Pensão Gerês (4)

Ficamos na mesma posição durante algum tempo, encaixados. Conversamos.
- Ainda gostas do Caetano Veloso?
- Já não, acho mesmo que não o suporto.
- E do Chico Buarque?
- Oh, isso é amor para a vida inteira...
Pouco falta para as seis. Não tarda nada, o meu filho estará à minha espera no portão da escola, o rosto redondo, muito bonito, parecido com o pai, os bolsos cheios de pedras e folhas para mim. Tomo banho rapidamente, visto-me, pinto os lábios, ajeito o cabelo. Abro as janelas. Em frente há um prédio pombalino abandonado, fuligem e cacos por toda a parte, as ervas crescem no telhado e nas varandas. Os azulejos que cobrem as paredes têm uma cor extraordinária. Um verde de bosque, misterioso, profundo, húmido. O Alexandre chega pouco depois da casa de banho. Ao beijar-me no pescoço sinto novamente o seu cheiro.
-Costumas reparar na beleza das coisas?
- O quê?
- Se costumas reparar na beleza das coisas?
- Sim, claro.
A resposta é de tal forma imediata e mecânica que desconfio. É muito difícil encontrar quem repare na beleza das coisas. Ele fixa o olhar numa das varandas do prédio abandonado. “Quem terá brincado com aquela bola?”, pergunta e aponta para uma velha bola de futebol esquecida entre as ruínas. Olho-o e, nesse instante, percebo por que razão nos encontramos assim, há já tantos anos, intermitentemente, em quartos de pensões, sem querer nada um do outro, sem desejarmos fazer parte da vida do outro. Descemos à rua. O Alexandre fica na entrada do prédio à espera que a chuva passe. Corro para a paragem de táxis. Tenho de estar às seis horas no portão da escola.


2014/03/30

Pensão Gerês (3)

Conheço o seu cheiro, um cheiro autêntico, de cabedal, de pele curtida. O seu toque é lento, contido, certeiro. Certa vez, no jardim da Feira da Ladra, pegou na minha mão e beijou-a. Um beijo discreto, mas sensual. Nesse instante, senti uma vertigem, tornei-me líquida, desejei intimamente que me tomasse ali, num banco de jardim, à vista dos velhos que jogavam à sueca. Atravesso-me agora na cama, deito a cabeça sobre a virilha esquerda do Alexandre. Sinto o seu sexo pousado sobre o meu rosto. Dá-me pancadinhas ligeiras. Penso: “Aqui estou, num quarto de pensão, com duas grandes janelas a dar para o casario da Baixa, deitada com o homem que me beijou a mão no jardim da Feira da Ladra”. Olho novamente o pénis. Pulsa como se tivesse vida própria. Cheiro-o, humedeço as pontas dos dedos com saliva e toco a glande, macia, frágil. Desço a mão pelo frisado do prepúcio recolhido, agarro o fuste. Sinto um pulsar de bomba. Inclino-me, enfio por fim a ponta da minha língua no meato. Sabe a sal e os nervos das comissuras parecem linhas repuxadas. Encho a boca. Pouco depois, amarinho pelo corpo do Alexandre. Sopro-lhe uma frase ao ouvido e viro-me de costas. 
-Nunca quiseste fazer assim…
- Experimentei há pouco tempo e gostei. 
O Alexandre entra tranquilamente dentro de mim, percebo que se esforça para não me magoar. Ficamos deitados, um sobre o outro, mal nos mexendo. “Desconcertas-me, Ana, excitas-me, se me mexo venho-me”. A sua mão procura-me entre as coxas, no emaranhado dos meus pêlos muito negros e ásperos. Começo a gritar. Não sei porque o faço. É a primeira vez que grito na cama. E se a mulher da farda puída bater à porta? Uma vez, na feira de Grândola, ao andar no Twister Gigante, também gritei assim. Sinto vergonha por estar aos gritos, mas não os consigo controlar. O Alexandre continua a tocar-me. Tenho um orgasmo bom, muito diferente do que é habitual. 

