2011/08/31

Nível

Posso falhar o editorial, a crónica do MEC, mas leio, com fidelidade diária, a meia dúzia de mensagens eróticas do Público. Interessam-me. Não há rabos, nem mamas gigantes, não se prometem regabofes, nem orgias, não há gays, nem travestis, nem peludinhas, nem rapadinhas. Não há quantidade, mas qualidade. Tudo é elevado, discreto, a prostituição apresentada como coisa distinta, secreta, aristocrata até. Esta semana, porém, três senhoras de alto nível, na sua vitrina do jornal, tem vindo, diariamente, à procura de cavalheiros educados para troca de meiguisses em apartamento de luxo. Se se tratasse de um anúncio publicado no diário de notícias ou no correio da manhã, uma pessoa ainda fechava os olhos. Agora, ali, no Público, no meio da Regina, balzaquiana, senhora culta, licenciada, elegante e do centro de massagem sensual para cavalheiros de nível, o erro ganha outra dimensão. Torna-se grosseiro e tacanho, sobretudo, profundamente desmotivante. Por muito empenhadas que as três senhoras de nível sejam, por muita competência prática que tenham no desempenho do seu ofício, boas mamadas, penetrações profundas e apertadinhas, qualquer cavalheiro de nível, educado, terá de declinar a amável convite. As meiguisses prometidas destoam da elevação geral da coisa. Parecem mal.

Rapaz

O rapaz trabalha no meu edifício. Anda sempre com um livro por baixo do braço. Todos os dias, pela hora do almoço, se senta nas arcadas, perto da saída de torniquetes, no exacto lugar onde, pela tardinha, as mulheres das empresas de limpeza, antes de iniciarem a última etapa do seu longo dia de trabalho, se sentam a comer sandes de chourição. Fuma cigarros solitários e, alheio ao burburinho cidade, lê. Pernas cruzadas, ligeiramente estático, rígido, pessoano. É assim todos os dias, esteja sol, vento, frio. Aguenta os chuviscos envergonhados, só a chuva maior o arranca dali. Concentrado, forçadamente concentrado, parece não notar o ruído da rua. Não repara na porteira do hotel de luxo, o cabelo preso num rabo-de-cavalo, cartola de fita vermelha, farda castanha de requinte pateta. Não sabe que, dentro do bolso da farda castanha, a porteira guarda um apito que, volta e meia, tira e sopra para chamar os táxis que levarão as esposas angolanas até à avenida da liberdade, onde comprarão, com a soberba própria das elites dos povos libertos, jeans armani e sandálias da christian louboutin. O rapaz parece também não escutar as conversas sobre futebol que chegam do quiosque dos jornais, a análise diária, exaustiva de cada lance polémico, de cada falta não assinalada. Não vê as raparigas que saem das seguradoras, vêm aos cachos, cigarro ao canto da boca, emancipadas, camisolas de fibra justas, decotes fundos, roliças, bronzeados ordinários. O rapaz é um estranho leitor: autista, rápido, sôfrego. Lê com urgência que é sempre um modo errado de se ler. Topo-lhe há muito tempo as leituras e, digo-o sem exagero, quase todos os dias, traz um livro novo.

Antes das férias, por exemplo, andou de volta dos clássicos russos. Numa semana – uma semana tem apenas sete dias – vi-o de roda de dois romances do Dostoievsky e do mais longo romance do Gogol. Como se pode despachar numa semana três obras-primas da literatura universal, duas densas, a outra divertida, mas todas merecedoras de tempo? Tamanha imaturidade irritou-me. Foi por causa do rapaz das arcadas, do seu modo de ler, imberbe, que decidi também levar um russo para as férias. Escolhi o Turgueniev. Gostei moderadamente do livro. Já estava farta do niilismo e da misoginia do tal Bazarov. Sou, sempre fui, pelo triunfo da emoção sobre a razão. Podia ter lido livro em menos noites. Porém, li-o devagar, poucas páginas de cada vez, uma leitura prolongada, preguiçosa, propositadamente indolente. Só para fazer pirraça ao rapaz das arcadas.

2011/08/29

Saramago (2)

Não sei explicar por que razão, passados tantos anos, recordei, com detalhe, este episódio enquanto assistia ao documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Talvez fosse apenas o sul a chamar por mim. Quando desliguei a televisão e o silêncio se instalou pensei assim: afinal gosto deste homem. No dia seguinte, partilhei o entusiasmo com a minha irmã. Gozou-me, como sempre faz, soltou uma casquinada valente, e disse qualquer coisa do tipo ó mana, és tão inconstante. A conversa é sempre a mesma. A minha inconstância é um axioma familiar. Ultrapassada a questão ideológica, a minha irmã percebeu que apenas a sordidez da vidinha privada podia reavivar o meu desprezo pelo Saramago. Então tu não sabes que ele batia na primeira mulher?, atirou ela com uma ponta de maldade, sabendo que poucas coisas me revoltam mais do que homens que batem em mulheres. Deves ser completamente louca, disse, e acabei, naquele preciso instante, a conversa, desligando-lhe o telefone na cara. Engoli em seco e meti O Ano da Morte de Ricardo Reis na mala de viagem. Livro extraordinário. Descoberta tão boa na frescura da noite alentejana. Li-o com espanto, deliciada, feliz por o estar a ler. Fiz listas de palavras. A minha filha quis saber por que é que, volta e meia, sublinhava o livro. Estou a caçar palavras, em cada página, caço uma palavra, expliquei e pusemo-nos a olhar a caçada.

