2011/09/28

Acesso Bloquesdo

Amo o Sérgio Godinho. Amo-o com um amor antigo e intenso. Lembro-me de escutar o Barnabé na aula de português da professora Maria dos Anjos, no ciclo, e sentir um arrebatamento e um deslumbre. Fui crescendo e fui descobrindo as suas canções. Conheço-as de cor e só não gosto do Fugitivo e da Canção da Velha Mãe. Se o Sérgio Godinho quisesse, casava-me com ele e cuidava dele na velhice que vem chegando. Perdoo-lhe tudo, até o facto de ter escrito canções para todas, Etelvinas, Carolinas, Paulas, Fátimas, Alices, e nunca ter escrito para as Anas desta vida (a Valsa da Ana não conta por razões óbvias). Aos vinte anos, odiava a Sheila e todas as legítimas que teve. Embalei os meus filhos a cantar as suas canções. A minha filha sabe de cor a Etelvina e anda a aprender o 2º andar, Direito. O Joaquim pede a Maré Alta, o Charlatão e o Coro das Velhas. O João finge que já não gosta das suas canções e eu permito-lhe esse fingimento. Os três gozam descaradamente comigo quando me vêem amarinhar pelo sofá para dar beijinhos às fotografias dele que estão penduradas na parede. Quando estou triste, acontece muitas vezes, a minha filha põe-no a cantar na cozinha e o meu coração alegra-se. Eu tenho a vida partida em mil pedaços, cola-a tu com dois abraços. Nunca serei capaz de amar um homem como amo o Sérgio Godinho. É um amor absoluto, inquestionável, perfeito, um amor de menina que nunca amadureceu. É por tanto o amar, tanto dele precisar, tanto o querer, que não tecerei nenhum comentário ao novo disco. Acesso bloqueado.

Beleza

A tia Dé odeia a Joana Amaral Dias. Quando a vê, empertigada, decotes generosos, camisolas justas, disfarçadamente penteada e maquilhada, cerra os punhos em direcção ao televisor e põe-se a rosnar baixinho, a arremedá-la, o desprezo é tanto que lhe toma conta do corpo, ganha uma cor estranha, entre o vermelho e o cinzento, e, por vezes, faz-lhe chocalhar a dentadura. Anda esta mulher a defender os trabalhadores! Tira essa tipa daí! e arranca-me o comando das mãos para mudar de canal. A tia Dé é uma comunista transviada, andou perdida de amores pelo Sócrates, mas já se arrependeu. Acha que a beleza é um atributo burguês, desnecessário, predicado ardiloso, dispensável, a moda é fascizante e os artifícios da maquilhagem não se compadecem com a luta das mulheres operárias. Nunca usou rímel, saltos altos, batons de cores vivas, verniz, raramente vai ao cabeleireiro. Em seu entender, as mulheres bonitas, sobretudo, as de esquerda, deviam mascara-se de feias. Não tenho dúvidas de que a tia Dé, se a escutasse, no geral, concordaria com os comentários da Joana Amaral Dias. Na verdade, a única coisa que amofina a minha tia é a beleza da outra, sobretudo, o descaramento de a mostrar e fazer uso dela. Curiosamente, é a única coisa que eu aprecio na Joana Amaral Dias.

Elevador

O rapaz das arcadas subiu comigo no elevador. Vinha com o cabelo ainda molhado e cheirava a manhãs de chuva, a mar, a tempestades, a coisas boas, sei lá ao que cheirava o rapaz das arcadas, só sei que cheirava bem e pronto. A semana passada andava a ler o Don de Lillo. Hoje, pela manhã, trazia um livro do Philip Roth. Nunca li nada do primeiro e aborreceu-me o segundo. Gosto do rapaz das arcadas - é um consolo ter um leitor na nossa vida, mesmo que seja um desconhecido de sapatilhas all star-, mas o seu entusiasmo literário faz-me sentir velha. Já não sou capaz de ler assim. Ando há quatro semanas de volta de um livro de contos da Alice Munro e não me importo. Não tenho vontade de ler. A culpa não é da escritora, é minha que ando em maré de postergar, só me apetece correr, mais nada. Forço-me à leitura. Leio uma ou duas páginas antes de adormecer. Se não coloquei ainda o livro da Alice Munro de lado foi por solidariedade com a classe dos contistas. Tenho admiração sincera por quem, tendo uma escrita exímia, opta por ser contista. Já percebi, já mo explicaram, que os contistas são uma classe menor no universo literário. Tolerados, mas não amados. Não se lêem e não se vendem. Ninguém quer ser contista. Os frequentadores de oficinas de escrita criativa (que se aprenderá em tais lugares?) e os aspirantes a escritores querem ser romancistas. A consagração, as vendas, as entrevistas, as cintas a anunciar segundas edições, os prémios, enfim, o sucesso, só chega para os romancistas. A opção, porém, parece-me tão arriscada. É que não é difícil ser um bom contista. A brevidade potencia a agudeza literária, em meia dúzia de páginas conta-se uma história, fixa-se um momento, não se aborrece ninguém, apresenta-se uma personagem, a contingência traz certo brilho às palavras. Pelo contrário, é tão fácil ser um mau romancista. Tenho a sensação de que muitos autores publicados poderiam ser bons contistas, mas preferem ser maus romancistas.