2014/03/29

Pensão Gerês (2)

Ali”, digo pouco depois e aponto para um prédio que fica na esquina da Rua Barros Queirós. Na varanda do terceiro andar, uma placa antiga anuncia “Pensão Gerês”.  Caminhamos, apressados. Ainda assim, sou capaz de me dar conta das movimentações dos africanos no adro da Igreja de São Domingos. Há homens ociosos que mantêm a alegria da conversação, falam ruidosamente, gesticulam, as palmas das suas mãos são cor-de-rosa clarinho, quase brancas, mas os olhos, de tão raiados de sangue, assustam-me. Duas mulheres, de turbantes coloridos, pés enfiados em chinelos de corda, estão sentadas num banco de pedra. Vendem malaguetas verdes, quiabos e uns pequenos frutos alaranjados que não conheço. A entrada do prédio da pensão cheira a humidade, bolores, madeiras bafientas. Por cima das velhas caixas do correio, pequenas placas identificam os inquilinos: um advogado, um técnico oficial de contas, uma esteticista, dois osteopatas e um astrólogo. Subimos  ao terceiro andar e tocamos à campainha.  Uma mulher velha abre a porta. Usa chinelos ortopédicos e uma bata azul muito puída da gola. Parece espantada com a nossa chegada e, quando ri, mostra os dentes da frente cheios de sarro amarelo. Não se vê mais ninguém, não se escuta um ruído. A pensão parece deserta, parada no tempo, como se há muitos anos ali não entrasse ninguém. A mulher caminha devagar por um corredor estreito até chegar a um pequeno balcão de madeira escura. Em cima de uma mesa de encosto com formato de meia-lua vê-se um escaparate com folhetos turísticos e um arranjo de flores artificiais desbotadas pelo tempo. Quer saber quantas noites vamos ficar. “Ficamos uma noite e pagamos já”, esclareço. A mulher guarda o dinheiro numa gaveta que fecha à chave e leva-nos por um segundo corredor ainda mais escuro. As paredes estão cobertas até meio por azulejos que formam um padrão de formas geométricas e, apesar da penumbra, os candeeiros, de vidro fosco, estão apagados. Tudo é silencioso e sombrio, mas, subitamente, a mulher abre uma porta e faz-nos entrar num quarto limpo, amplo, arejado, cheio de luz. Há um roupeiro de espelho oval entre duas janelas, a cama é grande e está coberta com uma colcha azul clara, de cadilhos brancos. A luminosidade faz-me piscar os olhos. O Alexandre fecha a porta e começa a despir-me.

2014/03/07

Pensão Gerês (1)

A Pensão Imperial já não existe. Agora é um hostel com ares de modernice, mobilado com caixotes do ikea, tapetes de cores neutras, molduras garridas com reproduções dos borrões do Adolph Gottlieb nas paredes. Já não há passadeiras de linóleo nos corredores, nem vasos de cóleos murchos aos cantos, o rapaz dos óculos muito graduados desapareceu. A cozinha, que funcionava como recepção, é agora um espaço estranho, não sei muito bem o que é, parece uma sala de laboratório, as paredes estão revestidas de azulejos verdes e, em cima das bancadas altas, há portáteis e seus sucedâneos. Uma rapariga, feiosa, com ar tristonho, cabelo ruivo mal cortado, consulta o facebook ao mesmo tempo que fala ao telefone. Pergunto ao gerente pela antiga dona. O homem, de barba muito cerrada e cabelo despenteado, roda os olhos na minha direcção, depois volta a pousá-los no ecrã de um computador. Parece aborrecido com a pergunta que lhe faço. “Já estava muito cansada”, acaba por dizer, “quis desfazer-se do negócio, ficámos nós com isto”. E cala-se sem dar mais explicações.  Pelo olhar displicente, pelo encolher de ombros, consigo escutar para lá das palavras que lhe saem da boca. Diz assim: “Limpámos o lixo, não há um único vestígio da velha, pode olhar à vontade, não encontrará animais de loiça, cães, raposas, galos, não encontrará fruteiras de plástico nem naperões de linha em cima das mesas”. Olho em volta, toda aquela modernidade me entristece. “Já não gosto deste sítio”, explico ao Alexandre e descemos à rua. Continua a chover. Precisamos de encontrar rapidamente uma alternativa, já não temos muito tempo, às seis horas o meu filho espera-me no portão da escola. 

