O meu avô carpinteiro. A minha avó mondadeira. As velhas de lenço preto na cabeça, os montes pequenos e as casas feias. Eu, menina, encostada ao corpo morno da tia Dé, olhando, maravilhada, os postais da URSS. O meu pai, cheio de raiva, gritando comigo, batendo-me com o punho fechado na cabeça, sem suportar a minha traição. A dor da minha mãe. O José a beber uma cerveja pelo gargalo, a meter um arroto para dentro e a explicar-me a urgência de uma nova revolução. As noites passadas na Rua da Palma, no casarão da Rua da Palma, ébria, bêbada, trôpega, tentando esquecer a faculdade de direito. O Ricardo, na escadaria da biblioteca, a gozar o prato, a perguntar “Ó Ana, e então o Alexandre O'Neill?”. O Joaquim, batendo as teclas da psp, pedindo que volte a pôr o Charlatão. A Dá, hoje no desfile, de casaco cor-de-rosa, orvalhada pela chuva, etérea, olhando em redor e perguntando pela peça da Mila. Eu na multidão, vendo passar ao longe o velho da boina, imaginando-me ao lado do João Pedro, passeando de mãos dadas, com um cravo preso na lapela do casaco.