando na penitência. Por maior que fosse o pecado confessado. Não exigia muito aos habitantes de S. Teotónio e estes, de volta, não exigiam muito ao padre. Havia um equilíbrio perfeito no sinalagma daquela relação. Aquela mar morno de inércia e preguiça só era sacudido quando Violante lhe trazia um menino para baptizar. Despertava, então, daquela letargia e também ele se embevecia a admirar a beleza inocente daquelas crianças. Perdia o ar molengão, os cantos da boca, tão pingões, arrimavam, até a sotaina preta lhe assentava melhor. Consolava-o, de forma que lhe custava a explicar, livrar do pecado original criaturas tão deliciosas. Tão perfeitos, com os seus corpos cheios e firmes, pareciam pintados por mestres renascentistas. Não se cansava de os elogiar à mãe. Violante sorria, acanhada. Depois de os aspergir de água benta e de lhes deixar as nucas peganhentas com os óleos sagrados, reacendia-se no peito do padre uma acendalha de fé. Aqueles meninos aureolados, de tal perfeição e enlevo, filhos daqueles pais, humildes, tão rudes e feiosos, só podiam ser um sinal da existência de Deus. A sua beleza, de tal modo intensa, provava a transcendência do divino. Durante algum tempo, o padre era abandonado pelas dúvidas habituais e as suas palavras tornavam-se vivas. Às vezes, sorria durante as homilias e, uma vez ou outra, atrás do púlpito, um entusiasmo breve fazia-o erguer as mãos. Pouco a pouco, tudo voltava ao normal. Quando os habitantes da aldeia o viam passear muito calado na alameda de álamos sabiam que a tristeza e a melancolia se instalara de novo no seu coração e que as homilias ditas de forma arrastada, aborrecidas, voltariam em breve.
2010/07/09
2010/07/06
Violante (2)
Violante, era isso que causava espanto, tinha filhos que pareciam anjos. É certo que nem as cicatrizes se herdam, nem as corcundas se legam, nem a zarolhice adquirida por acidente é característica física comparável às covinhas no rosto, aos pómulos salientes, à cor do cabelo, ao formato das mãos, ao recorte dos lábios. Um olho vesgo não integra, em definitivo, a herança genética que uma mãe transmite aos seus filhos. Violante, sem a vista vazada, o corpo marcado, era uma mulher simplesmente feia. Porém, coisa estranha, dava à luz crianças de uma beleza desconcertante. Os meninos nasciam grandes, muito grandes, perfeitinhos, graças a Deus, assim se dizia, compostos, sem vermelhões, sem pregas, nem rugas, o rosto liso e inocente, bochechinhas rosadas, os olhos claros, umas vezes verdes, outras azuis, a cabeça cheia de caracóis dourados, mais lindos do que uma manhã de sol. Nunca cheiravam a leite azedo, não bolçavam, o couro cabeludo não se lhes estalava em escamas oleosas e amareladas. Comiam e dormiam bem. Vinham com um cheiro fresco de água-de-colónia que se prolongava durante os primeiros anos de vida. Sorriam muito. Violante teve dez filhos e todos, sem excepção, foram como acima se explicou: extraordinariamente belos, intensamente loiros, surpreendentes na sua estatura e fisionomia. Era um caso que espantava a todos e dava ocupação às línguas mais azedas da aldeia. Quando lhe nasceu o primeiro filho logo houve quem desconfiasse da sua fidelidade. Vesga, tão mal amanhada, casada com um pobre coitado, por sinal feiíssimo, como podia Violante dar à luz uma criança de cachos loiros, com a pele pálida, acetinada, macia, os olhos muito azuis, claros, a fazer lembrar a abóbada celeste nas noites de verão? O filho não podia ser do marido! Mas de quem seria? Os habitantes da aldeia eram morenos, cabelos e olhos escuros, feições duras. Mais do que a herança mediterrânica, havia neles o traço embaraçoso dos distantes ascendentes magrebinos que, por preconceito e ignorância, desdenhavam. Só o filho do dono da farmácia, que se casara em Lisboa com uma senhora minhota, era loiro e penugento. O rapaz fora educado num colégio em Viana do