No dia seguinte, a cidade despertou, ignorando a dimensão da
tragédia. Os jovens casais despediram-se com um beijo. Um homem pediu à mulher que
arranjasse beterrabas e repolho no mercado e preparasse um borsch com natas
azedas para o jantar. Uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas
de pepino e pão duro. Dois velhos planearam uma pescaria no rio, num recanto
fresco, perto do bosque de abetos, onde nadavam trutas gordas. Uma mulher
apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu,
sem a saber explicar, a imensa solidão dos espaços vazios. A vida continuou como
se nada fosse, a mancha invisível, porém, já se havia espalhado, entrara nas
casas, penetrara nos solos, procurara o coração dos objectos, dos animais e das
pessoas para aí se instalar.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2013/09/20
Endofalk
A preparação para o exame durou dois dias. Andei a dieta de caldos, carnes magras e pão branco, fiambre de peru, peixes
magros, carapau, faneca e robalo. Nada de legumes, nada de fruta, quatro
saquetas de endofalk diluídas em muita água, três litros para beber, de quinze
em quinze minutos, na véspera. O médico explicou-me com familiaridade: Ana
Clara, se fores muito presa dos intestinos, podes juntar ao endofalk uma colher
de dulcolax. Ele a falar, eu a pensar no canto da sibila, em sefarditas e
aristos. À cautela, não fosse dar-se o caso de não levar a tripa bem limpa e
ter de repetir o exame, segui o conselho: juntei duas colheres de laxante e
espremi meio limão para evitar a agonia de tanta doçura. Enchi um copo de vidro
biselado muito bonito que roubei este verão da casa abandonada. Levei-o à
boca, bebi de trago como faço nas noites em que procuro o sossego de uma
embriaguez rápida. Comecei a preparar o jantar e aumentei o volume do rádio.
Abraçado às minhas pernas, o Joaquim fala de ninhos, ouriços e castanhas, o
mais velho, acelerado no quarto, está nas habituais atrapalhações da adolescência. Tenho um potro e um alazão. A doce menina contempla em silêncio a
travessa do peixe. Sorrio e esqueço-os. Enquanto espero que a água levante
fervura para deitar o arroz, penso no homem de mãos escuras que não me
toca, não me quer. Na sua indiferença e distância reside a justificação do meu
amor. Felizmente o endofalk não tarda a fazer efeito e liberta-me da melancolia.
Empalideço e corro à casa de banho.
2013/09/14
2013/09/12
Fervura
A adolescência trouxe-me uma espécie de fervura ao sangue.
Foi por volta dos vinte anos que desejei morrer pela primeira vez. Contava
lamelas de comprimidos. Pressionava pontas de faca contra os pulsos. Ficava à
beira do passeio a sentir o corpo estremecer à passagem próxima dos autocarros.
Subia ao telhado do prédio com o intuito de me atirar lá de cima. Apesar da
angústia, sinto um conforto esquisito quando recordo esses
instantes desesperados, sobretudo quando me chega a lembrança da beleza extrema
do telhado do prédio dos meus pais. Abria a pequena porta de metal e o ar era
subitamente puro, livre de fuligem cancerígena. Olhava em redor, só via céu, o
alinhamento simétrico das torres de doze andares, a pista do aeroporto ao
longe. Parecia-me que ali, naquela dimensão, mundo inóspito, silencioso,
solidão muito branca, o ar voltava a chegar-me aos pulmões. A pouco e pouco
passava-me a vontade de morrer. Deitava-me no declive de telhas, esverdeado de
líquenes, sentia o vento no rosto, esperava que o tempo passasse.
Pensar na morte tornou-se num vício. Aliviava-me. Fazia
listas de métodos, tentava perceber qual o mais eficaz e menos
doloroso. Todos apresentavam desvantagens e dificuldades. Na queda havia o
instante em que o corpo bate no passeio e o crânio se racha. Cortar os pulsos
trazia o incómodo do sangue empapando as carpetes da sala e a certeza de morrer
lentamente. O enforcamento parecia-me uma morte feia, abrupta, os enforcados
morriam aos soluços, o corpo sacudido pelo estertor final, a língua de fora.
Outra coisa me fazia rejeitar o enforcamento. Sabia que os enforcados perdiam o
controlo do esfíncter e a ideia dos meus pais darem comigo morta, cheia de
urina e fezes, envergonhava-me. Tomar comprimidos era, de longe, o melhor
método, mas havia a possibilidade da falhar a dose, se não tomasse a quantidade
certa corria o risco dos outros encontrarem artificialidade no meu gesto. A
reflexão enfraquecia pois a minha determinação. Queria morrer, mas através de
um gesto que fosse simples como beber um copo de água ou desligar um
interruptor.