Ainda não tirei a limpo se o Saramago batia ou não na primeira mulher. Não quero saber. Reconheço a sensatez dos que dizem que interessam os livros, não os escritores, interessa pouco aquilo que pensam sobre o mundo, é irrelevante a sua vida privada. Fossemos nós, leitores, à procura, em quem lemos, de exemplos de vida, heroicidade, liberdade, valores sólidos, e ficávamos à míngua, sem nada para ler. Está tudo muito bem. É assim mesmo que deve ser. E, no entanto, foi a descoberta da intimidade, a dança das rotinas diárias, a partilha de um amor maior que a vida, essa extraordinária capacidade de encontrar o sagrado nos gestos profanos, banais e indignos, que me levou a ler um escritor, por mim, há muito, proscrito.

Saramago (1)

Certa vez, explicaram-me o óbvio, que os homens não podem ser confundidos com as suas obras, é uma injustiça quando isso acontece, que visse o caso da Leni Riefenstahl, a luminosidade nas filmagens, as paradas nazis filmadas como um bailado, a técnica apurada. Escutei, em silêncio, o sermão. Por fim, disse que me estava nas tintas para a leni reifenstahl, fascista, grande puta nazi, nojenta, eu era lá capaz de apreciar a obra de uma mulher que andou a mamar no Hitler, e continuei a alimentar, anos fora, activa e dedicadamente, as minhas embirrações artísticas, sobretudo, as literárias. Entre os escritores, um ocupou, até este Agosto, o pódio do meu desprezo mais profundo e sincero: o Saramago. A embirração que lhe tinha, alicerçada em meia dúzia de coisitas sem importância – o comunismo senil e bacoco, a triste falta de liberdade, a visão injusta, manietada do mundo - ficou totalmente descontrolada quando, por ocasião da atribuição do Nobel, uma prima, juíza de profissão, por acaso, comunista, também, leitora exclusiva de leis, decretos-leis, despachos normativos, portarias, manuais de direito, decidiu ler, de empreitada, todos os livros do camarada. Cada vez que me encontrava nas festas de família, punha-me a par dos livrinhos já lidos e ficava horrorizada perante o meu desinteresse pela obra do nobelizado português. Já só me falta este e aquele, dizia ela, em jeito de desafio, arreganhando uma dentição perfeita. A literatura feita contabilidade, autêntico horror. No Saramago, nada me agastava mais, do que ouvi-lo, seco, esguio, frio, severo, falar constantemente do Nobel, atribuindo ao prémio uma importância que não tem. Sobretudo, eriçavam-se-me os pêlos quando o escutava dizer nubél, assim mesmo, nubél, tornando tónica a segunda sílaba, pronunciando a palavra à sueca, não à portuguesa, como toda a gente. Pobre coitado, pensava eu, podes ter ganho o nubél, mas não deixas de ser um serralheiro mecânico da Azinhaga do Ribatejo.

Mas a vida, como se costuma dizer, é uma caixinha de surpresas e, quando menos esperamos, apanha-nos desprevenidos. Até as embirrações mais sólidas, que julgávamos de pedra e cal, enterradas no fundo do nosso ser, se vão embora. Aconteceu-me este verão. Precisamente com o Saramago. Apanhada de surpresa, numa noite vazia, de angústia leve, dormiam os miúdos, dei comigo a ver o documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Passava no segundo canal. Escutei a voz do escritor, vi o medo da morte dentro dos seus olhos, enterneci-me com a sua figura frágil, e lembrei o meu avô José, que não foi serralheiro mecânico, mas carpinteiro. Foi então, enquanto via o documentário, que lembrei um episódio esquecido da infância.

O meu avô, sentado no quintal, junto da porta de fitas da cozinha, as calças arregaçadas, os pés descalços, preparava-se para lavar os pés numa bacia de alumínio que refulgia com o sol da manhã. Eu andava por ali a brincar com a minha irmã e com a minha prima, não a que é hoje juíza, com essa brincávamos, de quinze em quinze dias, no apartamento dos pais na Buraca, mas com a Filomena, robusta e bonita, suinicultora de sucesso, tem agora onze pecuárias à sua responsabilidade, trinta e seis trabalhadores, romenos e ucranianos, não encontra um único português que queira sujar as mãos a limpar bosta de porco. No meio das cabriolices, reparei no meu avô descalço, deixei a brincadeira, e pedi-lhe para me deixar lavar-lhe os pés. Estranhou o pedido, mas anuiu com um sorriso. O sol aquecera a água, estava morna, peguei numa barra áspera de sabão azul e branco e lavei-lhe os pés. Primeiro um, depois outro, com vagar, como se fossem objectos frágeis. O meu avô agradeceu-me e deixou-se estar assim, de pés descalços descansando ao sol. Tirou o canivete do bolso e pôs-se a descascar um pêro. Olhando aquela pele muito branca, de porcelana, translúcida, uma pele delicada, virgem, macia, que contrastava com as unhas amarelas, grossas e torcidas, senti vontade de beijar os pés do meu avô. Se não o fiz, foi porque, já naquela altura, apesar da idade, me apercebi da inadequação daquele desejo.