Sento-me a ler o livro que ontem encomendei. Ao ler o prefácio e as primeiras páginas, facilmente percebo a razão pela qual me sugeriram tal leitura. Volto a ter a sensação - nos últimos meses cada vez mais frequente - de que devia abandonar de vez a mania da escrita e dedicar-me apenas à leitura. Ler é tão bom e as s histórias que gostaria de escrever já foram escritas por mulheres incrivelmente talentosas. Continuo a ler, bebo cada palavra, cada frase; a cada página, sinto uma espécie de vibração, de morno sossego, uma alegria íntima por estar aqui, sozinha, na minha livraria preferida, a ler o livro da Elena Ferrante. Hoje, ao contrário do que é habitual, a livreira não pôs música de fundo, de modo que, apesar de estar concentrada na leitura, consigo ir escutando as conversas de quem passa na rua. Em rigor, não são bem conversas, são apenas fragmentos de frases soltas. Duas ou três palavras: “Fiz almôndegas de bacalhau e…. “ ou “ …telefone-me assim que o Dr. Saraiva…” ou ainda, numa voz alta, de adolescente“…pagas onze euros e podes comer…”. Continuo a ler até que uma nova frase se escuta. “Deixa-me, por favor, deixa-me…”, escuto, dito numa voz febril, angustiada, de quem está à beira do precipício. Levanto os olhos do livro. Uma mulher parou junto à montra da livraria e, com gestos tensos, continua a falar alto. “Não quero, percebes? Não consigo continuar a viver contigo…”. Finjo continuar a ler, mas faço um esforço de concentração para perceber o contexto da conversa. Por que está a mulher tão desesperada? Que carrasco a deixa naquele estado? Baixo os olhos e lembro as discussões com o Reinaldo no tempo em que eu queria sair de casa e ele não deixava. “Sais de casa, mas sais sozinha, sem os miúdos.”, dizia-me e eu ficava sem saber o que fazer. Até que chegou o dia em que dois jovens polícias chegaram e eu pude sair com os meus filhos. Passaram-se apenas alguns anos, mas esse tempo, violento e trágico, parece-me longínquo como se tivesse sido vivido por outra mulher. Já não sinto medo, nem raiva, nem nojo. Serei eu uma mulher diferente? Não sei, mas gosto de acreditar que, se voltasse a passar pelo mesmo, em vez da loucura, dos gestos trágicos, do desespero, saberia agora fazer escutar a minha voz.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2014/08/29
2014/08/27
João
Vou feliz, o meu coração bate acelerado. Sei que o João não está no fim do caminho perfumado, nem está, como sempre o imaginei, sentado a uma mesa do Longuinhos, provando um prato de kishmor, não está sequer na Índia, está no outro lado do mundo, deitado com uma mulher jovem, uma mulher sem passado, sem prole, uma mulher que lhe dará dois filhos e o tratará até ser velho por “amor”. No entanto, é para ele que caminho e isso faz-me sentir viva, dolorosamente feliz.
(Sonho frequentemente com o homem que amo. Às vezes, como ontem, sonho com a sua ausência e é bom na mesma.)