Durante a noite, deitada na cama, muitas vezes, pensei que a
solução mais fácil era entregar o assunto a um especialista. Podia simplesmente
contratar alguém para me matar. Havia maridos que contratavam assassinos para
matar as suas mulheres e mulheres que contratavam assassinos para matar
os seus maridos. Por que não havia eu de contratar quem me matasse? Estes
pensamentos extraordinários chegavam geralmente depois de me masturbar a pensar
em prostitutas com grandes mamas e vestidos de lantejoulas. A ideia do
pistoleiro parecia-me boa, mas não tardei a perceber que a morte, encomendada e
eficaz, era um pouco como as prostitutas de vestidos de lantejoulas: um luxo
que não estava ao meu alcance. Não tinha dinheiro para contratar um assassino,
e mesmo que tivesse, não conhecia nenhum. Vivia num bairro de classe média,
pacato, perto de Sacavém. Havia apenas alguns heroinómanos que roubavam
enciclopédias, loiças finas e garrafas das garrafeiras dos pais para assegurar
a dose diária. Tudo era cinzento e deprimente. Encontrar ali um assassino não
era fácil.
Mas, por mais que tentasse livrar-me dos pensamentos
suicidas, a vontade de morrer não me largava. Tornei-me obsessiva, a ideia
era-me tão agradável como sentir a luz da tarde coada pelas cortinas brancas no
quarto da tia Dé ou observar a minha mãe, nas manhãs de sábado, limpando o pó
do grande móvel escuro da sala. Sentia-me naturalmente desadequada, anormal,
adensava-se a minha inquietação: não só me masturbava a pensar em mulheres
prostibulares como sentia esse desejo latente de morte. Muitos anos
passados, habituada à natureza cíclica desse desejo, a minha iniciação no
desespero parece-me caricata. Às vezes, entre soluços e lágrimas, dá-me até
vontade de rir. Tudo bastante dramático, sofrido, estupidamente inconsequente.
Sei agora que, assim como somos pornográficos às escondidas, somos suicidas às
escondidas. A vida tem um punhado de coisas boas, mas não é como se pinta.
Quase sempre é aborrecida, uma desilusão, está cheia de sofrimento,
tristeza, injustiça, ruas sujas e íngremes, crianças com fome, gente silenciosa
e desesperada. Como não achar a vida insuportável? Não tenho dúvidas de
que a morte é desejada por muita gente e constantemente. Se houvesse um método
infalível, fácil, instantâneo, limpo, haveria no mundo uma mortandade grande,
talvez fosse até preciso mandar construir crematórios, valas comuns, investir
na formação de coveiros, técnicos de equipamento de cremação, cangalheiros. Mas
há vinte anos, precisamente há vinte anos, não tinha o discernimento de hoje,
vivia na certeza da minha singularidade. Dava voltas na cama, inquieta. Quanto
mais pensava no assunto mais me convencia de que a morte era o melhor que a
vida tinha para me oferecer.
2013/09/11
2013/09/10
Indicador
Fixo o almoço: sopa de feijão e uma pêra cozida num líquido
licoroso. O jornal está aberto. Finjo ler. Recordo o desenho do meu sobrinho, a
boca do meu irmão, o sonho de domingo interrompido pelo telefonema da Dá.
Distraio-me com pensamentos soltos, lembranças felizes, mas, atrás, correm as imagens
de sempre, latentes, dolorosas. Desejo o vazio, isso e aprender a deslizar o indicador no ecrã de um telefone. Sinto o cheiro da minha transpiração e
noto pêlos escuros nas pernas. Mantenho-as, porém, cruzadas, à vista, para que sejam
observadas na sua triste mornidão pelos homens que esperam na fila. Enquanto
levo a colher à boca observo o rapaz das sopas, há doze anos que o vejo ali, entre
a Rosa e a Fátima, sempre no mesmo aprumo: pega na concha, mete-a na panela, dá
duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la vertical e, com um
rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela.
Para além de ser excepcionalmente bom naquilo que faz, o João é gentil, doce.
Imagino-o a viver com uma avó, os dois, felizes por se terem, a
observar a cintilação do televisor. É isto a minha vida. Almoçar sozinha, imaginar
as noites do rapaz que serve sopas e mostrar as pernas aos homens que aguardam na
fila do refeitório.
2013/09/05
Filha
Pergunto “Nunca sentes vontade de maltratar os mais fracos,
os miúdos doentes, aleijados, aqueles que são infelizes ou simplesmente parecem
infelizes?”. Diz que não e deixa cair a cabeça no meu colo. “Não acontece
sempre, mas, por vezes, tenho vontade de gritar com a mulher que pede à saída
no metro e, hoje, durante a hora de almoço, senti vontade de pontapear
uma criança. Maltratar os fracos sabe sempre bem.”, explico com vagar e cheiro-lhe
o cabelo.
Anão
Os poetas, antes de tudo, celebram o amor, e têm
razão, porque nada como o amor precisa tanto de ser transformado naquilo que
não é. As mulheres tornam-se então melancólicas, enche-se-lhes de suspiros o
peito, e os homens ganham um ar sonhador, pois todos percebem imediatamente que
um poema que desfigura a tal ponto a realidade deve ser particularmente belo.
O Anão, Pär Lagerkvist