2013/09/25

Coração

No dia seguinte, a cidade despertou, ignorando a dimensão da tragédia. Os jovens casais despediram-se com um beijo. Um homem pediu à mulher que arranjasse beterrabas e repolho no mercado e preparasse um borsch com natas azedas para o jantar. Uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas de pepino e pão duro. Dois velhos planearam uma pescaria no rio, num recanto fresco, perto do bosque de abetos, onde nadavam trutas gordas. Uma mulher apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu, sem a saber explicar, a imensa solidão dos espaços vazios. A vida continuou como se nada fosse, a mancha invisível, porém, já se havia espalhado, entrara nas casas, penetrara nos solos, procurara o coração dos objectos, dos animais e das pessoas para aí se instalar.

2013/09/20

Endofalk

A preparação para o exame durou dois dias. Andei a dieta de caldos, carnes magras e pão branco, fiambre de peru, peixes magros, carapau, faneca e robalo. Nada de legumes, nada de fruta, quatro saquetas de endofalk diluídas em muita água, três litros para beber, de quinze em quinze minutos, na véspera. O médico explicou-me com familiaridade: Ana Clara, se fores muito presa dos intestinos, podes juntar ao endofalk uma colher de dulcolax. Ele a falar, eu a pensar no canto da sibila, em sefarditas e aristos. À cautela, não fosse dar-se o caso de não levar a tripa bem limpa e ter de repetir o exame, segui o conselho: juntei duas colheres de laxante e espremi meio limão para evitar a agonia de tanta doçura. Enchi um copo de vidro biselado muito bonito que roubei este verão da casa abandonada. Levei-o à boca,  bebi de trago como faço nas noites em que procuro o sossego de uma embriaguez rápida. Comecei a preparar o jantar e aumentei o volume do rádio. Abraçado às minhas pernas, o Joaquim fala de ninhos, ouriços e castanhas, o mais velho, acelerado no quarto, está nas habituais atrapalhações da adolescência. Tenho um potro e um alazão. A doce menina contempla em silêncio a travessa do peixe. Sorrio e esqueço-os. Enquanto espero que a água levante fervura para deitar o arroz, penso no homem de mãos escuras que não me toca, não me quer. Na sua indiferença e distância reside a justificação do meu amor. Felizmente o endofalk não tarda a fazer efeito e liberta-me da melancolia. Empalideço e corro à casa de banho.

2013/09/12

Fervura

A adolescência trouxe-me uma espécie de fervura ao sangue. Foi por volta dos vinte anos que desejei morrer pela primeira vez. Contava lamelas de comprimidos. Pressionava pontas de faca contra os pulsos. Ficava à beira do passeio a sentir o corpo estremecer à passagem próxima dos autocarros. Subia ao telhado do prédio com o intuito de me atirar lá de cima. Apesar da angústia, sinto um conforto esquisito quando recordo esses instantes desesperados, sobretudo quando me chega a lembrança da beleza extrema do telhado do prédio dos meus pais. Abria a pequena porta de metal e o ar era subitamente puro, livre de fuligem cancerígena. Olhava em redor, só via céu, o alinhamento simétrico das torres de doze andares, a pista do aeroporto ao longe. Parecia-me que ali, naquela dimensão, mundo inóspito, silencioso, solidão muito branca, o ar voltava a chegar-me aos pulmões. A pouco e pouco passava-me a vontade de morrer. Deitava-me no declive de telhas, esverdeado de líquenes, sentia o vento no rosto, esperava que o tempo passasse.

Pensar na morte tornou-se num vício. Aliviava-me. Fazia listas de métodos, tentava perceber qual o mais eficaz e menos doloroso. Todos apresentavam desvantagens e dificuldades. Na queda havia o instante em que o corpo bate no passeio e o crânio se racha. Cortar os pulsos trazia o incómodo do sangue empapando as carpetes da sala e a certeza de morrer lentamente. O enforcamento parecia-me uma morte feia, abrupta, os enforcados morriam aos soluços, o corpo sacudido pelo estertor final, a língua de fora. Outra coisa me fazia rejeitar o enforcamento. Sabia que os enforcados perdiam o controlo do esfíncter e a ideia dos meus pais darem comigo morta, cheia de urina e fezes, envergonhava-me. Tomar comprimidos era, de longe, o melhor método, mas havia a possibilidade da falhar a dose, se não tomasse a quantidade certa corria o risco dos outros encontrarem artificialidade no meu gesto. A reflexão enfraquecia pois a minha determinação. Queria morrer, mas através de um gesto que fosse simples como beber um copo de água ou desligar um interruptor. 

