(Estou tão feliz que enjoa: assinei a tal coisa, calhando vou à terra onde nasci, a minha filha escreveu um texto maravilhoso - onde a diaba aprendeu a escrever assim, com tamanha densidade e delicadeza? - e o guru da rua de Pedrouços, entre pêndulos, quiromâncias, grânulos e afins, assegurou-me que vai matar-me a frigidez.)
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2012/02/29
2012/02/27
Idalina, a grande
O cemitério fica longe da aldeia. Vários ciprestes guardam os mortos e lançam sobre as campas uma caruma perfumada que as mulheres, aos domingos, se apressam a varrer com vassourinhas de estopa. Atrás do portão, dois anjos baços espreitam o céu que ameaça com nuvens pardas. Um carreiro serpenteia entre campas, mausoléus e jazigos. Idalina, agachada no chão, ajeita cravos e crisântemos entre os pés de cameleira que trouxe do quintal. Depois, com uma flanela húmida, limpa a campa do meu sogro. Trabalha lá em casa há muitos anos. Planta batatas, couves, cebolas, alfaces. Cuida dos pessegueiros, das laranjeiras, das oliveiras, da vinha, das pereiras, das macieiras, das nespereiras. Esfola coelhos e degola galinhas. Passou a vida entre França e aquela aldeia perto de Ourém. É descarada e muito feia. Em cada frase, diz uma asneira. A minha sogra queixa-se. Acha-a velhaca, preguiçosa e mentirosa. Gosto dela. É uma festa quando chega. Tem sempre coisas para contar. O marido chama-se José. É um homem de sorriso manso, ar de mosquinha morta, parece uma coisinha de nada perto dela. Pois o José, esse tal José, pai das suas quatro filhas, avô de vários netos, bisavô de uma Caroline e de um Mickael, ia-lhe dando cabo da alegria. Os estragos que um homem pode fazer na vida de uma mulher. A Idalina vive com uma irmã mais nova, deficiente e muda. A pobre passa os dias a comer caramelos e a brincar com bonecas. Volta e meia, porém, amarinham-lhe uns calores pelo corpo e esquece as bonecas. Põe-se, muito oferecida, à janela a meter-se com os homens que passam na rua. Como não fala, gesticula e afaga o baixo-ventre. Às vezes, lança uns grunhidos de foca. Há coisa de dois anos, a irmã da Idalina apareceu grávida. A princípio, quando deu pela gravidez, a Idalina desconfiou de um vizinho muito bêbado, o Goela, que, quando voltava da taberna, olhava a muda como quem olha uma presa fácil. Lá estava ela, gorda, quase imóvel, silenciosa, mascando ursinhos de goma, adormecendo as bonecas na aduela da porta. Umas vezes, oferecendo-se; outras, não. O José, sempre rindo, confiando na imbecilidade da cunhada, não dava opinião sobre tão delicado assunto. Ia levando a vida como podia. Até que a muda, certo dia, fartou-se de atribuírem injustamente a paternidade ao Goela, tão feio e malcheiroso. Apontando para o bucho cheio, prestes a rebentar, terá grunhido, com a sua boca cheia de dentes podres, o nome do cunhado.
