Depois de dias de hesitação, vou, não vou, vou, não vou, voltei à Almirante
Reis. Pouca, nenhuma, a vontade de encontrar o meu amigo e a sua Moranguita. Custa-me
a felicidade dos outros. Lisboa não é a minha cidade, nunca será, mas a
Almirante Reis é a minha rua. Metamorfoseio-me se estou quinze dias sem lá ir.
Começa a pele a secar, ganho impingens pruriginosas, coço-as até sangrar, os pêlos
do buço crescem mais depressa, muito pretos e arrepiados, incham-me os olhos, até
a voz se altera, perde robustez, fica um esganiço que se enrola nas palavras. Na
quarta-feira, acordei com duas manchas alaranjadas no braço direito, resolvi
meter um dia de férias. Larguei os miúdos na escola, o mais pequenino disse-me
um segredo ao ouvido, e rumei à Almirante Reis. Fui descendo a avenida devagar.
Mal cheguei à esquina com a Antero de Quental, encontrei o meu amigo, vestia
uma bata ensanguentada, vinha de fazer uma entrega na Marisqueira do Lis, mas
tinha tempo para uma bebida. Sentámo-nos na esplanada do chinês vesgo, cá fora,
a gozar o fresco do mês de Outubro, eu a matar saudades da indigência, ele,
perninhas bambas, baloiçando, sem chegar ao chão, a contar-me as novidades. Arranjei trabalho no talho do Karim. Ele tinha, como ajudante, um costa
marfinense, uma besta grande, fazia para aí dez de mim, quatro dentes de ouro, evaporou-se
de um dia para o outro, levou três frangos do campo, uma palete de codornizes e
uma carcaça de vaca ainda por desmanchar. Deixou o Karim numa aflição. Ofereci-me
para o ajudar. Ele aceitou e mandou fazer um estrado para eu chegar ao balcão; anda
tão satisfeito com o meu trabalho que até já encomendou a um artífice lá da
terra dele, cuteleiro do melhor que há, um estojo de facas para o retalhe de
animais de pequeno porte: patos, coelhos, frangos, galinhas.
A Moranguita, continuou, é que ainda não
encontrou trabalho. Vai fazendo uns biscates. Entretém-se a fazer croché, é
muito habilidosa, umas mãos de oiro, faz pegas, bolsinhas para os telemóveis,
vende-as na entrada do metro. Anda a bordar uma toalha, toda a ponto richelieu,
encomenda de uma finória qualquer, encavalita-se em cima de um bastidor
especial que comprámos na Rua da Conceição, passa a noite naquilo. Também ajuda
a limpar o altar da Igreja dos Anjos uma vez por semana. Para além de
contorcionista, é exímia trepadora, mete-se em buraquinhos, nichos de santas,
amarinha por ali acima, parece um sagui, leva uma flanela embebida em óleo de
linhaça, deixa tudo num brinquinho. O padre, um velho jesuíta, diz que
nunca teve a igreja tão limpa, os rostos dos santos andam luzidios e os ornatos
da talha dourada parecem feitos de sol e luz. Parou um pouco. Limpou a saliva
que se acumulara na comissura dos lábios e cumprimentou uma matulona que ia a
passar. Sabes, nos dias em que faz a limpeza aos santinhos, à noite, quando se
deita, ainda leva aquele cheiro perfumado, cheiro de mirra, incenso, um cheiro muito
oriental. Enfio o nariz nos pentelhinhos, andam tão macios, e perece que estou
numa medina magrebina, cestos cheios de tâmaras, latoeiros, homens de cócoras
fumando, como lagartas azuis, narguilés. Cheirá-la nesses dias basta-me. Depois,
abruptamente, deu um salto, fez uma momice que me pareceu escusada, e
despediu-se, desculpa, mas tenho de voltar ao trabalho que o Karim prometeu
que, se houvesse pouco clientela, me ensinava a desossar uma galinha.
Dei-lhe um abraço, bebi mais um sumol e
pedi a conta. Voltei a subir a Almirante Reis. Olhando a montra de uma
sapataria, encontrei-me do outro lado, achei-me feia como um xarroco, primitiva
como um rascasso, plana como uma tremelga. Estava eu na habitual comiseração,
quando alguém me chamou. Olhei e vi um velho abonecado, lenço de seda, casaco
assertoado, apoiado num andarilho de quatro pés. Reconheci-o imediatamente. Era
o velho do açafate de fruta, o quase defunto da empregada brasileira, o miserável
que me escorraçara sem dó nem piedade do seu apartamento sombrio da Passos
Manuel, furioso com a minha iliteracia, como se pode viver, gritou-me naquela
tarde, sem conhecer o decandentismo e o vitalismo moderno? Tivera uma franca
melhoria, a brasileira dera-lhe a experimentar um chá de flor de fava, estava muito
melhor, já não usava algália, largara de vez a literatura, tomava apenas o
vigamed e o tryptanol para o coração. Estou como novo, rematou, vou ali abaixo
à procura de carninha, alcatra, chambão do bom, tenho comido do melhor.
Escutei-o em silêncio. Depois - não sei explicar porque o fiz - perguntei-lhe
se lhe apetecia a minha companhia. Disse que sim. Pegou no andarilho de
alumínio, largou um pingo de baba e pôs-se a andar a meu lado muito devagar.