2011/09/22

Enfant

Nove bailarinos e um grupo de crianças movimentam-se num palco escuro que lembra a noite. A princípio, os corpos das crianças são transportados, manipulados, atirados, como se não fossem gente. São apenas objectos. Depois, ganham autonomia, vontade própria. Gostei pouco do espectáculo do Boris Charmatz. A minha filha, companheira forçada destas andanças, também, pobrezinha, que bem lhe vi os olhos muito abertos. Ao olhá-la, esqueci a desilusão recente, por mim não assumida, quando me anunciou a decisão de desistir do violino. Até me deu uma pontada, ai que me partes o coração, malandra, mas não dei parte de fraca. Não me importo, disse-lhe, ora essa, claro que não me importo, tu é que decides, se gostas mais da ginástica, deves optar pela ginástica, mas espero que sejas uma Olga Korbut, uma Nádia Comaneci, a melhor, campeã disto e daquilo, quero uma parede cheia de medalhas e troféus; acautela-te, porém, avisei-a, que tantas horas de treino diário te podem dar cabo do corpo, acabas triangular, dorso largo e masculino, sem mamas, sem rabo, atarracadinha como uma anã.

2011/09/21

Aninhas e o desejo

Dada a sua condição, corpo adormecido, meio morto, meio vivo, Aninhas pensava frequentemente no desejo e no prazer. Formara sobre esse assunto uma opinião empírica, que prescindia de análises comparativas, divagações desnecessárias, filosofias profundas; assentava apenas na sua vivência pessoal, nos homens que conhecera, nos casos que tivera, nas marcas que essas relações lhe iam deixando no corpo. Era uma análise sem grande préstimo, pressentia-o, na medida em que não servia para os outros. Tratava-se de uma teoria simples que se adequava à sua vida, explicava as suas atitudes, poupava-a à dor e humilhação. Tal teoria, que carregava dentro de si e que aprofundava, com vagar, nos tempos mortos, filas de trânsito, reuniões de turma dos filhos, salas de espera dos consultórios médicos, assentava na primazia do desejo sobre o prazer. Aninhas atribuía uma importância fundamental ao desejo, à capacidade de querer esmagar um corpo, uma boca, duas mãos, a curva de uma perna, o repouso de um ombro. Era o mais importante. Não se podia viver sem desejo. Encarava o prazer, pelo contrário, como coisa menor, um arrepio que chega, mata, desilude, rapidamente se esquece. O desejo era literário, o prazer simplesmente pornográfico. Era uma teoria que lhe convinha. Aninhas, gostando de literatura e de pornografia, sabia que podia viver sem o detalhe cirúrgico da pornografia, mas acabaria por definhar, mirrando até desaparecer, sem a liberdade da literatura.

2011/09/14

Aravind Adiga

Acabei de ler o último livro do Aravind Adiga. Tive a Índia de volta à minha vida durante quinze dias. Cada um mata as saudades como pode e um livro é coisa boa para matar saudades. Encontrei lugares, pessoas, palavras. Bhel puri, idlis, chai, dosa, laque, salwar, gulab janum, seve, bandra, vakola. Voltei a Andheri West onde vive a minha prima Melinda numa torre igualzinha à cooperativa Vishram do livro, hindus moderados, jainistas, muçulmanos, católicos, as portas dos apartamentos escancaradas de par em par, toda a gente vivendo numa harmonia frágil que se estilhaça ao primeiro tremor ou desacato. Estive de novo em Juhu Beach, a Dá, de t-shirt amarela, voltou a pintar as mãos com hena, o meu pai voltou a regatear o preço da pintura, a mulher voltou a franzir-se com a avareza do meu pai, o João continuou lá atrás mordiscando uma maçaroca frita. Recordei a minha tarde sozinha em Bombaim, ficaram os miúdos a dormir a sesta com o meu pai, andei pelos mercados de rua, labirínticos, se me perco nesta cidade, ninguém me encontra, comprei goiabas, pulseiras de vidro, um sari branco, saiote e tudo, barato, tecido de fraca qualidade, mas branco, tanto que eu queria um sari branco. Comprei também vários saquinhos de bombay duck, não sei por que se chama assim, não é pato, como lhe chamam, nem peixe, como parece, é lagarto seco, envolto numa masala cor-de-laranja, picante, muito malcheirosa, come-se às tirinhas, frito em pouco óleo. É o meu petisco preferido quando acordo, de madrugada, com fome. Espalha-se o cheiro pelo apartamento, entranha-se nos tecidos e nas paredes, refilam os miúdos de manhã, é que não se aguenta o cheiro, dizem, olho-os de viés, tão europeus, pálidos, imaculados.