Quando a Idalina descobriu o feito do marido - já andava desconfiava dos sorrisos nervosos do parvalhão - deu-lhe uma tareia que se ouviu na aldeia inteira. Ameaçou capá-lo com uma tesoura de poda. Uivou o desgraçado. Quanto mais ele gritava, pedindo-lhe desculpa, culpando o vinho, mais vontade ela tinha de o matar. Deixou-o roxinho de dor, o corpo marcado, uma vértebra fissurada, várias peladas no couro cabeludo, os testículos muito encolhidos, prometendo para sempre recato e recolhimento. Depois, esteve trinta dias fechada em casa, mal comia, não se lavava, não via televisão, nem as telenovelas a animavam, passava os dias enfiada na cama, cozendo a dor e pensando na vida. Definhou. Dava-se conta da gravidade dos factos, da humilhação, sabia que a honra, se a tinha, lhe exigia mudança. Uma mulher passa a vida ao lado de um homem, aguenta tudo, acostuma-se ao seu cheiro, aos tabefes, aos encontrões, às suas rotinas, ao vazio que sempre deixa na cama, à arrogância do género, mas há coisas que uma mulher não pode perdoar. Durante esse tempo de recolhimento pensou em separar-se do marido; ninguém na aldeia a recriminaria por tal decisão. Tinha motivos de sobra. A mudança, porém, essa mudança que se impunha como única saída possível, exigia-lhe em demasia: assumir a pequeneza do marido, confessar a sua vergonha e fragilidade, sobretudo, tornar verdadeira uma história que, por ora, não passava de uma suposição. Idalina tomou a decisão mais difícil. Ao trigésimo primeiro dia, saiu da cama, lavou-se, vestiu-se, entrou no café da aldeia, pediu um galão escuro e um papo-seco com manteiga e chouriço. Comeu, com ávido apetite, para matar a fome de muitos dias. Sentiu nela os olhos das mulheres e dos homens da aldeia. Todos esperavam o anúncio da mudança. Idalina comeu em silêncio, deu um arroto pequenino para aliviar da gordura do conduto, depois explicou que ia para casa preparar o almoço do seu José. Acompanhou a gravidez da irmã. Tratou da criança que nasceu perfeitinha e muito bonita. Recambiou o marido para França durante alguns meses para deixar assentar a vergonha e o falatório. Agora, anda com a menina para todo o lado, mostrando, com orgulho, a sua beleza. Olha o mundo de frente. Nunca se arrependeu de não ter mudado a sua vida, largando o marido, abandonando o previsível conforto da vida conjugal. Quem trataria do pobre coitado? Ai de quem ouse fazer um comentário mais acintoso ou tratá-la como uma desgraçada. Toda a gente teme que ela faça o que fez ao marido e, por fim, dê uso à tesoura de poda. Idalina, a grande.
2012/02/19
2012/02/18
Barão Trepador
Desato-lhe os cordões das botas. Tiro-lhe as meias. Estão transpiradas. Pego-lhe nos pés. São já do tamanho dos meus. Cheiro-lhos. Como se ele fosse um cristo ignoto e eu uma virgem mãe. Beijo-lhe o sinal que tem no dedo mais pequenino do pé esquerdo. Digo Gosto tanto do cheiro dos teus pés. Ele não responde. Limita-se a sorrir, mostrando os dentes novos, definitivos, enormes, que lhe estão a crescer na boca. PerguntoAchas que sou maluquinha por gostar do cheiro dos teus pés? Ele volta a sorrir. Atira-se para trás. Suspira. Depois responde. Um pouco. Acho que és uma mãe um pouco louca. São estas as exactas palavras que lhe saem da boca. Volto a pegar-lhe nos pés. Esfrego-os no meu rosto. Às vezes, muitas vezes, tenho a sensação de o sufocar com os meus gestos. Não sou capaz de não lhe tocar. Tantas vezes que desejo ter um ventre enorme elástico onde ele novamente se aninhe e sossegue. Tenho por ele, mais do que por ela, um amor táctil, quase obsceno. Chegará um dia em que ele não me deixará cheirar-lhe os pés, nem me contará os sonhos, nem me pedirá ajuda para colar cromos na caderneta. Estranhará a minha nudez, esconder-me-á a sua. Abrirá assim fissuras irreparáveis na nossa intimidade. Deixarei de me reconhecer no seu corpo, nos olhos, na boca, nas mãos, na sua pele de maltês e andarilho, escura como a de um cigano. O seu corpo deixará de ser o meu corpo.
Junho/2007(passou a esconder-me a sua nudez; faço questão de continuar a mostrar-lhe a minha.)
2012/02/16
Petromax
A avó morreu e a minha mãe começou a trabalhar em casa. É um trabalho duro. Chegam uns homens que se fecham com ela no quarto. Na primeira noite, tive medo que eles ma levassem. Ela sossegou-me. Explicou que tinha de ficar deitada na cama e adormecer. Quando amanhecesse voltaríamos a ser só nós duas. Mas eu ouvi risos no quarto da minha mãe e pareceu-me que a raiva lhe morria na garganta. Na segunda noite, não sei que me deu, entrei no quarto e vi-a deitada na cama com um homem. Despi-me e deitei-me entre eles. Agarrei-me ao corpo nu da minha mãe e chorei um rio de muitas lágrimas silenciosas.Tira-me esta gaja daqui!, gritou o homem à minha mãe. Na terceira noite, ela acendeu um petromax e levou-me para o barracão onde a avó costumava guardar as batatas e as cebolas. Pediu-me para ali ficar. Mal ela rodou a chave da porta dei um pontapé no candeeiro que se apagou. Na escuridão, arranquei todas as palavras que costumam estar presas dentro de mim. Fugiram-me da boca. Eram morcegos loucos. Voavam em espirais, batiam no tecto, chiavam, faziam ricochete e enterravam-se no meu corpo como facas afiadas, pedras, como balas.
