Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
Felicidade
Trago ao pescoço um lenço de lã preto, velho,
que herdei da minha avó Felicidade. É um dos lenços que ela costumava usar na
cabeça. Aconchega-me o peito, esconde o decote. Gosto de o levar ao nariz e
procurar, em vão, resquícios mornos do cheiro dela. Toco no lenço e lembro que,
durante a adolescência, tive vergonha da minha avó, do seu ar provinciano, do
seu lenço de luto, sobretudo, das suas mãos. Mãos de bruxa, mãos em garra,
nodosas, ásperas, mãos de terra, de tanto e tanto que passou. Saber-me assim, ainda
que num passado distante, é coisa que dói. Queria, na altura, uma avó da
Avenida de Roma, igual às das minhas amigas, com cabelos armados pintados de
azul e cãezinhos de companhia no regaço. Não queria aquela. Que nunca lera um
livro. Nem uma revista. Que não sabia sequer escrever o seu nome. Hoje, não sei
porquê, veio-me uma saudade grande dela. Da avó que cantava canções que falavam
da lua, das giestas da serra, do alandroal. Da avó que contava histórias de
bandidos e animais fabulosos. Da avó que sabia jogar ao jangro, fazer flautas
de caninhas, chifres de lenços e bonecas de pano, esguias, muito feias e
imperfeitas.
2012/10/16
2012/10/15
Carrossel dos Esquisitos
O rapaz mais feio do meu curso casou com a rapariga mais feia do meu
curso. A feiura dos dois é coisa nunca vista. Excessiva num mundo onde a beleza
é quem mais ordena. Ele tem a pele muito seca, originada por uma qualquer
doença de pele, psoríase provavelmente. Volta e meia, as escamas da sua pele
soltam-se e deixam à descoberta manchas de um vermelho intenso e feio. Tem os dentes
salientes, a fazer lembrar um coelho gigante. Uma pessoa olha para ele e
espera, a qualquer momento, vê-lo cobrir-se de uma pelagem cinzenta e desatar a
saltitar, frenético, em busca de um prado verdinho. É juiz. Há alguns anos,
apanhei-o numa comarca do interior, muitíssimo sério, feioso dentro da sua
beca, cheia de cordões e pregas, a ditar despachos com uma voz fanhosa. Quis
atirar-me à cara a superioridade da sua casta. Deixei-o. Uma coisa é ser
magistrado. Outra é ser jurista de um instituto público.
Ela, a rapariga mais feia do meu curso,
sempre foi velha. Já o era na faculdade. Usava saias por cima do joelho e
calças vincadas. Tinha olhos pequeninos, a pele baça, o cabelo oleoso colado ao
rosto, sem vida, sem volume. Alta, movimentava-se com lentidão como se o corpo
lhe pesasse em demasia. Tinha, e tem, uns enormes pés voltados para fora, as
ancas largas, muito robustas, a maternidade entranhada nos ossos das bacia.
Deve ter seguido o notariado. Assentos, certidões, averbamentos, procurações, testamentos,
tudo ela há-de tratar com eficiência e sisudez, disfarçando o fastio que o
cheiro a papel velho lhe provoca. Eram ambos alunos aplicados. Não faltavam às
aulas, não frequentavam o bar, não fumavam, não bebiam, tinham notas medianas.
Eu desprezava-os porque eles simbolizavam tudo o que eu não queria da vida:
ordem, conformismo, rotina, previsibilidade.
Ultimamente, andava eu já tão esquecida dos
tristes anos em que andei na faculdade de direito, voltei a cruzar-me com eles.
Devem viver no meu bairro. Encontro-os no talho a pedir carne picada para fazer
almôndegas e na mercearia a comprar duzentos gramas de fiambre de peru. Andam
sempre juntos, de mãos dadas. Ele olha-a com amor. Ela deixa-se envolver pelo
amor dele que é como uma gaze diáfana, muito leve e delicada. São, de uma forma
quase escabrosa, felizes por se terem. Olho-os com uma pontinha de emoção e
muita vontade de chorar.
2012/10/12
Azeite
1ª parte
O homem abre o armário. Tira uma garrafa de vidro escuro. Explica: é
preciso que compreendas a divindade deste líquido, sagrado como o chão de um
cemitério; cheira a aloés, agaves, zambujos, alperceiros e laranjais, recorda a
rigidez láctea das rochas calcárias, nele se aninha o sopro do oceano e a doce
barbárie das figueiras da índia; tem moléculas antigas, leves e aristocratas,
também polifenóis, tocoferóis e carotenos, andam à solta, em carnavais de
concertina e gaita de beiço, dão-lhe um travo picante, acidez que mal se nota.
2ª parte
A mulher pensa: tudo o que é divino é aborrecido e a maja desnuda continua,
em estático convite, pendurada no prado, já nada acontece quando por ela passo;
morri há muito tempo, mas esqueci-me de me levar a enterrar, mesmo morta deixo
entrar filetes de lava, gumes de faca, às vezes, touros solitários que
resfolegam uma bravura que cheira a urina. Entram e saem. Saem e entram. O
movimento é perpétuo, nunca termina. Deixa marcas de ripos e malhos. Esgaça-me
os panais.
3º parte
A mulher pega na garrafa. Olha-a. O homem acredita, por breves instantes,
que comunga da divina unção, falará talvez da purificação dos leprosos, dos
votos dos nazireus, de açafates de coscorões de ázimo e obreias de mel. A
mulher deixa cair a garrafa. Caminha sobre os vidros. Sabes, explica, por fim, sou
parecida com este líquido, livraram-me do ranço, rasparam-me o verdete, mas fico
sempre a boiar na bordadura dos corpos.