Ao
meio dia e quinze estou sentada junto do balcão da fruta, de frente para a
linha de servir, a apreciar as movimentações dos que chegam e dos que estão, a
Fátima serve o peixe e a dieta, a Rosa cuida da fruta e do prato de menu, a
chefa, fascista do pior que há, cheia de vitiligo nos braços e na carranca de
superior hierárquica, serve a carne com uma soberba que espanta, medindo as
fatias de lombo assado, põe e tira, tira e põe, confirma a grossura à
contraluz, a medir, a sentir o peso, não vá descuidar-se e exagerar na dose do
mini-prato; a mim, que pouco como, não me causa mossa, não sei, porém, como
ainda ninguém lhe atirou com a avareza à fronha medonha. O rapaz das arcadas já
chegou. Está em frente da vitrina das sobremesas, mãos nos bolsos, hesita entre
uma gelatina de morango e uma bavaroise esbranquiçada de ananás. Vindo das
entranhas do edifício, chega, entretanto, o mefistofélico que me deixou há uma
semana um bilhetinho no tabuleiro. Desde esse dia passei a ter-lhe nojo, um
asco incontrolável de mulher esmagada. E, no entanto, não foi desagradável, nem
mal-educado, nem sequer rude. Limitou-se a convidar-me para tomar café. O
mefistofélico conhece o rapaz das arcadas, talvez trabalhem na mesma direcção,
pergunta-lhe o que anda a ler e olha-me pelo canto do olho. O rapaz paga a refeição e
senta-se na minha mesa, quatro lugares de intervalo, fico numa ponta, ele
noutra. Há meses que é assim. Costumava sentar-se perto da porta da saída, um dia sentou-se na minha mesa. Cumprimenta-me com um aceno breve, gesto que mal
se nota. Espio-lhe as leituras abertamente, esta semana anda a ler a história
universal da infâmia. Engulo a sopa de legumes e uma tacinha de arroz doce, por
vezes, distraio-me da leitura para falar à Rosa que tem família no Catembe e em
Mapusa. O rapaz come o menu completo sem nunca tirar os olhos do livro, uma
concentração que me aflige. Saberá ele que a Rosa se chama Rosa e que a Fátima,
viúva alegre, chorou mais a morte do caniche preto do que a do marido? Saberá
ele que a chefa do vitiligo tem uma neta chamada Virgínia Estefânea? Não sei.
Só sei que lemos juntos ao pequeno-almoço e, juntos, continuamos a ler durante a hora de almoço. Depois, até voltarmos cada um à sua secretária, ele senta-se a ler na ruidosa sombra das arcadas do edifício, eu vou escutar o terço na igreja ao lado. Temos, eu e o rapaz das arcadas,
a relação perfeita. Fazemos muita companhia um ao outro. Estamos solitariamente
acompanhados. Ou acompanhadamente sós. Qualquer coisa do tipo. É o
silêncio que nos une.