Acordei à uma da manhã para chorar. Despi-me e nua, sentada na cama, chorei.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2015/09/25
2015/09/24
Raiz africana
Enquanto o escuto, enquanto o observo, a perna sempre a tremer, pergunto-me muitas vezes “Mas é este o homem que amo?”. Com desapego, sabendo do amor que lhe tenho, fala-me das namoradas que teve depois de mim: uma que tinha uma podenga que largava pêlo, outra que vivia no Brasil, outra que gostava de fado, outra ainda que se alimentava só de rebentos e lavava os dentes com uma raiz africana. Fala-me dessas mulheres sem maldade, incapaz porém de perceber que, quando o faz, me faz sofrer. Entre o sofrimento e alguma desilusão, sei agora que o João me faz mal. Ao revelar-se destrói o homem que amo.
2015/09/23
Técnica
Marina voltou ao semáforo da Avenida EUA. Parece-me que apurou a técnica. Raramente deixa cair os malabares e atira-os agora com novas variações. Continuo a achá-la bonita. Tudo nela é redondo: os olhos, a boca, o rosto, as formas do corpo. Hoje, trazia uma gargantilha de prata (talvez fosse apenas uma imitação, mas tinha o brilho luminoso da prata) e, nos braços, várias fiadas de pulseiras coloridas.
Fitzroy Road
Na breve biografia que aparece na contracapa de “Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos”, como é hábito nos seus livros, refere-se que Sylvia Plath, suicidando-se em casa, com gás, teve o cuidado de proteger os filhos (o suicídio, para além de poético, é um bom trunfo, ajuda a vender um autor). Sempre me causou estranheza tal preocupação. Há qualquer coisa que não bate certo. Por que quis Sylvia proteger os filhos se, com a sua morte, causou a maior violência das suas vidas? Uma mulher que pensa na morte, que a deseja, no delírio próprio dos suicidas, nessa embriaguez que embaraça assim que a lucidez volta, se os tem, pensa nos filhos. Sabe que não há nada mais devastador para um filho do que a revelação do desejo de morte da própria mãe. Como sobrevive uma criança a esse abandono? Quase sempre, para o bem e para o mal, a maternidade impõe-se e tolhe a liberdade da mulher. A mulher hesita, recua, culpabiliza-se.
Os filhos salvam e, ao mesmo tempo, condenam a mãe suicida. Por sua vez, a mãe suicida, quando decide ficar, salva e, ao mesmo tempo, condena os seus filhos. Pode passar o resto da vida a ensaiar sorrisos, a fingir alegria e normalidade, pode até tentar transformar-se noutra mulher, libertando-se da angústia, do aborrecimento, do desespero, mas dificilmente conseguirá esconder o desejo de fuga que um dia sentiu. Haverá uma altura em que um olhar, uma frase, uma palavra, até um simples gesto, revelará a dimensão da sua loucura. Viva ou morta, a mãe suicida é o carrasco dos seus filhos. Faz-lhes mal vivendo, faz-lhes mal morrendo. Acho que uma mãe suicida nunca consegue proteger os seus filhos. É por isso que, por mais que reflicta, não consigo perceber a preocupação de Sylvia Plath. Na manhã de 11 de Fevereiro de 1963, vedou completamente o quarto dos filhos com toalhas molhadas, deixou leite e pão doce perto de suas camas, abriu as janelas do quarto. Nevava nessa manhã de Inverno. Fazia muito frio. Quando abriu a janela, Sylvia deve ter olhado por instantes a rua. Talvez tenha sentido o vento no rosto, nos cabelos, na curva do pescoço. Voltou para a cozinha, tomou vários comprimidos e deitou a cabeça sobre uma toalha no interior do forno, com o gás ligado.
