Os cuidados de higiene, a limpeza do lar, fazem parte da disciplina que Maria julga essencial para se viver com decência. Não conseguiria habitar uma casa mal varrida, pouco arejada, com bancadas de cozinha cheias de nódoas de gordura, assim como não conseguiria viver com um homem mal lavado, cabelos oleosos, unhas sujas, o suor de dias entranhado nas fibras da roupa. Dá por isso graças a Deus pelos hábitos de higiene do seu marido. O marido de Maria não é apenas asseado, é também meticuloso. Exerce a rotina com método e precisão, sem alterar procedimentos, dispensando a improvisação. Toma banho pela manhã, depois do pequeno-almoço. Desperta com um pequeno ronco na barriga, precisa de alimento mal acorda. Ainda de pijama, caminha lentamente até à cozinha, bebe uma chávena de café com leite e come duas torradas barradas com creme vegetal. Só depois, estômago confortado, se enfia na casa de banho. Escova os dentes antes e depois de dormir. Muda de meias, cuecas e camisa todos os dias. Corta as unhas com regularidade, as das mãos uma vez por semana, as dos pés de quinze em quinze dias. Nunca deixa unhas espalhadas pelo chão do quarto e apara frequentemente os pêlos das narinas e das orelhas com uma tesourinha retorcida que guarda num estojo de couro na gaveta da roupa interior. O marido também usa sempre o piaçaba para limpar a retrete. É sobretudo nesse gesto que Maria encontra razões para considerar inatacáveis os seus hábitos de higiene.
Homem de costumes enraizados, vai invariavelmente à casa de banho antes do jantar. É assim desde que o conhece. Muitas vezes, Maria anda entretida na cozinha a preparar o jantar, esquece-se de ir à casa de banho, vai aguentando a vontade enquanto prepara a comida e põe a mesa. A dada altura, sente a bexiga cheia, percorre o corredor numa aflição muito grande. Encontra a porta da casa de banho fechada, sinal de que o marido ainda lá está. Maria, apesar da aflição, nunca bate à porta, muito menos o tenta apressar. Deixa-se estar do outro lado da porta, pernas traçadas, olha em redor para se distrair, fixa-se nos ramalhetes do papel de parede, na consola da entrada cheia de fotografias do filho. Quando o marido sai, jornal debaixo do braço, olha-a com indiferença, como que a dizer “estás aqui?”. Maria não diz nada, apressa-se a entrar, fecha a porta, descruza as pernas com lentidão. Mal entra sente o cheiro que o marido lá deixou. É um cheiro que custa a morrer, nem as borrifadelas de brise que lança, uma mão no nariz, para evitar a náusea, a outra pressionando freneticamente a cápsula do ambientador, o conseguem disfarçar.
Sozinha na casa de banho, respirando apenas pela boca, Maria levanta o tampo da sanita, puxa para baixo as cuecas e as meias. Lentamente começa o cheiro a morrer, agoniza perante a concentrada volatilidade dos aromas a brisa marítima e jardins orientais. Espreita sempre antes de se sentar. Certo como o destino: a loiça sanitária está impecavelmente limpa. Apenas se nota a auréola ferrosa do rasto da descarga que a lixívia e outros abrasivos nunca foram capazes de apagar. Maria sabe que o marido, não podendo controlar o cheiro que o seu corpo liberta, procura amenizar a marca da sua passagem, não deixando vestígios, legando-lhe a retrete limpa, autoclismo descarregado, o pincel do piaçaba enfiado no recipiente de loiça. Sempre que topa com a brancura da sanita Maria sente que teve sorte com o companheiro que a vida escolheu para si. Quantos homens haverá como o seu, capazes de pouparem as mulheres ao espectáculo da miséria diária do seu corpo?