Frequentava um jardim-de-infância perto do hospital onde a mãe trabalhava. As salas eram acolhedoras, o refeitório muito grande, o dormitório cheio de catres azuis onde as educadoras obrigavam os meninos a dormir a sesta. No Natal e na Páscoa organizava-se sempre uma festa. Os meninos representavam e cantavam canções para os pais vestidos de abelhas, passarinhos, flores. Naquele tempo, virgem de máquinas digitais, enquanto os filhos actuavam, os pais olhavam-nos sem se preocuparem em captar o momento daquilo a que não assistiam. Aplaudiam no fim. Após o espectáculo, era sempre servido um lanche partilhado no refeitório. As empregadas colocavam nas mesas corridas pilhas de pães-de-leite, bolos, travessas de coscorões ou azevias, se fosse Natal, folares de ovos envernizados, se fosse Páscoa, pratinhos de rissóis de camarão e croquetes de carne, bolinhos secos, húngaros, bolacha francesa, fidalguinhos de braga, torcidos de anis. Havia laranjada para os meninos e garrafas de vinho do Porto para os pais. Aninhas, todos os anos, corria pelo corredor para ver o que a mãe trouxera para o lanche. Se o bolo fosse bonito, encontrava em tal facto a certeza de um futuro radioso cheio de felicidade e alegria.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2012/04/29
Aninhas e a festa de Natal
Frequentava um jardim-de-infância perto do hospital onde a mãe trabalhava. As salas eram acolhedoras, o refeitório muito grande, o dormitório cheio de catres azuis onde as educadoras obrigavam os meninos a dormir a sesta. No Natal e na Páscoa organizava-se sempre uma festa. Os meninos representavam e cantavam canções para os pais vestidos de abelhas, passarinhos, flores. Naquele tempo, virgem de máquinas digitais, enquanto os filhos actuavam, os pais olhavam-nos sem se preocuparem em captar o momento daquilo a que não assistiam. Aplaudiam no fim. Após o espectáculo, era sempre servido um lanche partilhado no refeitório. As empregadas colocavam nas mesas corridas pilhas de pães-de-leite, bolos, travessas de coscorões ou azevias, se fosse Natal, folares de ovos envernizados, se fosse Páscoa, pratinhos de rissóis de camarão e croquetes de carne, bolinhos secos, húngaros, bolacha francesa, fidalguinhos de braga, torcidos de anis. Havia laranjada para os meninos e garrafas de vinho do Porto para os pais. Aninhas, todos os anos, corria pelo corredor para ver o que a mãe trouxera para o lanche. Se o bolo fosse bonito, encontrava em tal facto a certeza de um futuro radioso cheio de felicidade e alegria.
2012/04/16
2012/04/11
Aviso
Aviso os estimados leitores que, fartinha da solidão do blogue, aderi ao facebook. Parece que é sítio com outra animação. Querendo, se para isso tiverdes paciência, podereis lá ler em registo breve - patético, mas genuíno -, sem pinga de mentira ou exagero, ao contrário do que aqui acontece, o interessante registo do meu dia a dia. Já me explicaram que o facebook não serve bem para aquilo e que a linguagem que uso também não é a mais indicada. Pelos vistos há regras e códigos de conduta facebookianos que desconheço. Paciência. É o que se arranja. Quem dá o que tem a mais não é obrigado. Já dizia a minha avó.
2012/04/08
Fecha a loja
2012/04/04
Levítico
Amândio
Não inspira simpatia. Tem um corpo possante e robusto. Faz lembrar um pit-bull, um rottweiler, um desses cães de fila que os aficionados, de mangas cavas e braços tatuados, passeiam aos domingos pelos jardins da cidade. Usa óculos de aros escuros, pesados e antiquados, que lhe emolduram uns olhos pequenos, perspicazes e vivos. A voz é grave e nasalada. Fala sempre alto, num tom professoral, como se estivesse permanentemente a palestrar. Consta que tem uma cultura vastíssima, infindável, sabe tudo, cita de cor autores, obras, datas, deixa os seus interlocutores de queixo caído com tamanha sapiência. Não tem grande apreço pela opinião dos outros. Onde quer que esteja, seja qual for a ocasião, a sua opinião é sempre fundamentada, consolidada, irrefutável. É a que conta, a derradeira. Raramente sorri. Quando o faz é por cortesia. Chama-se Amândio e é padre. Durante a celebração da missa, como qualquer sacerdote, usa uma túnica branca, impecavelmente engomada, mas nunca prescinde de uma casula colorida que lhe dá certo protagonismo entre os círios tristonhos do altar. Não delega nos acólitos os rituais litúrgicos. Maneja o turíbulo com destreza, inundando o templo do cheiro enjoativo dos incensos. Os anjos do altar, às vezes, tossem brandamente com a fumarada que ele provoca e as senhoras que disputam os lugares das primeiras filas, na missa dominical das sete, encolhem-se quando, com vigor, sacode o aspersório e dele sai uma autêntica chuva de água benta que ameaça, com gotas gordas e abundantes, as mises de rolos domingueiras feitas nos cabeleireiros do bairro. Para além disso, é sabido, os resfriados podem ser fatais em certas alturas do ano.