2011/09/13

Grau

A associação portuguesa de canonistas analisou o grau de homossexualidade necessário para anular um matrimónio. A notícia vinha no jornal. Explica a referida associação que a declaração de nulidade de um casamento católico, no qual um dos cônjuges é homossexual, depende do «grau» em que a sua homossexualidade se encontra. Só no caso de um dos cônjuges ser predominantemente homossexual, acidentalmente heterossexual ou exclusivamente homossexual se poderá, após perícia psiquiátrica que assim o ateste, declarar a nulidade de um casamento católico. Se um dos cônjuges for, pelo contrário, predominantemente heterossexual, acidentalmente homossexual ou exclusivamente heterossexual, não existe causa de nulidade. O cônjuge acidentalmente homossexual, querendo, está apto a desempenhar e a concretizar o fim do matrimónio. Deve, no entanto, renunciar, através de voto de castidade, aos desejos sombrios, perversos, imorais, carnais.

A graduação é um método prático, muito comum, mas, quase sempre, de difícil execução. Um grau mede a intensidade, a força de alguma coisa. Os parâmetros que se utilizam para atribuir determinado grau, mais ou menos intenso, têm de ser claros, previamente estabelecidos. Isto de medir a sexualidade de alguém não é nada fácil, mas a graduação proposta pela associação portuguesa de canonistas é demasiado confusa e imprecisa para ser levada a sério. Li a notícia e fiquei com tantas dúvidas. Como se distingue um exclusivamente homossexual de um predominantemente homossexual? De que serve a distinção se os efeitos são os mesmos? Ser predominantemente homossexual não implica ser acidentalmente heterossexual? Para quê o detalhe da distinção? E a intensidade do grau mede-se apenas em função das práticas sexuais ou também do desejo sexual não concretizado? E por que razão é que só os acidentalmente homossexuais podem, mediante voto de castidade, ser considerados aptos ao desempenho das funções matrimoniais? Por que se nega essa tábua de salvação aos predominantemente homossexuais? Até um exclusivamente homossexual, devoto, fiel nas suas convicções, obediente aos dogmas da sua fé, pode fazer um voto de castidade, renunciar àquilo que é, calar a vontade e o desejo, passar a ser apenas uma sombra, um espectro de olhos cegos, dedos queimados, capaz, no entanto, de vez em quando, com esforço e empenhamento, de se dar para cumprir os desígnios de procriação do casamento.

Estes assuntos não são fáceis. Não é simples graduar a sexualidade das pessoas, até porque – é a minha ignorante opinião - não há ninguém exclusivamente homossexual ou exclusivamente heterossexual. A ser alguma coisa, a ser essencial a classificação, de duas uma, ou somos predominantemente heterossexuais ou predominantemente homossexuais. A predominância não nega a liberdade do desejo, não impõe a prisão das certezas. Acho, por exemplo, que a maior parte das mulheres predominantemente heterossexual é acidentalmente homossexual. Podem nunca ter tido práticas sexuais com outras mulheres, não querem tê-las, mas constroem o desejo e a excitação a partir do corpo das outras mulheres.

Depois, não se percebe esta embirração da igreja em relação à homossexualidade que não é doença, nem distúrbio, nem desvio, mas opção livre que merece respeito cristão. Tanta genuína perversão por aí, tanta parafilia interessante para abordar, e só a aborrecida homossexualidade merece atenção. É injusto para os coprófilos, para os necrófilos, para os zoófilos, para os pedófilos, enfim, para os parafilos em geral. Uma coisa boa, porém, resulta da notícia do Público. Lendo-a, percebemos que, em relação às capacidades intelectuais dos canonistas da associação portuguesa de canonistas, deus, nosso senhor, poupou-nos à incerteza e à duvida, a questão do grau não se coloca: são exclusivamente cretinos, acidentalmente parvalhões, predominantemente idiotas.

