2014/10/19

Sexta-feira

Custa-me levar o dia de trabalho até ao fim. Sinto uma desconcentração cada vez maior (o facto de não dormir uma noite seguida há muito tempo, talvez dois anos, não ajuda), mas sobretudo o que passou a ser-me intolerável é o entusiasmo dos meus colegas em relação ao mundo jurídico. Ontem, ao final do dia, os dois colegas do gabinete ao lado (competentes juristas, bons colegas) discutiam acaloradamente o teor de uma sentença. Os comentários sobre a impreparação de magistrados e advogados distraíram-me. Levantei os olhos do ecrã (tentava terminar uma contestação) e olhei fixamente a grande janela que dá para a empena lateral de um hotel de luxo e para um céu sempre triste. Suponho que o céu que os prisioneiros vêem através das grades seja igual. Fixei o canto da janela onde a madeira está apodrecida por causa da água que pinga nos dias de bátegas pesadas. Notei os desenhos da sujidade no vidro. Os comentários alegres dos meus colegas continuavam; quanto mais falavam maior a minha paralisia. Sei para onde me leva a paralisia que, por vezes, chega enquanto trabalho: um canto escuro, abafado, com cheiro a mofo. Para contrariar essa paralisia, peguei na gabardina e saí para a rua. O céu ameaçava com um horizonte escuro, o vento frio eriçou-me a pele. Respirei fundo e, aos poucos, senti o meu corpo ganhar de novo destreza, agilidade. Caminhei lentamente até à livraria, passei pela pequena janela do canário amarelo. Pedi um chá de menta ao livreiro (acho que se chama Carlos) e levei para a mesa o novo livro do José Luís Peixoto e também o da Felipa Martins. Não gostei nem de um nem de outro. Também folheei sem interesse o livro do Frederico Pedreira. Li durante quinze minutos, apenas o tempo necessário para o chá arrefecer. À saída, perguntei ao livreiro se tinham “O quarto de Jacob”. Ando a ler, há já algum tempo, o diário da V.W. Com calma e vagar, não tenho pressa, aliás, antecipo que sentirei um certo vazio quando acabar de o ler. Decidi ir lendo os romances à medida que Virgínia Woolf os vai escrevendo.  Estou a ler as entradas de 1922, ano em que Virgínia terminou “O quarto de Jacob” e, no seu espírito, como fiapos de luz, começam a delinear-se os contornos de “Mrs. Dalloway”. É muito interessante descobrir a extraordinária crítica literária que esta mulher foi. Sobre o “Ulisses”, escreveu: “Um livro ignorante e malcriado, é o que este livro me parece ser: o livro de um trabalhador autodidacta, e todos sabemos como eles são aflitivos, como eles são egoístas, insistentes, crus, impressionantes e em última análise nauseantes. Se se pode comer a carne cozinhada, porquê comer carne crua?”. Mas, confesso, o que mais gosto é de a acompanhar no seu dia-a-dia. No dia 7 de Julho, Virgínia arrancou três dentes e, no dia 3 de Agosto, passeando pelos campos de Richmond, encontrou uma colónia de cogumelos. 

2014/10/07

Aretha Franklin



(Comprei, por dois euros, o diário da Khaterine Mansfield, edição de 1944, tão bonita, colecção dirigida por António Ferro, prefácio de John Midleton Murry, seu companheiro. Enquanto tratava do jantar dos miúdos, escutei a Aretha Franklin e bebi dois copos de vinho tinto. Estou feliz.)

2014/10/06

Ontem

Sentada na sanita, estico o braço para abrir a porta do armário onde guardo cremes, loções, pensos higiénicos, escovas, os sabonetes de açafrão e sândalo que a minha mãe trouxe do mercado de Goa. Tiro um penso higiénico. Está dobrado em três, dentro de um rectângulo de plástico azul-escuro. É um penso bastante comprido, reforçado, com abas largas; quando o aproximo do nariz larga um leve cheiro asséptico. Há já alguns meses que tenho de usar estes pensos enormes. Passei a ter um fluxo abundante, hemorragias torrenciais, diluvianas, causadas, segundo me explicou a médica bailarina, por um mioma com três centímetros de diâmetro. Durante o duche, se estou menstruada, escorrem de mim grandes coágulos escuros, cor de amora, que se assemelham a lagartas e rapidamente desaparecem pelo ralo da banheira. Com um gesto brusco arranco o penso sujo das cuecas e enrolo-o no plástico azul-escuro.

Leio durante algum tempo, depois adormeço.

Acordo a meio da noite para ir comer (há cerca de dois anos que sofro desta estranha forma de parassónia; acordo três, quatro, cinco vezes durante a noite e, num estado semi-inconsciente, devoro alimentos calóricos de sabor excessivo: os cereais dos miúdos, a nutela dos miúdos, as bolachas dos miúdos). Ao abrir a luz reparo nos lençóis tingidos de vermelho. São várias manchas de um vermelho aberto, muito vivo. Fico durante alguns instantes a olhar para a cama, sem saber muito bem o que fazer. Parece que alguém entrou no quarto e, sem eu dar por isso, de forma eficaz e indolor, me esfaqueou várias vezes. Atordoada, apalpo o corpo à procura de uma qualquer ferida que justifique aquele sangue todo derramado nos lençóis brancos da minha cama. Só depois me lembro de que estou menstruada. Continuo a olhar para os lençóis da cama. Não sinto repulsa, nem nojo, nem sequer estranheza. Afinal, é apenas o meu sangue.

2014/10/02

Satyajit Ray / Kapurush



(Estava uma luz tão bonita quando saí do cinema. Anoitecia devagar.)

2014/10/01

Amor maternal

Há muitos lugares-comuns acerca da maternidade; a maior parte deles, por inércia ou simples cobardia, vai-se sedimentando até se tornar verdade absoluta. Nenhum desses equívocos é, por assim dizer, tão falso e absurdo como a imediata emergência do amor filial. É certo que muitas mulheres, com propensão para o drama, choram de emoção mal vislumbram o ser que lhes escorre das entranhas. Ainda os meninos, olhos inchados das conjuntivites neonatais, sonham com o aconchego nacarado do ventre materno, e já essas mulheres lhes chamam meu docinho, meu amorzinho, meu queridinho, amor da minha vida, como se, em vez de um filho, estivessem a chamar por um amante. Essas mulheres, apesar do ridículo a que se sujeitam, sossegam por cumprir o papel de mães dedicadas que lhes compete. A liberdade escapa-lhes, a lucidez também. Porque não se ama quem não se conhece. Um filho acabado de nascer, tal como o sentiu Maria, é um desconhecido. Ainda que uma excrescência solta do seu corpo, não deixa de ser um estranho que de repente invade a vida de uma mulher. Uma mãe precisa de tempo para se acostumar a um filho, mais tempo ainda para o amar. Muitas mulheres levam vários anos até finalmente sentirem amor a um filho. Outras nunca chegam a senti-lo.