2014/08/26
Sombra
A Madalena veio ter à minha cama. Não sei como lá fomos dar, mas acabámos a falar da memória. Expliquei-lhe como funciona a minha memória, como sempre funcionou, como é estranha, ineficaz, tudo esquece, assimila apenas pormenores, insignificâncias, quase sempre imagens sem possibilidade de interpretação ou análise. Para exemplificar, disse-lhe que me lembrava perfeitamente dos ténis que usei no funeral do meu avô (tinha onze anos). Uns ténis vermelhos, da Adidas, comprados na Suíça. Recordo que caminhava no meio do cortejo fúnebre - velhas de lenço na cabeça, envoltas em xailes com cheiro a fumo, homens de rugas fundas e mãos calejadas - sem experimentar propriamente angústia ou sofrimento. Até que uma mulher olhou com censura para os meus ténis vermelhos. Acrescentei que também me recordava, com nitidez, ainda em Maputo, do exacto tom de azul do copo de plástico que um menino segurava no refeitório. Não me lembro do rosto dessa criança, não sou capaz de dizer se era magro, gordo, bonito ou feio, só me lembro das suas mãos segurando o copo de plástico azul. A minha filha escutou-me, depois fechou os olhos como se procurasse uma memória que pudesse acompanhar as minhas. Pouco depois, abriu os olhos e falou: “Lembro-me do dia em que os treinadores trouxeram o praticável. Fiz vários saltos de mãos para experimentar os tapetes novos. Lembro-me perfeitamente da minha sombra projectada no chão do ginásio”. Beijei-lhe os cabelos e mandei-a para a cama. Muito bela, a memória da minha filha, aliás, não consigo imaginar memória mais bela do que a dela, a da sua própria da própria sombra.
2014/08/24
Laura
Meto conversa com uma mulher jovem que está sentada junto de uma janela aberta. Está sozinha e abana-se com um vistoso leque vermelho de sevilhana. Não usa sutiã, percebe-se pelo leve balouçar das mamas, e cheira um pouco a suor. Os seus olhos escuros, expressivos, revelam tranquilidade. Pergunto-lhe pelo nome. Diz-me que se chama Laura e, sem que lho pergunte, explica estar a tirar um doutoramento em teologia feminista. “Em Estocolmo”, acrescenta e a boca abre-se num sorriso lento. Fico impressionada com a resposta, intimamente volto a lamentar o curso que escolhi. Peço-lhe que me explique o que é isso da teologia feminista, mas a chegada de uma mulher mais velha ao salão parece suscitar toda a atenção de Laura. A mulher vem cansada de subir a grande escadaria de pedra que dá acesso ao salão. Encosta-se a uma coluna, apoiada numa bengala, a retomar a respiração. Tem um ar sisudo, contrariado, os cantos da boca caídos. Traz pela trela uma cadelinha irritante que larga uns ginchos de rato e é muito apaparicada por um homem baixo que parece ter algum protagonismo na reunião. Pouco depois, dá-se início ao lançamento da obra. O homem baixinho faz a apresentação da colectânea. Fala de coisas interessantes, sim, claro que fala, mas não sou capaz de reter uma única ideia do seu discurso. Aplausos, aplausos, aplausos e, de seguida, explica que irão ser lidos alguns poemas. O Ricardo atravessa o salão e pede-me que leia o meu texto (não é um poema, explicou-me, é prosa poética). Digo-lhe que não, mas, logo a seguir, olhando a rapariga que estuda teologia feminista, talvez querendo impressioná-la, digo que sim. Gosto de ler em voz alta, leio bem, a minha voz é naturalmente projectada, clara, segura. Enquanto leio reparo que a luz faz brilhar o soalho escuro. Volto a sentar-me ao lado de Laura que elogia o meu texto e a minha leitura. Fico à espera que os poetas a sério leiam os seus poemas. A matrona da cadelinha é a primeira. Levanta-se e com lentidão paquidérmica arrasta-se até ao palco. Pergunto a Laura “Quem é esta senhora?” e ela explica "É a Maria da Conceição Caleiro, crítica literária e grande poeta”. Percebo, pelo tom da sua voz, que lhe merece admiração. A grande poeta senta-se de pernas levemente abertas, deixando antever umas coxas marmóreas e flácidas, e, com insuportável sobranceria, olha em volta. Começa então a ler o seu poema. A voz arrasta-se, dolorosa, é uma voz calcificada, moribunda. Declama como se tivesse a boca cheia de feridas. Laura bebe cada palavra, os olhos tremem-lhe de emoção.