2011/09/12

Capitão



(Lisboa-Santo Tirso)
(Por querer mais do que a vida...)

2011/09/11

Aninhas

Para além da casa, da profissão, dos filhos, do casamento sólido, Aninhas tinha também um amante. Conhecera-o há alguns anos nos jardins da fundação. Pouco depois de se mudarem para aquela zona da cidade, ganhara o hábito de passear nos jardins. Observava com atenção as moitas de rododendros, os jardins de buxo, conhecia a floração dos pilriteiros e dos morangueiros anões. Gostava de ler num recanto mais sombrio do jardim. Certa manhã, fora surpreendida por um homem que a interpelou sobre o livro que lia. Conversaram. O homem, professor de literatura moderna, achou graça ao desmerecimento que lhe mereciam os autores clássicos e consagrados. Aninhas não os lia. Achava-os enfadonhos mas assumia, com espantosa assertividade, esse aborrecimento. Após alguns telefonemas, aceitou almoçar com o professor de literatura moderna. Numa tarde de tédio, beijou-o, e numa tarde de maior fadiga, despiu-se e adormeceu nos seus braços. Encontravam-se, desde então, ocasionalmente num apartamento com marquises de alumínio, perto da Paiva Couceiro. A relação com o amante, apesar de intermitente, era estável e duradoura, de alicerces fundos, betonada. Exactamente como o seu casamento.

2011/09/06

Aprendiza

O Joaquim anda por ali a matar todos os seus filhos com a espada de laser que recebeu no aniversário. A minha filha, aproveitando a distracção do irmão, que sempre reclama o trono, senta-se ao meu colo. Conto-lhe, a seu pedido, os pormenores de cada um dos partos. A dor que vem, toma conta de nós, uma dor tão grande, parece que rebentamos, uma dor que, de tão intensa e absurda, logo se esquece. Explico o que senti quando os vi pela primeira vez. A estranheza de não sentir amor quando nasceu o João. Estava à espera de sentir, ao primeiro olhar, um amor absoluto, era o que as outras mães contavam. Eu, em frente da incubadora, olhando aquela criança estranha, feia e frágil, desejei apenas não estar ali, quis ir-me embora e nunca mais voltar. O amor veio mais tarde, muito mais tarde, pelos seis meses, pelos nove, não sei, no tempo exacto, até lá era só instinto de protecção igual ao de qualquer outra fêmea.

Explico que, em relação a ela, não senti estranheza perante a ausência desse amor. Já sabia que custava a chegar. Senti, isso sim, deslumbre, eras tão bonita e perfeita, nasceste de olhos abertos, pronta para o mundo, exactamente como te imaginei e desejei. Já o Joaquim, esse que para aí anda de espada de laser em punho, foi diferente, o desespero fez-me amá-lo mal o vi, precisei de o amar, urgentemente, achei, imagina tu o disparate, que só o meu amor o podia salvar. A conversa continua. Busco pormenores: a luz na enfermaria de recobro, as enfermeiras do serviço de neonatologia, de batas coloridas e sapatos confortáveis, crocs cor de rosa e azul turquesa, o livro que levei para ler e não li, as flores que a Mila me ofereceu, eram ervilhas de cheiro, ou bocas de lobo, flores de cacho, perfumadas, tão difíceis de encontrar nas floristas em Lisboa.

Achas que os homens conseguiam dar à luz? pergunta a minha filha, pouco depois, provocadora, sabendo que não resisto à deixa. Largo o tom sentimental que uma pessoa sempre imprime ao deslindar de memórias bravas. Um homem era lá capaz de aguentar o martírio de nove meses de bucho cheio, nunca, jamais, em tempo algum, são uns miseráveis, todos sem excepção, do teu avô ao teu pai, passando pelos teus tios, amigos, colegas, primos, conhecidos, desconhecidos, grandes e pequenos, nem um se aproveita, até os teus irmãos, não obstante o esforço hercúleo que faço, hão-de aprender a mediocridade, terão, daqui a meia dúzia de anos, a imbecilidade própria do seu género. Ignomínia e presunção . Ela ri, com condescendência, do meu exagero, mas é uma boa aprendiza. Percebe que o desprezo é uma arma essencial na guerra. Usa-se para disfarçar o resto.

2011/09/04

Cova do Vapor

Este ano não posso ir com o meu pai à Índia. Fiquei triste, tão triste, uma saudade moendo por dentro. Pedi-lhe, em alternativa, para me levar à Cova do Vapor.

Mau

O novo disco do Chico Buarque é mau. Tão mau que o ofereci à minha irmã.