Estava eu sentada
de novo no banco desconfortável, lendo o livro que trazia dentro da mala, obra aclamada
de um escritor suíço morto há pouco, coisa séria, densa, cheia de referências literárias
e deambulações intimistas, fazendo um esforço para ler duas frases seguidas e
as compreender, quando, finalmente, vi chegar o meu amigo. Vestia bermudas,
calçava umas alpercatas coloridas que lhe sobravam nos pés, chinelava, por
isso, perdera o pouco cabelo que tinha, chegava cansado, via-se bem, o rosto
feio sulcado por muitas rugas finas, percebi que passara as passinhas do
algarve lá pelas américas. Trazia pouca coisa, arrastava apenas um trolley médio
que rolava devagarinho, chiando, pela rampa da saída e, coisa estranha, um
cacho de bananas debaixo do braço. Corri para ele, meu bijouzinho, meu rico
enanito, finalmente voltaste; abracei-o e, por hábito doméstico, levantei-o
para o pegar ao colo, tal como faço com os meus filhos mais pequenos, senti-o,
porém, espernear furiosamente, põe-me no chão, se faz favor, ordenou com uma
frieza que não lhe conhecia. Obedeci, envergonhada do meu gesto. Baixei-me e,
de cócoras, fechando os olhos, preparei-me para o beijar. Fiquei, no entanto, de
boca à banda, o beijo perdido no espaço cosmopolita da aerogare. Sabes, Ana
Clara, vim acompanhado, justificou-se. Estranhei a conversa, olhei em redor e
não vi ninguém. O meu amigo, antes que pudesse perguntar-lhe pela companhia,
começou a andar em direcção ao parque de estacionamento à procura do meu carro.
Tenho uma carrinha velha, uma Toyota Hiace cor de ferrugem que dá nas vistas,
herdei-a de um tio que era construtor civil e a usava para transportar o
pessoal para os prédios que construía na outra banda, Corroios, Seixal e Coina;
é uma carrinha antiga, gasta muito gasóleo, deita fumo preto ao arrancar, custa
a estacionar e, sobretudo, embaraça os meus filhos quando me vêem chegar ao
portão da escola onde uma manada de porsches cayennes espera a saída das crias.
Não é uma viatura adequada ao meu bairro, nem sequer à minha rotina, mas não
sou capaz de me desfazer dela. Razões sentimentais. Na verdade, gostava muito
do meu tio. O meu amigo parou quando finalmente topou com a carrinha estacionada
entre um mercedes de estofos de couro e um smart amarelo, conhecia-a bem porque,
às vezes, por desfastio, para não enjoarmos da cama estreita do quarto 27 da
Pensão S. Miguel, acabávamos a tarde em cabriolices lá dentro. Olhou em volta,
com um ar muito comprometido. Só tínhamos dinheiro para uma passagem, explicou
e a voz tinha uma quentura, certos arabescos e espirais, que eu também não
conhecia. Curvou-se sobre o trolley, fez deslizar o fecho, abriu o saco e mostrou
o conteúdo: era uma anã surpreendentemente pequena, vinha encolhida, dobrada
sobre o corpo adormecido, parecia um feto aconchegado no ventre materno. Abriu
os olhos e saltou do saco com desenvoltura, ajeitou a saia e explicou que
trazia as pernas trôpegas de vir encolhida tantas horas dentro da sacola do
companheiro. Uma anã proporcionada, sem cabeçorra, sem pernas curtas, sem
braços curtos, mínima, ínfima, dava-me pela barriga da perna, muito bonita, cheia
de curvas, parecia uma bonequinha. É a minha companheira, chama-se Maria Ivone,
mas eu chamo-lhe Moranguita. Conhecia-a numa casa de penhores, onde trabalhava
como contorcionista.