2016/06/20

Festival

Mexo constantemente no cabelo, atirando de um lado para o outro um longo cacho preto. O gesto não é inocente. Procuro cativar aqueles que me escutam, não só com as palavras, mas também com uma certa sensualidade que julgo ter. Trago um decote acentuado, as minhas pernas estão cruzadas, pintei os lábios de vermelho, escolhi uns sapatos clássicos. Como pode ser sensual o decote de um sapato. Tenho uma voz clara que, bem projectada, se escuta nas últimas cadeiras do auditório. Não escuto o que digo. Apesar da assertividade fingida, e preparada, do ar seguro, não tenho interesse nas palavras que se soltam da minha boca. A literatura, assim que se explica, torna-se desinteressante. Observo apenas os meus gestos. Pergunto-me se, na cama com o poeta, terei mexido do mesmo modo no cabelo, terei sido igualmente assertiva, segura.  Há algumas semanas, uma mulher perdeu-se na crónica do Lobo Antunes. Ninguém deu pela sua falta, nem o marido, nem o filho, nem o cão. Para que serve afinal uma mulher?