Devia ter oito ou nove anos. Pedalava sozinha pelo caminho do moinho quando uma mulher da aldeia meteu conversa comigo. Vinha dos campos, trazia uma bata de trabalho e um chapéu de abas largas que lhe escondia parte do rosto. Queria saber quem eu era. Parei a bicicleta e expliquei-lhe que era neta da vizinha Felicidade que vivia na casa da barra amarela. “Ah, és a filha do indiano retornado!”, disse a mulher com assumido despeito na voz, marcando a diferença, impondo entre nós um fosso intransponível. Não sabia o exacto significado da palavra retornado. Sabia apenas que era uma palavra terrível. Provocava em minha casa discussões e lágrimas. Às vezes, a palavra saía da boca da minha tia; outras vezes, escutava-a na boca do meu pai. Sendo a mesma palavra, parecia ter diferentes significados consoante fosse dita pela minha tia ou pelo meu pai. Talvez por isso, por essa versatilidade, eu não fosse capaz de lhe precisar o significado. Porém, mesmo não sabendo exactamente o que significava ser retornado, não quis naquela tarde ser a filha do indiano retornado. Tive vergonha de o ser, pressenti, pelo tom de voz da mulher, que era motivo de humilhação. “Não sou filha do retornado”, respondi e desatei a pedalar pelo caminho de terra batida, as silvas moendo-me as pernas, todos os bichos morrendo à minha passagem. Quando cheguei ao cimo da colina, olhei a aldeia branca, tão pura. Cá em baixo, no caminho, a mulher ficou rindo nas minhas costas. Eu vivia na sombra mágica da tia Dé, comunista, tão doce, mostrava-me livros, canções, falava de coisas bonitas, igualdade e liberdade. Ignorava o meu pai austero, magoado, revoltado, assumidamente salarazista. Desprezava-o, até. Foi nessa tarde, no cimo da colina do moinho, que comecei a ser filha do meu pai, a querer-lhe bem, a amá-lo de uma maneira absoluta que é a única maneira de o amar.
(maravilhosa, por ser íntima e pessoal, a crítica que o João Bonifácio escreveu ao livro da Dulce Maria Cardoso. Li-a na linha vermelha, interrompida durante muito tempo por causa de um homem que se atirou na estação de Arroios. Não fora o homem se atirar à linha e eu não teria encontrado tempo para ler a crítica do João Bonifácio e lembrar o amor que tenho ao meu pai. Encadeamento estranho da vida.)
(maravilhosa, por ser íntima e pessoal, a crítica que o João Bonifácio escreveu ao livro da Dulce Maria Cardoso. Li-a na linha vermelha, interrompida durante muito tempo por causa de um homem que se atirou na estação de Arroios. Não fora o homem se atirar à linha e eu não teria encontrado tempo para ler a crítica do João Bonifácio e lembrar o amor que tenho ao meu pai. Encadeamento estranho da vida.)