2015/09/16
Soletrar
Primeiro dia de chuva. Atravessamos o bairro e, depressa, muito depressa, chegamos à beira-rio. Não se vê ninguém. Até aqueles que correm, detestáveis novos super-heróis, desapareceram. As águas, batidas pelo vento, estão muito agitadas. A neblina, de um branco sujo, limita o horizonte. Naquela zona do parque, quando há sol, vê-se o casario de Sacavém e da Bobadela. Nos dias mais claros, se focarmos o olhar, é mesmo possível ver o recorte do arvoredo na recta do cabo. Hoje, porém, com a chuva, a linha do horizonte diluiu-se, desapareceu. Entre o céu e a terra, entre o céu e a água, não se percebe o que começa ou acaba. A beira-rio, sempre ruidosa e alegre, transformou-se noutra paisagem, adquiriu uma beleza agreste, solitária, misteriosa. Caminhamos pelos relvados e rapidamente os nossos pés ficam molhados. O Joaquim apanha folhas e pedras que mete no bolso do impermeável. De tão feliz, em vez de andar, o meu filho galopa como um potrozinho.
No passadiço de madeira, no pontão junto da estátua da princesa, um rapaz vigia três canas de pesca. Quando nos vê, como se intuísse o nosso desejo de proximidade, faz um gesto para avançarmos. De uma caixa azul tira um casulo. Do casulo tira uma minhoca. Mais parece uma centopeia, tem a cabeça achatada, patinhas que se movem numa euforia que causa repulsa. O rapaz enfia a minhoca na ponta do anzol, fá-la deslizar pela curva do gancho, explica que tem de ficar assim, bem presa, caso contrário, os peixes serão capazes de a tirar e fugir em liberdade. O rapaz continua a falar com o Joaquim. Explica-lhe o seu ofício. Inclina-se agora sobre a protecção de metal e puxa um cesto de rede. Mostra a pescaria do dia. Dentro do cesto há dois peixes muito diferentes. Ainda estão vivos. O maior, esverdeado, assemelha-se a um tamboril. É feio: olhos esbugalhados, a pele lisa, barbatanas curtas, a cabeça enorme, desproporcionada em relação ao resto do corpo. “É um xarroco não é?” pergunto. O rapaz olha-me com espanto. Não conhece as minhas idiossincrasias: tivesse eu tempo e cabeça e aprenderia o nome de todas as árvores, de todas as flores, de todos os monstros que habitam as águas escuras e profundas do rio.
O outro peixe mexe-se no fundo do cesto. É bonito. O fole das guelras, de um vermelho escuro, muito intenso, faz-me lembrar as dálias que na minha infância cresciam no canteiro da vizinha Idalina. É um peixe magnífico, um peixe de luz. O seu corpo, coberto de escamas prateadas, luminosas, quase brancas, saltita, estremece com brandura. O rapaz tira-o do cesto e, com cuidado, coloca-o nas mãos do Joaquim. “Sabes como se chama? Tem um nome engraçado. Chama-se rabeta…” O rapaz ri. Enquanto aconchega a gola do casaco ao pescoço explica que uma rabeta é uma corvina pequena. O Joaquim continua a pegar no peixe prateado, mas, de súbito, os seus olhos ficam inquietos. A palpitação que sente nas mãos é, simultaneamente, um sinal de vida e de morte. Talvez o meu filho pressinta isso mesmo e por isso se apresse a colocar o peixe no cesto. Começa a trovejar. Caem pingos grossos, pesados, redondos. Despedimo-nos do rapaz. Aceleramos a passada. O vento, cada vez mais forte, vira o guarda-chuva do Joaquim que, assustado, o larga. Corremos para o apanhar. Voltamos a rir.
(À noite, quando lhe aconcheguei a roupa, falei-lhe ao ouvido: nunca te esqueças do passeio de hoje, do primeiro dia de chuva, do peixe nas tuas mãos, do sorriso do pescador, das palavras novas que aprendeste a soletrar.)