Na quarta noite, veio outro homem. Era careca e não tinha pestanas. Usava uma cruz ao peito. Foi nessa noite, na noite do homem sem pestanas, que a minha mãe me levou, pela primeira vez, para a capoeira. Tinha nascido uma ninhada à galinha pedrês e entretive-me a brincar com os pintos. Não gritei e a minha mãe pôde trabalhar em sossego. A partir daí, sempre que ela tem trabalho ou precisa de ir a algum lado, fico na capoeira. Passo lá muito tempo. Pela rede entram lagartas das couves, caracóis, grilos e escaravelhos. Sentada na serapilheira, com a Branquinha ao meu colo, consigo observar tudo. Vejo as sombras do dia e da noite. Conheço as árvores do quintal e os gatos que por cá aparecem. São cinco: dois malhados, um branco, um amarelo e um preto. Passo muito tempo a olhar as nuvens e as estrelas. Os pássaros voam em bandos ruidosos e desenham figuras no céu. Gosto de ver as nascer as folhas do castanheiro-da-índia. Não há cor mais bonita do que o verde das primeiras folhas. É o verde das coisas que são novas, tenras, das coisas que não eram e passam a ser. Consigo distinguir o cheiro da flor de laranjeira do da flor do limoeiro. No quintal, sentada na capoeira, vejo o que mais ninguém vê: os gritos que se soltam do poço e a avó que desce a ladeira com a sachola ao ombro. Na capoeira não há quem me estranhe e ninguém me limpa o rosto com toalhetes perfumados.
2012/02/15
2012/02/14
Pequeno-almoço
O mundo também se divide entre pessoas que pedem torradas aparadas e pessoas que pedem simplesmente torradas.
2012/02/10
Aninhas e o verde cinábrio
Acordava durante a noite para comer, levantava-se da cama como um fantasma, atravessava o corredor, chegada à cozinha, metia à boca o sabor mais excessivo que encontrasse: oreos, picles de beterraba, azeitonas, às vezes, quando não era o excesso que procurava, abria a cartolina do cerelac e enfiava uma ou duas colheres de farinha na boca, ficava a pasta a amaciar durante algum tempo até se tornar num betume ligeiro que rapidamente engolia, voltava à cama e, assim, reconfortada, adormecia imediatamente. Sabia haver uma explicação de cariz sexual para os seus hábitos, mas não se dava ao trabalho de a procurar. Para além das insónias, tinha terrores nocturnos, pesadelos que vinham em catadupa, ficavam a noite toda, imagens muito nítidas que o dia nunca apagava, cores sombrias, verdes cinábrios e azuis cerúleos.
Chispe
Vou ao supermercado com os meus filhos. O mais velho desliza pelos corredores com as mãos enfiadas nos bolsos e as calças descaídas. A do meio saltita como se fosse uma libelinha, uma borboletinha, um bichinho delicado e frágil. O mais novo entretém-se a chupar os dedos, enterrado no carrinho que parece um trono. As pessoas que connosco se cruzam lançam sorrisos cheios de enlevo, como se, dessa forma, quisessem partilhar a nossa felicidade. A imagem de uma mãe com os seus filhos é sempre agradável, conforta-nos do vazio da vida, trata todas as maleitas do mundo, ameniza as quezílias do dia-a-dia. Há quem se meta com o bebé que, encantador, retribui com um sorriso baboso. Rejubilo com as minhas crias que me dão corpo e me tornam especial no corredor dos enlatados, na fila da peixaria, no açougue asséptico onde escolho embalagens de peru, galinha, coelho e, num devaneio incontrolável, um pedaço de chispe para fazer cachupa. Na caixa registadora, depois das pastilhas, chocolates e sacos de gomas, enquanto limpo o nariz da minha filha, topo com um escaparate cheiinho de revistas femininas, dessas revistas que toda a vida fiz questão de desprezar. Uma das revistas prende a minha atenção. Na capa, ao lado da imagem de uma miúda desgrenhada, magra e feia, oferecem-nos o kamasutra do sexo oral. O assunto interessa-me. Fosse eu uma mulher da má vida e seria conhecida, nos bordéis e lupanares desta cidade, pela exímia competência da minha boca. Faço deslizar a revista para o carrinho das compras e sorrio à menina da caixa, uma mulata bexigosa, que elogia os olhos dos meus filhos.