Adopta um tom inflamado durante as homilias. Gesticula, procura acicatar os fiéis, falando de assuntos que muitos preferiam evitar: solidariedade, exclusão social, fé cristã. As suas missas nunca são enfadonhas. Não se prestam a sonolências e outros adormecimentos. Um dia, durante o abraço da paz, ouviu-se um telemóvel. Parecia um besouro estridente e histérico. Um silêncio tumular inundou a igreja e os anjos do altar entreolharam-se, amedrontados, temendo uma hecatombe. A dona do telefone, uma senhora gorda e suada, olhou para o lado, fingindo que o besouro não era seu. Depois, perante o olhar colérico e faiscante que vinha do altar, agarrou na malinha e saiu, tremelicando as carnes fartas e soltando ais pequeninos. Conheci-o à porta da igreja. Esperava que os meus filhos saíssem da catequese e vi-o chegar na companhia de uma tia. O Sr. Padre Amândio, disse a minha tia, muito devota e serena. Ele olhou-me com os tais olhos pequeninos e, do nada, disse que apreciava muito os meus traços exóticos. Antes que pudesse explicar-lhe a origem da minha mestiçagem, olhando para o livro que trazia nas mãos, de rajada, aconselhou-me a não perder tempo com leituras blasfemas, que o Saramago era um ignorante, uma cavalgadura que vivia nas trevas. Pobre desgraçado. Também ele, continuou, vivera na escuridão, mas vira a luz. Eu encolhi-me perante tal saraivada e, cobarde, incapaz de lhe confessar o meu agnosticismo, expliquei que também não era grande apreciadora da literatura do nosso nobelizado. A minha tia respirou de alívio e despediu-se.
No bairro onde cresci toda a gente conhece o Padre Amândio e a sua história. Ele não a esconde. Vindo da esquerda mais dura, encontrou Deus já tarde. Militou no partido comunista muitos anos, travou lutas, falou em comícios, distribuiu propaganda. Esteve preso. Viveu a revolução com o entusiasmo próprio dos que acreditam que o mundo pode ser um lugar melhor. Nos anos oitenta, quando sentiu que a sua crença no comunismo fraquejava, procurou Deus e, de uma forma extraordinária e simples, encontrou-o. Converteu-se. Deixou de ser um comunista feroz. Passou a ser um católico feroz. Foi ordenado padre com cinquenta anos. Acredita em Deus com a mesma força com que acreditava na ditadura do proletariado. Há muita gente no bairro que o admira. Outros olham-no com desconfiança. Não lhe apreciam a cultura enciclopédica, o estilo virulento, o passado esquerdista. A uns e a outros causa estranheza que um comunista, ateu confesso, se tenha tornado crente em Deus, fiel à sua palavra. Eu, triste e inquieta descrente, acho que a fé, com as devidas distâncias, é uma espécie de droga. Vicia. Quem a experimenta não sabe viver sem ela. Acreditar no comunismo não é muito diferente de acreditar em Deus. A fé conforta, apazigua, alivia. Torna-nos parte de alguma coisa, dá sentido à nossa vida, passamos a ter um propósito, algo a que nos dedicar. É preciso acreditar. Ser fiel. Seja lá no que for. Os que são pouco originais são fiéis a Deus, a Buda, a Shiva, à Nossa Senhora de Fátima, à Santinha da Ladeira. Muitos, são aos magotes, são fiéis a um clube de futebol. Acreditam piamente que o Benfica voltará a ser campeão. Vão rareando, mas ainda há os que são fiéis a um partido, a um ideal, a uma filosofia de vida. Há os que são fiéis a uma banda, a uma estrela pop, os que acreditam que o Michael Jackson padecia de vitiligo e nunca fez uma operação plástica ao nariz. Há os fiéis das novas seitas, que em tudo acreditam, no poder da cura, nos milagres em catadupa, pague três e leve quatro, que não estranham sequer os terminais de multibanco instalados nos altares para o pagamento do dízimo. Verde. Código. Verde. A sua alma está salva. Ámen.
O padre Amândio acreditava, com sinceridade, no comunismo. Depois, começou a ouvir falar de execuções, censura, falta de liberdade, presos políticos, miséria. Deve custar muito. Não há fiel que aguente tamanha dose de realidade. Deve ter tido uma ressaca dos diabos. Foi preciso arranjar um sucedâneo. Tal como os heroinómanos nos períodos de abstinência, também os fiéis, quando se apercebem da fragilidade das suas crenças, precisam de encontrar algo que substitua a fé estilhaçada. O padre Amândio, comunista convicto, - estou a imaginá-lo, de punho erguido, rosnando a internacional, querendo nacionalizar a fábrica de concentrado de tomate de Benavente -, no dia em que o mundo se lhe apresentou de outra forma, teve de procurar a fé noutra parte qualquer. Encontrou-a em Deus, que é magnânimo, infinitamente bom e se deixa amar por todos.