2014/08/23
Sapatos Vermelhos
Comprei uns lindos sapatos de verniz vermelho em Dunquerque. Fui a Calais comer ostras e mostrar aos meus filhos, como se de animais em cativeiro se tratasse, os imigrantes que vieram para atravessar o mar. Não foi difícil descobri-los. Negros, retintos, agasalhos quentes por cima de trapos rasgados. Estavam num terreno árido, longe do centro da cidade, uns sentados em silêncio, outros fazendo fila para conseguir um prato de sopa. Comovi-me por um instante e depois esqueci-os. Passeei na praia de Malo les Bains, sentindo o vento frio no rosto e notando a marca das pegadas do Joaquim (corria mais à frente, gritava para espantar as gaivotas). Mulheres sentadas em cadeiras de lona, a apanhar sol. Uma avó magra, de biquíni azul e touca amarela, brincava com os netos e, sem pudor, mostrava o seu corpo anquilosado, suas peles flácidas, seus lentigos, sua magnífica velhice. Um grupo de rapazes asiáticos fotografava-se junto ao mar e, ao longe, o pontão de Leffrinckoucke surgia coberto por uma leve neblina cinzenta. O mar pareceu-me estranhamente calmo. Esperava um mar escuro, revolto, perigoso. Comemos gelados americanos todos os dias. Hesitei entre tantos sabores desconhecidos; um dia, depois de ter estado a observar um menino gordo a saltar nas camas elásticas, escolhi gelado de violeta e a boca encheu-se daquele creme suave, lilás, muito perfumado, ligeiramente enjoativo. Em Bergues, imaginei o céu repleto de aviões, os alemães marchando nas ruas da aldeia, sem notar a beleza das begónias amarelas. Subi à torre de Bergues e, lá no alto, ao olhar o casario e a torre negra de uma abadia, senti vertigens, os meus olhos ficaram embaciados e o meu coração bateu, acelerado. Jantámos quase sempre fora, em restaurantes familiares, baratos e com cheiro a fritos. Uma noite, enjoada de hambúrgueres e batatas fritas, cozinhei coelho com ameixas para os meus filhos. Ficou muito bom, a Madalena repetiu duas vezes. Reli “Mrs. Dalloway” à luz fraca de um candeeiro de abajour amarelo. Não sei explicar o que há na escrita da Virgínia Woolf que tanto me prende. Já li análises, assisti a documentários, já li até uma tese de mestrado de uma rapariga brasileira sobre a estética feminista na sua obra. Conheço a essencialidade, a modernidade, a força imensa da sua escrita, mas, quando leio os seus livros (os romances, sobretudo "Rumo ao Farol"), todas as análises, estudos, comentários me parecem comezinhos, insuficientes. Falta qualquer coisa. Há um mistério secreto na escrita da Virgínia Woolf; suponho que nunca o descobrirei.
2014/08/06
41º movimento
R., que há alguns anos tenta levar-me para a cama, sabendo da minha preferência pelo período barroco, telefonou-me no início da semana a dizer que, apesar de esgotado há muito tempo, arranjava bilhetes para o “ Messias”. Gosto muito dessa obra, conheço-a bem, há qualquer coisa no 41º movimento que me emociona profundamente. A possibilidade de escutar ao vivo, numa interpretação da orquestra, a obra de Händel pareceu-me valer bem o esforço de tolerar durante algumas horas a presença de R., suas aproximações e olhares sedutores. Depois de reflectir um pouco, decidi aceitar o convite e pedi à Cila – prima solteira, vive sozinha com dois gatos e passa a vida a queixar-se que raramente vê os meus filhos - que ficasse com a prole.
