2016/05/05

Moto-serra

Quando a vi no quintal, cabo amarelo, lâminas aguçadas e dentadas, assustei-me. “Para que querem vocês uma moto-serra? Mete medo!”, perguntei à minha mãe. “Ora, Ana Clara! Uma moto-serra faz muita falta nesta casa!”, respondeu e, de chapelinho de palha na cabeça, continuou a apanhar as ervas que insistem em crescer em redor da camélia. A camélia é a grande frustração da minha mãe. Plantada há muitos anos, a estúpida da planta, como que querendo provocá-la, não ata nem desata, mantém-se pequena, torta, sem graça, tem apenas meia dúzia de folhas enceradas. Nem uma vez floriu. Voltei a olhar para a moto-serra pousada no escalracho. Toquei-lhe a medo como se, em vez de um objecto, de um ser vivo se tratasse, um cão, um leão, um tubarão, enfim um animal capaz de me surpreender com uma dentada violenta. Dei dois passos para o lado e imaginei-me com a moto-serra nas mãos. Que faria eu com aquele extraordinário objecto? Não seria capaz de cortar a cabeça de ninguém. Isso não. Infelizmente não há quem viva sem cabeça (é pena!) e descreio firmemente da pena de morte. Mas, se impune, desconfio que, conforme o grau de embirração e repulsa, a gente que eu cá sei, cortaria braços, pernas, pés, dedos, línguas, orelhas e outros pedúnculos. Também cortaria a pequena camélia da minha mãe e, no seu lugar, plantaria um diospireiro. Senti-me animada por uma certa selvajaria bucólica. Imaginei dióspiros maduros, de polpa doce, rebentando na minha boca. Imaginei também uma multidão de amputados, decepados, pernetas, manetas, castrados, descendo lentamente o monte do moinho. Dei mais dois passos e afastei-me da moto-serra.

(moto-serra é mais bonito do que motosserra.)