Centopeia
Esvai-se o metro no cruzamento da linha amarela com a linha vermelha. Na plataforma, forma-se uma multidão compacta, um só corpo, lagarta comprida, andam os passageiros devagar, aproveitando o aconchego da proximidade para espreitar os outros: aquela rapariga tem um lacrau tatuado por baixo da orelha, o homem pequeno traz hoje um olhar magoado, a mulher gorda cheira a lixívia, a creolina, a ajax oxi plus. Sigo na multidão. Vou doente, quase morta, trago vasos inflamados, tenho tonturas, dores de cabeça, está o meu universo interior coberto de espinhos, zangado; sinto, e isso é pior do que as universais quezílias, um pingo de muco a querer fugir da narina direita, não trago lenços de papel, já os procurei e não os encontro, se me cai o pingo, se se solta a gota, vou ter de levar a mão disfarçadamente à narina para compor a coisa, levá-la hirta até encontrar onde a limpar; dói-me a cabeça; podendo, dormia. Subo as escadas com pressa de chegar à superfície, mordo os calcanhares do homem da frente, que leva um livro forrado com uma folha branca; vira-se o homem para trás e olha-me, indignado, como que a dizer, a senhora tenha cuidado, há regras e preceitos para que a centopeia se movimente; quero pedir-lhe desculpe, explicar-lhe que respeito muito o compasso da centopeia, a última coisa que quero é atrasar-lhe o passo, tanto apreço que tenho pelos quilópedes em geral, peçonhentos, primitivos, mas com graça no andar, também eu preciso de chegar à superfície para respirar, mas, perceba o senhor, venho doente, tomei os medicamentos dos meus filhos a ver se arrebitava, todos os que encontrei lá por casa, de uma só vez, brufen, maxilase, aerius, benuron, zyrtec; o dobro da dose que lhes uso a dar, costuma resultar, mas, desta vez, sinto só uma espécie de tontura infernal que me põe trôpega, a culpa, está bem de ver, é dos miúdos que não tomam os medicamentos certos para a cura dos meus males. Continuamos a subir e esforço-me por ir devagar, sem precipitações ou atropelos. Volto, porém, a pisar o homem da frente, desta vez com mais força, fica descalço no meio das escadas; pára a centopeia, por minha culpa. Tarda em chegar à luz.
Manatim
Estava ao balcão da cafetaria, a comer qualquer coisa, quando me lembrei da Rafaela, colega de outros tempos, paquidérmica, colossal e mastodôntica, quando a conheci andava de pernas e braços muito abertos, membros como barbatanas, fazia lembrar uma morsa, uma baleia, uma manatim do amazonas, enfim, era um ser imenso e aquático, andava de boca sempre aberta porque lhe custava muito a respirar; em dada altura, anunciou que ia colocar uma banda gástrica, questão de vida ou morte, toda a gente do sexto piso o soube, um alarido, passava horas ao telefone a falar com as amigas, a explicar todos os pormenores da intervenção que lhe estreitaria o estômago, horas e horas naquilo, não sei como era capaz, custa-me tanto falar. Finalmente chegou o dia, meteu baixa, enfiaram-lhe a anilha no bucho, acabando a baixa voltou, queixosa, dorida, com uma catrefada de comprimidos para tomar.
Meia dúzia de dias depois, começou a encolher, a mirrar, parecia milagre, feitiço, bruxedo antigo, mas dos bons, emagreceu, emagreceu, perdia peso às golfadas. Alta, meia mulata, sem as banhas do costume, tornou-se numa morena vistosa, assim que chegou ao ponto tratou de cumprir o seu destino: arranjou um amante. Era um homem mais velho, controlador de tráfego aéreo aposentado, que a esperava, pelo menos duas vezes por semana, à porta do serviço, na companhia de um cão fuçanhudo, cheio de baba. Mulher pouco silenciosa, tudo nela chocalhava e badalava, assim que o aposentado lhe ligava, dizia vou comer qualquer coisa à cafetaria, levantava-se e soltava uma risada maliciosa. O sexto piso punha-se à janela a espreitar aquela indecência, quem a viu e quem a vê, ainda há meia dúzia de meses era uma desgraçada, gorda, feia, um manatim do amazonas, agora, meio postiça, é certo, mas bem boa, com amante posto na Elias Garcia e tudo.