2014/03/04

Dezembro

A minha mãe sofre de depressão crónica. Eu também. Pouco antes de ela regressar a Goa, senti-me bastante em baixo, sem vontade de fazer nada, sem vontade de estar com ninguém. Dezembro foi um mês terrível. Passei dias inteiros na cama. Pouco comi. Não atendi o telefone. Entreguei os meus filhos aos cuidados da Graça. Deixei de ler, de correr, de escrever. Até de tomar banho e de lavar os dentes. Cheguei a pedir ao psiquiatra que me internasse. Ele fingiu não me ouvir e aumentou-me a medicação. Um dia, porém, consegui levantar-me da cama, vestir-me e arrastar-me até ao trabalho. Ao fim da manhã, olhando em volta, senti uma vontade urgente de chorar. É-me muito difícil aguentar o choro. Querer chorar e não o poder fazer é uma autêntica tortura. Ainda pensei em ir para a casa de banho, trancar-me no cubículo pequeno, sentar-me na retrete, fixar o recipiente dos pensos higiénicos, chorar com a cabeça encostada à parede de azulejos esverdeados. Porém, temi que a minha aflição não desaparecesse com um choro silencioso. Sempre que pressinto um choro incontido, muito aflito, corro à igreja de Nossa Senhora de Fátima, sento-me ao lado do altar a Nossa Senhora do Carmo, fixo os noventa anjos e choro na sua companhia. Mas, nesse dia, sentia-me tão em baixo, tão suja, tão incrivelmente miserável e cansada, que temi não conseguir caminhar até à igreja. Aguentei o choro durante mais alguns momentos, mas, assim que as lágrimas me embaciaram o olhar, desci à rua e apanhei um táxi. Comecei a chorar, encolhida no banco. O condutor do táxi, um homem jovem de rosto grosseiro, atrapalhou-se, “A senhora acalme-se, não chore, tem aqui um lenço!” foi dizendo enquanto me espiava pelo espelho retrovisor. Mal cheguei a casa dos meus pais, entrei no quarto da minha tia para que o Joaquim não se desse conta da minha chegada. A minha mãe rapidamente se apercebeu do meu desespero. “Não aguento”- fui-lhe dizendo numa aceleração de palavras – “Tenho medo de ficar sozinha, tu vais para Goa, o Reinaldo volta para França, eu fico sozinha com os miúdos e isso assusta-me, aterroriza-me”. Mergulhada nessa tristeza tão sombria, senti-me pela primeira vez na vida incapaz de tomar conta dos meus filhos. Chorei durante muito tempo, aos soluços, nos braços da minha mãe. Pedi-lhe que me abraçasse com muita força e ela abraçou-me. Gosto dos abraços que estrangulam. Continuei a falar no tom delirante que às vezes me chega. “Sabes, mãe, o meu pensamento foge sempre para aqueles pensamentos, faço um esforço, juro que faço, mas não consigo libertar-me”. A minha mãe escutou-me em silêncio. Por fim, explicou-me que por vezes também pensava em acabar com tudo, mas guardava sempre para si tais pensamentos sombrios, nunca os partilhava. As suas palavras desconcertaram-me, nelas encontrei a revelação da dimensão da sua tristeza, mas também uma subtil crítica, era como se me acusasse de imaturidade, como se me aconselhasse a sofrer calada, sobretudo a nunca incomodar os outros com a minha angústia. Recuperei  a calma. Deixei de chorar. 