2015/09/11
Cheiro
Há dois meses que eu e o meu pai pouco ou nada falamos. No domingo, porém, por causa do aniversário do João, há almoço de família. É a primeira vez que nos voltamos a sentar todos à volta de uma mesa. Vou fazer feijoada. É barato, saboroso e dá pouco trabalho a fazer. Os miúdos mais pequenos vão odiar a minha escolha. Ralharão comigo, farão caretas engraçadas quando lhes disser o que é a comida. O Roberto e a Lurdes vão trazer o vinho, a Susana as sobremesas. Espero que nesse dia a minha mãe não trema muito das mãos, que espante ou pelo menos finja espantar os seus próprios demónios, que os seus olhos se alegrem com as brincadeiras dos netos. Avisei a tia Dé que não se esquecesse de trazer uma travessa de peixinhos da horta e também os livros da Elena Ferrante que lhe emprestei. Ninguém faz rissóis e peixinhos da horta como a tia Dé. Acabado o almoço, na altura do café, depois de os miúdos fugirem para o pátio, colocarei um cd do Charles Aznavour. Quando se começar a escutar o “ Il faut savoir”, o Manuel Ricardo fechará os olhos, cantará baixinho a canção e lembrar-se-á da sua mãe. Sentirei então uma felicidade muito pura e autêntica por a minha irmã ter encontrado um homem assim.
O meu pai deixou de me falar por causa de um texto que aqui escrevi: um texto duro, talvez desnecessariamente duro, mas no fundo apenas um texto escrito por uma filha que, por sentir nunca ter sido amada pelo pai, deseja sê-lo. Não deixa de ser estranho que um homem de oitenta anos, bastante conservador, não se sinta incomodado quando a filha escreve sobre bebedeiras solitárias, pornografia, masturbação, orgasmos, fodas em quartos de hotel e se ofenda quando essa mesma filha decide escrever sobre o amor (ou sobre a sua ausência). No domingo, quando o meu pai chegar, rosto fechado, o desprezo habitual tão evidente no olhar, cumprimentá-lo-ei como sempre faço. Beijá-lo-ei no rosto e farei uma festa nos seus cabelos crespos e ondulados. Nesse instante, quando os nossos corpos se aproximarem, aproveitarei para sentir o seu cheiro.
2015/09/10
Roseira da China
Para além da foxcrime, vejo agora o tlc. Passo horas a ver programas sobre anões, meninas com tiaras sobre lindos canudos de cabelo loiro, noivas ciganas, homens virgens de pintelhos já brancos, mulheres hediondamente obesas mas que, ainda assim, monstruosas, são amadas. Ontem, já tarde, vi um programa sobre uma mulher que injectou proteína de vaca nas mamas. Magra, velha, cheia de peles bambas, a mulher carrega duas exaltantes mamas do tamanho de melões pelas ruas feias de Los Angeles. Não leio e não escrevo. Passo os olhos pelo jornal, logo de manhã, sem interesse. Não tenho opinião sobre nada. A fotografia do menino afogado não me comoveu e o ruído sobre as eleições irrita-me, mas pouco. Na semana passada, depois de outra noite de fuga no estendal, desmarquei a consulta com o psiquiatra. Esta semana ainda não fugi para o estendal, mas voltei a desmarcar a consulta. Telefonei à Ana Paula, a amável recepcionista do consultório, pigarreei, e, num tom falso, numa voz que não era a minha, desculpei-me com os filhos. Sinto-me ausente, desligada de tudo e de todos, de mim própria, da minha vida. Já não sonho sequer. Sou uma assombração, uma sombra, um borrão de tinta, sou a raiva impotente, uma porta fechada, a gargalhada louca, o silêncio, o esplendor da mais triste miséria. Pudesse ser outra coisa qualquer e escolheria apenas ser os versos do poema: Vem subir a álea do jardim, Luriana Lurilee. A roseira da China floresce, uma abelha zumbe ali.