O marido da Rafaela também trabalhava no sexto piso, funcionário zeloso, obediente, coleccionador compulsivo. Soube da traição e calou, nunca ninguém lhe ouviu um queixume, um reparo, nada, nadinha, enfim, uma jóia de homem, homens assim, mansos e resignados, são muito difíceis de encontrar. Pouco depois, a Rafaela pediu o divórcio: ficou com a carrinha e um apartamento, o marido ficou com o filho e as colecções de bules e isqueiros. Um ano mais tarde, mudou de direcção e abateu-se um silêncio muito triste no sexto piso. A última vez que a vi foi precisamente ali, ao balcão da cafetaria, vinha na companhia do controlador de tráfego aéreo aposentado, fez-me uma festa, gabei-lhe o tom das unhas, explicou-me que era um dos violetas hipnóticos da dior, o orchid, mais luminoso, irisado; despedimo-nos com dois beijinhos. Invejei-lhe tanta coisa. À saída o cão fuçanhudo, esperava o dono, olhando a montra de húngaros, bolachas francesas, carpinetes de amêndoa e raivas de fruta.
(devia escrever; ao invés, vou dançar e beber.)
Laidinha
Chamava-se Maria Adelaide. Fora sempre uma criança enfezada. Nascera com uma fenda leporina no maxilar superior. A mãe, uma doméstica muito crente, casada com um construtor civil de Fátima, chorou-lhe o nascimento como se do ventre lhe tivesse escorrido o ser mais infame à face da Terra. Aos dois anos foi operada para fechar a fissura que causava tanto embaraço nos passeios domingueiros. Ficou-lhe uma cicatriz grossa e vermelha, aos gomos, que parecia ter sido suturada por uma costureira inexperiente, com fio de estopa, a sangue frio, sem cuidado ou gentileza. Feiinha, de uma feiura quase comovente por causa da cicatriz que lhe ficara no rosto, sentia-se sempre posta de lado nas festas familiares. A mãe bem podia enfeitá-la de laçarotes e vesti-la de folhos que as primas Arlete e Gorete, as gémeas que viviam na Bobadela, robustas e sadias, sempre lhe mostravam que a beleza era requisito imprescindível para uma mulher ser feliz. Faziam questão de lhe mexer na cicatriz porque, como explicavam, parecia um bichinho de seda morto. Chegavam tios e tias, primos e primas para a celebração dos domingos pascais e para a ceia de natal. A vivenda que o pai mandara construir em Sacavém, mesmo à beira da estrada nacional, revestida de azulejos cor de caramelo, rebentava nesses dias de festa. Os homens sentavam-se nas poltronas de cabedal do salão a mastigar rodelas de chouriço assado e quadrados de queijo flamengo. As mulheres enfiavam-se na cozinha a admirar os novos conjuntos de taparuéres que a mãe adquiria compulsivamente. As crianças corriam para o quarto de Maria Adelaide onde havia uma estante só para as bonecas compradas em Badajoz. Em cima da colcha de renda branca, de pernas abertas, muito esticadas, uma sevilhana vestida de folhos vermelhos, travessa e mantilha, olhava-se, altiva, no espelho oval do pechiché. Maria Adelaide seguia o bando e metia a sevilhana a salvo, em cima do roupeiro, não fosse algum dos primos parti-la e a mãe apanhar um desgosto profundo. Um dia descobriram que Laidinha, era assim que a família a tratava, gostava do primo Renato, rapaz de uma beleza óbvia e ordinária. As primas fizeram uma algazarra. Correram a contar-lhe. O primo olhou-a de cima a baixo e deu uma gargalhada escarninha que ficou, para sempre, presa nas paredes do quarto. Foi a primeira vez que Maria Adelaide sentiu que Deus a gozava. Não voltou a brincar com os primos nas festas de família. Ficava sentada no salão, entre os homens, mordiscando azeitonas.