2014/03/01

Alívio

Pela manhã, ao pequeno-almoço, li um conto da Katherine Mansfield. Nas primeiras páginas, a escritora neozelandeza descreve o alívio que as mulheres de uma família inglesa sentem quando Stanley, marido, cunhado, pai, filho, sai de manhã. Stanley parte para o trabalho, leva o chapéu de feltro posto e a bengala que custou a encontrar, Beryl, Linda, a velha Mrs. Fairfield, as crianças, Kezia, Isabel, Lottie, ficam sozinhas. A casa volta a ser um lugar doce, tranquilo, feminino: as mulheres aproveitam o fresco do jardim, notam os detalhes do mundo, tomam banhos de mar, gozam o prazer de falar sem ter ninguém a perturbá-las. Até Alice, a empregada, é atingida por essa inconveniente felicidade, lava a loiça na cozinha, despreocupadamente, estouvadamente, desperdiçando água. “ Já foi? Já! Oh, que alívio, como as coisas ficavam diferentes com o homem fora de casa. Até as próprias vozes pareciam mudadas, quando se chamavam umas às outras; soavam quentes e cheias de ternura, como se estivessem a partilhar um segredo”. Li este parágrafo, pela manhã, no refeitório, e senti-me plena, estupidamente feliz. À noite, na cozinha, enquanto picava alhos para temperar bifes e observava a torneira do esquentador (pinga há mais de quinze dias, um pingue-pingue contínuo e silencioso), pensei novamente no conto da Katherine Mansfield. De imediato, me aflorou ao espírito o alívio que a minha mãe sente quando o meu pai parte sozinho para Goa. Os seus olhos ganham brilho, às vezes, surpreendo-a a cantar pelos cantos da casa. Parece uma outra mulher, alegre, tranquila. A minha mãe desfruta, com discrição, dessa calma, mas, um dia, no quarto da tia Dé, depois de trocar a fralda ao João, levantou os olhos e perguntou-me “Mas por que é que eu me sinto tão bem quando o teu pai não está cá?” Logo a seguir, como se temesse a sinceridade da minha resposta, baixou os olhos e começou a rir-se nas momices do neto mais novo. A minha mãe não o confessa abertamente, mas, pela alegria das conversas, pelo brilho dos seus olhos, é evidente que se sente menos tensa quando o meu pai não está. Parece libertar-se de qualquer coisa que a sufoca lentamente. No entanto, passado algum tempo, como se se sentisse intimamente culpada por esse bem-estar, começa a insistir que tem de ir para Goa. “Tenho de ir ter com o vosso pai”, explica, “Não tem ninguém que trate dele, a Ligorina só cozinha aquelas comidas condimentados que lhe fazem mal à pancreatite”. É um discurso forçado, mas adequado à sua condição de mulher de setenta anos. Mete-se sozinha no avião e vai ao encontro do meu pai. Fica por lá três, quatro meses. É um tempo de profunda agonia e solidão. O meu pai ama a minha mãe, tem por ela um amor antigo, comovente, mas isso não significa que cuide dela, que a abrace, que lhe preste atenção. Passa os dias em bancos, repartições, conservatórias, serviços. A minha mãe nunca o acompanha nessas andanças, fica na casa de Maina, sem ter ninguém que a leve a Margão ou a Pangim. Penso nela muitas vezes. Como ocupará o tempo dessas longas horas de solidão? De manhã, desce ao jardim, entretém-se a regar as árvores de fruta e a apanhar folhas secas das roseiras. Pela tarde, senta-se no alpendre a ouvir as conversas da Fátima, indolente, preguiçosa, e da tia Maria, má, feia, o olho cego de víbora sempre a largar uma aguadilha ramelosa. Se lhe falta alguma mercearia, vai até à pequena loja que fica junto da igreja. Volta a casa com um pequeno saco de plástico nas mãos, leva o corpo pesado do calor, os seus chinelos pisam as vagens de tamarindo que cobrem a vereda do portão. Arruma as compras no armário da cozinha, enfrenta novamente o silêncio. Às vezes, a solidão da minha mãe torna-se incomportável. Telefona, choraminga, diz não aguentar as saudades dos filhos, dos netos, da irmã. Desafio-a a meter-se no avião e a voltar para perto de nós. A reacção da minha mãe é sempre igual. Emudece o choro e, num tom firme, quase irritado, responde-me: “O meu lugar é ao lado do teu pai”.