Acontece que, no dia do concerto, ao levantar-me, senti uma espécie de ardor no estômago, um braseiro queimava-me por dentro e fazia-me engolir em seco. Passei o dia em agonia. O meu corpo parecia arder como se feito de uma matéria inflamável qualquer. Um fogo lambia-me o avesso. À hora de almoço, quando saí para ir comprar aipo à D. Rosa, afastei-me de um homem que fumava um enorme charuto por temer que o meu corpo se incendiasse. Durante a tarde, continuei a sentir esse ardor, cada vez maior, mas também uma náusea ligeira que me fez arrotar pelo menos quatro vezes. Fiz um chá de lúcia lima, muito perfumado, o mal-estar aliviou durante alguns minutos, mas voltou a piorar assim que olhei para o grande relógio da cozinha e me dei conta de que faltavam apenas duas horas para o concerto. Foi então que me passou pela cabeça que talvez me sentisse assim por causa do concerto. Sou bicho do mato, pouco dada a convívios e relações, aguento meia-hora, se tanto, de conversa de chacha. Percebi que iria passar três horas (três horas!) ao lado de R., homem afectado, intelectualmente frívolo, ridiculamente vaidoso, um palerma que cai na triste tentação de me seduzir com as suas camisetas Lacoste, os seus gestos cavalheirescos, as suas leituras de poesia e também uma quinta oitocentista em Penacova que herdou de um tio padre. (R., é bom que se explique, é um homem rico, fleumático, foi chefe de gabinete, secretário de estado, não chegou a ministro, mas agora vive de uma bela pensão de reforma, faz parte de um grupo de oração carismática e joga xadrez). Três horas ao lado de tal homem pareceu-me uma eternidade, um sacrifício, um castigo imerecido. Às oito da noite, pouco antes do concerto começar, já eu estava desesperada, a náusea tomou conta de mim e tive de ir vomitar. Voltei a sentar-me na sala e olhei em volta. Ao fixar as folhas da grande “samambaia” que o imperador baiano me ofereceu, percebi que não aguentava a companhia daquele homem durante tanto tempo. Simplesmente não aguentava. Liguei-lhe e, como de costume, a maternidade serviu-me de desculpa. “Desculpe R., mas não vou poder ir ao concerto. O Joaquim está cheio de febre”. R. é frívolo, mas não é burro. Percebeu que se tratava de uma desculpa mal-amanhada, como outras que tenho inventado para fugir do seu convívio, mas não deu parte de fraco. Desejou as rápidas melhoras do pequeno e, em jeito de provocação, prometeu que, para compensar, tentaria arranjar bilhetes para a “ Paixão segundo São Mateus”.
Poisei o telefone e respirei fundo. O ardor passou de imediato. Foi então que se escutou a campainha. Era a prima Cilinha. Vinha sorridente, um bonito bolo mármore nas mãos. Os miúdos vieram cumprimentá-la e receberam, com genuína alegria, os seus abraços e beijos. Fui magnânima. Não havia nenhuma razão para privar a Cilinha de estar três horas sozinha com os meus filhos, cuidando deles, brincado às mães. Arranjei-me para sair e disse-lhe que por volta da meia-noite estaria em casa. Percebi então que tinha três horas livres, três horas inteiras, só para mim, ao meu dispor, para fazer o que muito bem entendesse. Que fazer com tanto tempo? Não hesitei um minuto. Telefonei imediatamente ao Alexandre a dar-lhe conta de que tinha três horas livres e muita precisão de dar cansaço ao corpo. O Alexandre é um amante e tanto, intermitente é certo, mas raramente me deixa ficar mal. Ficara de ir às compras com a mãe, mas, daí a meia-hora, explicou, estaria à minha espera no Hotel Ibis da Praça de Espanha. Mal entrei no quarto, disse-me que gostava mais de me ver com o cabelo comprido e, sem demora, atirou-me para a cama. Fodemos durante duas horas e, como sempre acontece, foi bom. Acabámos exaustos, suados e peganhentos, o ambiente saturado a sexo. No descanso, já encaixada no braço do Alexandre, enquanto lhe cheirava os pêlos do peito, lembrei-me de R. A essa hora, enquanto eu descansava nos braços do amante intermitente, ainda devia estar sentado no renovado auditório da fundação a escutar o “Messias”. Talvez tamborilasse os dedos no braço da cadeira para marcar o compasso do 41º movimento.