Foi uma alegria quando o sexto andar do prédio dos meus pais foi comprado. Finalmente o último apartamento seria ocupado. Acabava assim o corrupio de potenciais compradores, gente que entrava e saía, examinando cada recanto, mexendo em tudo, olhando-nos, seus potenciais vizinhos, com a mesma frieza com que olhavam os mármores da entrada e os alumínios dos caixilhos. O prédio podia por fim repousar na tranquila alegria de uma família completa. Soube-se logo que o apartamento fora comprado por um casal de professores aposentados. Tinham apenas um filho que acabara há pouco tempo o curso de medicina. As características do novo agregado familiar agradaram a toda a gente. Num prédio de funcionários públicos, donas de casa, militares de pequena patente, retornados, um casal de professores proporcionava uma certa decência que o exercício do professorado ainda gozava naquele tempo. Um jovem médico exerceria, por outro lado, boa influência nos miúdos do prédio. Feita a mudança, o casal instalou-se. Os professores aposentados eram muito educados, já o filho, o jovem médico, logo na sua primeira aparição, provocou nos habitantes do prédio um certo desconforto.
Esguio, seco como um ramo, de rosto pálido e comprido, o rapaz fazia lembrar um louva-a-deus. Tinha lábios finos, tensos. Os olhos, claros, eram bonitos. Vestia-se com uma certa informalidade moderna que muitos vizinhos confundiram com desmazelo. Usava o cabelo pelos ombros e trazia sempre uma mala a tiracolo. Movia-se com discrição. Parecia procurar as sombras para que ninguém o visse. O jovem médico, extravagante, tão silencioso, foi olhado com desconfiança. Até que um dia tudo se esclareceu: o rapaz afinal não era só médico. Também era bailarino. Fazia parte de uma companhia de dança clássica. Os habitantes do prédio inquietaram-se! Um bailarino, ainda que médico, não era uma influência saudável na juventude do prédio. Os rapazes mais velhos andavam quase todos na Afonso Domingos. Tinham o destino traçado. Esperava-os um futuro de sucesso e virilidade. Seriam engenheiros mecânicos, engenheiros civis, engenheiros químicos, engenheiros electrotécnicos. Se algum, mais sensível, não se sentisse atraído pelo mundo da engenharia, poderia ser sempre arquitecto. Um bailarino destoava daquele quotidiano de fundações sólidas e inabaláveis.
Já eu fiquei encantada. Por essa altura, influenciada pelo comunismo da minha tia, vibrava com os programas de televisão que glorificavam o socialismo soviético. Foi neste contexto, embalada nos braços da minha tia, que, pouco tempo antes, num documentário sobre a vida de Rodolf Nuriyev, descobrira os seus pés. Como boa aprendiza, não me interessei pela história da fuga do bailarino. Queria lá eu saber por que é que fugira da pátria amada e se enfiara no covil mais sujo do mundo! O que me impressionou, e para sempre se gravou na minha memória, foi a imagem dos seus pés: monstruosos, feiíssimos, calejados, totalmente deformados pelas longas horas de treino em pontas. Com as suas calosidades, os seus ossos corcundas, os metatarsos deslocados, as falanges e falangetas libertas da sua posição inicial, soltas numa amálgama de tecidos moles, eram uma imagem impressionante de sofrimento e perseverança. Pensei: se o tal Rodolf Nuriyev tinha pés deformados, também o meu vizinho bailarino os teria. Era um silogismo simples que permitia conclusões irrefutáveis. Os pés do jovem médico tornaram-se numa obsessão para mim. Precisava de os ver… Quando subia com o jovem médico no elevador, a primeira coisa que fazia era olhar para baixo. Ele trazia sempre os pés enfiados numas alpercatas vermelhas. Eu bem tentava perceber, através da lona, a forma dos seus pés. Mas nada. Nem um joanete, um aleijão, nem uma curva duvidosa se mostrava para me sossegar a curiosidade. Estava quase a perder a esperança quando finalmente lhe pude ver os pés. Certa manhã, saindo do prédio com a minha mãe, percebi que o jovem médico subia a rua em sentido contrário. Os pés vinham livres, enfiados nuns chinelos. Antecipei, com deleite, a sensação que iria experimentar. Aqueles pés iriam proporcionar-me um espectáculo maravilhoso de horror e aberração. Apressei o passo. Quando nos cruzámos, olhei descaradamente para os seus pés. Que desilusão! Eram grandes, normais, de dedos longos, sem qualquer interesse, nem um calinho se topava naquela pele macia, naqueles pés de deus grego. A normalidade daqueles pés pareceu-me grotesca, indignou-me profundamente.
O tempo passou. Passados alguns anos, sucedeu um episódio que novamente me trouxe à lembrança a banalidade dos pés do jovem médico. Estava perto do elevador. Esperava que a minha mãe chegasse com o correio para subirmos, quando, vinda da escuridão da garagem, surgiu uma mulher. Subiu connosco no elevador. Trazia o cabelo apanhado com muitos ganchos. Usava um vestido pingão às cornucópias, que parecia escorrer-lhe do corpo, escondendo formas e saliências. Calçava sandálias de couro e, por isso, pude ver-lhe os pés. Depressa percebi que conhecia aqueles pés. Por tudo aquilo que não eram, de tão normais e banais, aqueles pés tinham ficado gravados na minha memória. Eram os pés do jovem bailarino, só que estavam no corpo daquela mulher! Olhando para os pés, percebi que a mulher era parecida com o jovem médico: tinha os mesmos olhos transparentes, tristes. Quando saímos no terceiro andar, mal a porta se fechou, perguntei à minha mãe quem era aquela mulher que se apossara dos pés e do rosto do jovem médico. A minha mãe procurou a chave na mala, meteu-a na fechadura, abriu a porta. Perante o meu olhar inquisidor, como se falasse da coisa mais natural do mundo, explicou que o jovem médico fizera uma operação e se tornara numa mulher. Mandou-me fazer os trabalhos de casa e fugiu para a cozinha. Fiquei parada, no meio do corredor, na companhia dos deuses de sândalo, espantada com aquela revelação. Como podia um homem transformar-se em mulher?
O assunto foi esquecido. Calei as minhas dúvidas durante muito tempo. Anos mais tarde, percebi naturalmente o que acontecera. O rapaz do sexto esquerdo livrara-se de um corpo que não era seu. Redesenhara a sua intimidade, arrancara de si um pedúnculo de raízes fundas, mas podres. No seu lugar, crescera uma flor muito frágil. Mudara de sexo. Era um acto de profunda coragem que punha em causa as leis do mundo, de deus e do nosso prédio. Desejei que a metamorfose do seu corpo lhe trouxesse paz. O jovem médico, tornado mulher, deixaria de procurar as sombras. Foi o que pensei. Voltei a subir no elevador, muitas vezes, com a médica. Assisti ao seu envelhecimento. Passou a usar óculos. O cabelo ralo cola-se agora ao crânio, sem graça ou beleza. Parece trazer sempre o mesmo vestido pingão de cornucópias. Os pais morreram. Vive sozinha. Debruçada na janela da cozinha, onde gosto de observar a rua da minha infância, vejo-a chegar. Estaciona o carro no lugar onde o seu pai estacionava um Datsun azul. Tira sacos de compra. Movimenta-se com lentidão. Continua a procurar as sombras. Já não estranho o facto de um dia ter sido o jovem médico bailarino que fez tremer os alicerces do nosso mundo. Perdoei-lhe, há muito, o facto de ter uns pés normais, sem o grotesco encanto dos pés do Rudolf Nuriyev.