Castelo e chegara pouco antes da primeira gravidez de Violante. Gostava de pombos, passava o tempo entretido a anilhar as aves e a alisar-lhes a plumagem. Não olhava para as raparigas. Pareceu, por isso, impossível aos habitantes de S. Teotónio que um rapaz assim, ainda imberbe, pudesse tomar aquela mulher, de mãos gretadas e secas, tão simples e feia. A hipótese da criança ser neto do farmacêutico foi afastada. Até porque, é bom esclarecê-lo, nem sempre a gente loira é bonita. Está o mundo cheio de estafermos loiros! Ora, os filhos de Violante eram loiros e, de forma assombrosa, belos. O filho do farmacêutico era só loiro. Adiante. Quando nasceu a Violante o segundo filho, uma menina, ainda mais bela que o primeiro, o cabelo de um loiro quase branco, as mulheres de S. Teotónio, esbugalharam os olhos e procuraram nova explicação. Talvez algum estranho, desses que, de quando em quando, ali chegavam nas suas camionetas de carga, a caminho de outro lugar qualquer, a tivesse posto prenha. Talvez se tratasse de um homem luminoso, extraordinário, abnegado. Logo abandonaram tal hipótese. Ninguém se lembrava de ter chegado a S. Teotónio homem de tais aptidões físicas. Mas mesmo que tivesse chegado e trouxesse os testículos cheiinhos, já doridos e marmoreados, a glande entupida, mesmo que ansiasse de forma desesperada pelo seu rápido esvaziamento, nunca tal homem procuraria Violante. Mal amanhada, como já se explicou. Ao terceiro filho, a aldeia deixou de procurar razões para aquela discrepância genética e aceitou com naturalidade a beleza dos meninos. Os mais crédulos passaram a falar de milagre. É sempre um método acertado para tornar claro, inquestionável, o que não se explica e não se compreende.
Violante (1)
Bem vistas as coisas não era mais feia do que as outras mulheres de S. Teotónio. Pequena, o corpo ligeiramente truncado, tinha a pele muito crestada do sol, desenhando aqui e ali fissuras como se de um deserto se tratasse. Usava o cabelo, escuro e crespo, apanhado num carrapito que prendia com dois ganchos de massa. Tinha um rosto redondo, os lábios eram finos, as narinas dilatadas davam-lhe um ar ligeiramente suíno. Maciça, mas ágil, movimentava-se com desenvoltura e certa graciosidade. Porém, era o olhar de Violante, assim lhe chamara a mãe, que a embrutecia e não lhe permitia a banalidade que sempre se atribui às mulheres comuns. Era o olhar que a tornava medonha e diferente. Lembrava-se bem. Devia ter uns dez anos e trepara a um marmeleiro para apanhar os frutos maduros que espreitavam no alto, muito redondos e amarelos. Estava toda esticada, prestes a agarrar o primeiro marmelo, quando um ladrar furioso, vindo de longe, se calhar do inferno, a assustou e a fez largar o tronco da árvore. Mergulhou num silvado. Saiu de lá como se tivesse sido açoitada por mil varas de vime. Ficou, para sempre, com o corpo marcado, cheia de pequenos aleijões e cicatrizes. Partiu uma vértebra discal. Foi nessa ocasião que um espinho lhe perfurou o globo ocular esquerdo. O espinho, curto, muito afiado, parecia um dente de tubarão, foi removido com mil cuidados por uma vizinha que tinha fama de curandeira. Violante não cegou. Continuava a ver da vista esquerda. Porém, como um balão de feira, preenchido apenas pelo vazio, o olho começou a esvaziar. Minguou, minguou, até ter o tamanho de uma ervilha. Ficou aquele olho pequenino solto na cova, muito laça e escura. Dando-se conta do nojo que causava, havia quem desviasse o olhar quando lhe falava, por precaução, passou a fechar a pálpebra. Só à noite, quando estava sozinha, a voltava a abrir para se abeirar do precipício e da fundura que se escondia no seu rosto. Com o tempo, porém, foi deixando de o fazer. Por fim, como uma gelosia fechada, que se encrava e não mais se abre, a pálpebra ficou perra, cada vez mais pesada, até se colar para sempre à linha inferior do olho.