Um dia, para além dos habituais pacotes
de pinhoadas e amores, a prima Laura trouxe-lhe da feira de Grândola uma bonequinha
musical. Era uma figura de porcelana áspera, uma dama antiga, cabelo aos cachos,
vestido enfunado com um remate de folhos, uma cadelinha dengosa nos braços. Por
baixo do vestido havia uma pequena manivela que, torcida, fazia a boneca dançar ao som de uma melodia triste. A minha avó adorou o presente e, muitas
vezes, mostrava-me a pequena estatueta, insistindo na sua beleza e
maravilhando-se com a música sombria, mas bonita, que se libertava do seu
avesso. Dava-lhe corda e, muito quieta, vestida de negro, lenço de lã na cabeça,
escutava o arranhar melodioso das palhetas metálicas no pequeno carrilhão. Eu
não dizia nada. Olhava a minha avó com distância e condescendência. Achava a
boneca um objecto de mau gosto, bastante foleiro com as suas cores garridas e
traços grosseiros. Desprovida de qualquer beleza evidente, sem marcas de erudição
estética, a boneca causava-me naquela altura um arrepio de nojo. Passados
tantos anos, morta, enterrada, quase esquecida a minha avó, a lembrança dessa
pequena boneca de loiça liberta em mim reflexões frívolas, tremores poéticos,
as melancolias mais íntimas.