Durante a noite, deitada na cama, muitas vezes, pensei que a solução mais fácil era entregar o assunto a um especialista. Podia simplesmente contratar alguém para me matar. Havia maridos que contratavam assassinos para matar as suas mulheres e mulheres que contratavam assassinos para  matar os seus maridos. Por que não havia eu de contratar quem me matasse? Estes pensamentos extraordinários chegavam geralmente depois de me masturbar a pensar em prostitutas com grandes mamas e vestidos de lantejoulas. A ideia do pistoleiro parecia-me boa, mas não tardei a perceber que a morte, encomendada e eficaz, era um pouco como as prostitutas de vestidos de lantejoulas: um luxo que não estava ao meu alcance. Não tinha dinheiro para contratar um assassino, e mesmo que tivesse, não conhecia nenhum. Vivia num bairro de classe média, pacato, perto de Sacavém. Havia apenas alguns heroinómanos que roubavam enciclopédias, loiças finas e garrafas das garrafeiras dos pais para assegurar a dose diária. Tudo era cinzento e deprimente. Encontrar ali um assassino não era fácil.

Mas, por mais que tentasse livrar-me dos pensamentos suicidas, a vontade de morrer não me largava. Tornei-me obsessiva, a ideia era-me tão agradável como sentir a luz da tarde coada pelas cortinas brancas no quarto da tia Dé ou observar a minha mãe, nas manhãs de sábado, limpando o pó do grande móvel escuro da sala. Sentia-me naturalmente desadequada, anormal, adensava-se a minha inquietação: não só me masturbava a pensar em mulheres prostibulares como sentia esse desejo latente de morte. Muitos anos passados,  habituada à natureza cíclica desse desejo, a minha iniciação no desespero parece-me caricata. Às vezes, entre soluços e lágrimas, dá-me até vontade de rir. Tudo bastante dramático, sofrido, estupidamente inconsequente. Sei agora que, assim como somos pornográficos às escondidas, somos suicidas às escondidas. A vida tem um punhado de coisas boas, mas não é como se pinta. Quase sempre é aborrecida, uma desilusão, está cheia de sofrimento, tristeza, injustiça, ruas sujas e íngremes, crianças com fome, gente silenciosa e desesperada. Como não achar a vida  insuportável? Não tenho dúvidas de que a morte é desejada por muita gente e constantemente. Se houvesse um método infalível, fácil,  instantâneo, limpo, haveria no mundo uma mortandade grande, talvez fosse até preciso mandar construir crematórios, valas comuns, investir na formação de coveiros, técnicos de equipamento de cremação, cangalheiros. Mas há vinte anos, precisamente há vinte anos, não tinha o discernimento de hoje, vivia na certeza da minha singularidade. Dava voltas na cama, inquieta. Quanto mais pensava no assunto mais me convencia de que a morte era o melhor que a vida tinha para me oferecer.

2013/09/10

Indicador

Fixo o almoço: sopa de feijão e uma pêra cozida num líquido licoroso. O jornal está aberto. Finjo ler. Recordo o desenho do meu sobrinho, a boca do meu irmão, o sonho de domingo interrompido pelo telefonema da Dá. Distraio-me com pensamentos soltos, lembranças felizes, mas, atrás, correm as imagens de sempre, latentes, dolorosas. Desejo o vazio, isso e aprender a deslizar o indicador no ecrã de um telefone. Sinto o cheiro da minha transpiração e noto pêlos escuros nas pernas. Mantenho-as, porém, cruzadas, à vista, para que sejam observadas na sua triste mornidão pelos homens que esperam na fila. Enquanto levo a colher à boca observo o rapaz das sopas, há doze anos que o vejo ali, entre a Rosa e a Fátima, sempre no mesmo aprumo: pega na concha, mete-a na panela, dá duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la vertical e, com um rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela. Para além de ser excepcionalmente bom naquilo que faz, o João é gentil, doce. Imagino-o a viver com uma avó, os dois, felizes por se terem, a observar a cintilação do televisor. É isto a minha vida. Almoçar sozinha, imaginar as noites do rapaz que serve sopas e mostrar as pernas aos homens que aguardam na fila do refeitório.

2013/09/05

Lado B



(é bem melhor, este disco; escuto e tenho vontade de acelerar nas curvas.)

Filha

Pergunto “Nunca sentes vontade de maltratar os mais fracos, os miúdos doentes, aleijados, aqueles que são infelizes ou simplesmente parecem infelizes?”. Diz que não e deixa cair a cabeça no meu colo. “Não acontece sempre, mas, por vezes, tenho vontade de gritar com a mulher que pede à saída no metro e, hoje, durante a hora de almoço, senti vontade de pontapear uma criança. Maltratar os fracos sabe sempre bem.”, explico com vagar e cheiro-lhe o cabelo.

Anão

Os poetas, antes de tudo, celebram o amor, e têm razão, porque nada como o amor precisa tanto de ser transformado naquilo que não é. As mulheres tornam-se então melancólicas, enche-se-lhes de suspiros o peito, e os homens ganham um ar sonhador, pois todos percebem imediatamente que um poema que desfigura a tal ponto a realidade deve ser particularmente belo.

O Anão, Pär Lagerkvist

2013/09/01