Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2013/05/23
2013/05/14
Vermelho
Estou com um buço espectacularmente escuro e grande, não tarda nada terei uma bigodaça farta e revirada, onde pingos glutinosos de caldo verde
poderão secar como estalactites. Voltei a roer as unhas até ao sabugo, ando com
as polpas dos dedos inchadas e cheias de feridas. Tenho um molar estragado que,
deixando um sabor fétido na boca, larga uma halitose potente. Cortei o cabelo
tão curto, já o não consigo apanhar. Os meus pés, por causa das sabrinas
baratas que uso sem meias, cheiram a chulé e os meus sovacos, apesar do
desodorizante, não aguentam até ao final do dia sem libertar um cheiro recozido
de suor. Como os primeiros dias de sol, o meu melasma, apesar da furiosa aplicação de cremes despigmentantes, nota-se cada vez mais e, por causa do
mioma, este mês, o meu fluxo menstrual voltou a ser diluvioso e inconveniente:
largo golfadas de mênstruo coagulado, mas de um vermelho intenso, muito bonito.
2013/05/09
Barbela
Andavam duas jovens mulheres a cirandar pela livraria. Qualquer coisa no modo como caminhavam lembrava a alegria tola das galinhas criadas no campo: acabam no prato, como as outras, mas têm a ilusão da liberdade e da dignidade. Tinham ar de leitoras do Nicholas Sparks, o que só as enalteceria, mas não eram: uma levava a Serpente Emplumada debaixo do braço e a outra, com uma voz meio fanhosa, cheia de entusiasmo, pediu ao balcão o livro do último prémio Leya. Andaram por ali, largando comentários sobre a essencialidade da literatura nas suas vidas e mostrando a sua relação íntima com os livros. Até que a mais gorda, arrebitando a crista, abanando o pelancame vermelho da barbela, olhou em redor e cacarejou assim ” Eu, se pudesse, levava a livraria toda!”. Saí, claro está. Fui enfiar-me numa loja chinesa a comprar collants. São mais baratos, a qualidade do fio é a mesma e as cores têm nomes bonitos: muskade, duna, tropical.
2013/05/07
Aninhas e o dono
Às
vezes, a meio da noite, ia buscá-la à cama do filho e obrigava-a a voltar ao
quarto. Não te faço nada, dizia calmamente, mas vens dormir na nossa cama. E
puxava-a pelo braço. Como se fosse uma cadela, uma escrava, uma demente sem
vontade própria. O filho cobria a cabeça com o edredão para não escutar o
que vinha a seguir: Aninhas tentava libertar-se, gritava muito alto, mordia os
braços até os ver sangrar, batia com a cabeça nas paredes, rasgava a roupa do
corpo e, assim, nua, tentava fugir para a rua. Com o tempo, porém,
acabou por desistir da loucura. Isso custou–lhe mais do que o resto.
Passou a ser obediente: percorria o corredor em silêncio, olhos caídos no chão,
voltava ao quarto e deitava-se ao lado do dono.
2013/05/05
Lobo Mau
(Foi à estante dos cds. Procurou qualquer coisa que não encontrou. Trouxe um disco do Nick Cave. Avisei-o que não era o género dele. Era música de crescidos. Expliquei-lhe que o senhor que cantava tinha uma voz muito grossa, parecida com a voz do lobo mau. Por teimosia, exigiu ouvi-lo. Gostou apenas de uma canção. Ouviu-a várias vezes, ignorando as restantes. Dançou enquanto dava comida ao peixinho vermelho. Depois piscou os olhos e disse "os lobos maus também sabem cantar canções de amor." É bom, ser mãe, mas não é suficiente para me tornar mulher.)
2013/05/03
Tia
“Mete aí uma pinguinha, filha!”, diz a tia Dé e
estende-me uma chávena de café. Geralmente não se senta à mesa, se o faz,
por ser almoço de domingo ou dia de festa, fica sentada à pontinha da cadeira,
o corpo sempre tenso. Nunca tira o avental, raramente usa pratos ou copos.
Debica em pires e chávenas de café. “Que raio de prazer podes ter em beber
vinho numa chávena de café?”, pergunto-lhe. Ela não explica, não diz nada,
limita-se a passar as mãos pelo cabelo completamente branco. Encolhe os ombros
e começa a beber. Os seus olhos dizem sempre o mesmo: sou uma sombra, morri há
muitos anos, num tempo tão antigo que parece de outra vida, sou um passarinho
morto, tenho um coração solitário e palpitante, não sou mãe, não sou avó, não
fui mulher, não deixo ruído, as minhas pantufas mal se ouvem. Sempre foi assim.
Hei-de desaparecer sem que nenhum de vocês se dê conta.
Irmã
Vermelho. Paro no semáforo. Tenho os olhos
inchados. Dói-me qualquer coisa por dentro. Não sei muito bem o que é ou se é
sequer. Mexo com a mão no rasgão da flanela do pijama. Os rapazes do carro ao
lado riem. Ri-se sempre dos imbecis e dos fracos. É suposto ser assim. Olho-os
de volta. Trazem bonés na cabeça. Brincos. Sorrisos. Através do vidro embaciado,
um rapaz moreno diz-me qualquer coisa. É tarde. Que horas são? Verde. Sigo. Dou
voltas. Não sei onde estou. Aqui é o acelerador. Aqui a embraiagem. O travão é
ali. Eu sou esta que está aqui. Chamo-me Ana e não hei-de enlouquecer. Tenho
uma estrela da tarde e um barão trepador. Chego, por fim, à praceta da minha
irmã. Está a chegar. Veste um poncho largo. Parece um anjo branco e tranquilo. Reconhece-me. Entra no carro. Encosto a minha
cabeça no ombro dela. Digo-lhe que estou cansada.