2007/09/30

Prédio

O prédio onde os meus pais moram, a pouco e pouco, começa a ser um prédio de viúvos e viúvas. A vizinha do 6º direito disfarça a solidão com copinhos de licor de café. O coronel do 1º direito esperou que a mulher morresse, tanto que demorou, para casar com uma loira de rugas fundas e voz nasalada. O Sr. Ribeiro passa os dias a caminho do supermercado. Vejo-o chegar, carregado de sacos. A D. Lúcia sempre que me apanha no elevador gaba-me a beleza do marido. Era um belo homem, era um grande homem, diz ela, enquanto eu baixo os olhos. O marido dela era muito pequeno, quase anão, mirrado, encolhido como um roedor. A D. Odete, que fez arranjos de costura a vida toda, educa os netos à medida que as filhas se divorciam e arranjam novos companheiros. Entristeço ao vê-los. Sou mais filha que mãe.

Dilema

De duas uma: ou deixo de fumar ou deixo de correr. O problema é que gosto de correr e gosto de fumar. A vida está cheia de decisões difíceis.

2007/09/28

Danado

(Esta noite sonhei com o Lobo Antunes. Ele olhava-me com merecido desprezo.)

2007/09/27

Chuinga

No quiosque da estação peço uma pastilha. Apetece-me uma chuinga. É assim que a minha mãe chamava, e continua a chamar, às pastilhas elásticas. Quando era pequena ficava a olhar-lhe para a boca e a pensar na estranheza da palavra que de lá fugia. Chuinga? Só mais tarde percebi a origem da palavra que, volta e meia, bailava na boca da minha mãe. Chewing-gum. Olho para as prateleiras das pastilhas. Uma panóplia de sabores. Ananás, azul explosivo, coca-cola, maçã, algodão doce, melão, morango, laranja, amora e por aí fora. Assusto-me com tanta variedade. Reparo, então, num daqueles boiões que antigamente se usavam nas mercearias para guardar rebuçados e caramelos. Está cheio de pastilhas, melhor dizendo, de chuingas maçadoras, de forma rectangular. Têm um rótulo pouco colorido, pouco apelativo. Estão definitivamente remetidas ao esquecimento. Ora, eu não gosto de discriminações. E nestas coisas sou sempre pelas minorias. Mesmo quando a minoria é imbecil, torpe, composta pelos proscritos, pela escumalha. É um defeito meu. Peço, por isso, à senhora do quiosque uma pastilha daquele frasco. Uma pastilha diferente da maioria alegre e explosiva de babulicious, gorilas e boomers. Desembrulho-a e meto-a à boca. Primeiro, estranho-lhe o sabor. Tem um sabor antigo, levemente decadente, que identifico depois. Sabe a circo, à feira popular, a Setúbal, aos gelados de cone que um velho espanhol, de olhar lascivo, vendia nos portões do ciclo preparatório.

2007/09/26

Umbigo

O umbigo é uma coisa muito feia. Acumula bocadinhos de cotão, cria crostas pequeninas e quando a gente enterra nele um dedo traz um cheiro sujo, levemente azedo. Nem os mais atentos conseguem mantê-lo limpo e asseado. É a cova que esconde o nosso corpo. É um ponto que se esquece. Faz lembrar a cratera de um vulcão. É uma costura. Um remate. Um ponto final cheio de interrogações.

Aninhas (lembrete)

Aninhas aplicava-se no engano, na dissimulação, no engodo, na traição. Não praticava o adultério com leviandade ou despropósito. Pelo contrário. Esforçava-se. Nunca desperdiçava oportunidades. Estava sempre atenta e disponível. Empenhava-se em iludir o marido como outras mulheres se empenham em ser boas esposas, boas mães, boas cozinheiras, boas profissionais. Quanto mais conhecia outros homens mais gostava do seu.

PSD

Há duas coisas que me atormentam no PSD: a primeira é o corte de cabelo dos seus barões, a segunda é a mediocridade dos seus candidatos a líder. Eu, confesso, até gostava de me empenhar na vida partidária, discutir, vestir a camisola, militar, participar no debate político, assumir, de uma vez por todas, depois de tantos anos de vagabundagem, que sou social-democrata. Não consigo. Acanho-me, envergonho-me. Nos dias que correm é-me mais fácil assumir a algidez do que a simpatia partidária.

2007/09/24

Barso Re

(gosto desta canção.)

Goa

Não sei explicar a noite. Não gosto da noite. Só as noites em Goa me trouxeram sossego e felicidade. Assim que o meu pai adormecia, corria a buscar uma cerveja ao frigorífico e fugia para o terraço. Arrastava uma cadeira para a beirinha do estendal, afastava as roupas tesas que a Caetaninha deixava estendidas pela manhã e acendia um cigarro. Esse era o instante preciso em que a noite se transformava. Tornava-se mais intensa, ficava com corpo de mulher e eu encostava-me nela. Passei as noites ali, no terraço, olhando a linha da estrada que leva ao Seminário de Rachol. Escutava os ruídos: pássaros, matilhas de cães passando nas várzeas, o vento afagando as folhas do tamarindo, chupando-lhe o azedo dos frutos, o sacolejar da cerveja dentro da garrafa, os deuses brincando junto do tulsi, a ventoinha no quarto do meu pai. Pelas frestas do telhado chegava-me, por vezes, o ressonar da tia Maria e os soluços do Cristo falante. Chora o Cristo falante noites inteiras porque tem saudades do tio Rosário. Eu sei que tem. À noite, o mundo reduzia-se aos seus sons e na sua penumbra só eu existia.

Murakami

A rapariga diz para o amigo que o seu escritor preferido é o Murakami. Fez, por causa dele, um curso de escrita criativa durante o Verão. Depois de o frequentar, diz, sente-se apta a escrever um romance e a tornar-se escritora. Eu ouço-a em silêncio e esbofeteio-a em silêncio. Sou muito discreta. Uso as luvas de silicone que trago sempre dentro de uma bolsinha juntamente com um penso higiénico. Nunca se sabe quando nos pode aparecer o período menstrual. Também nunca se sabe quando podemos dar de caras com um novo candidato a romancista. O melhor é prevenir e andar sempre com um par de luvas de silicone. É para não deixar rasto. Impressões digitais e coisas de género. Volto a sovar a rapariga que gosta do Murakami. Também lhe arranco vários tufos de cabelo. E vazo-lhe uma vista com o salto dos sapatos novos de camurça.

Praça do Comércio

Amanheci na Praça do Comércio. Uma praça fechada ao trânsito, por ser domingo, vazia de gente e de vida, com um palco triste lá ao canto, um balão de ar quente murcho e um carrinho de pipocas. Não há nada como prometer imbecilidades durante as campanhas eleitorais.

2007/09/22

Kate Bush - Wuthering Heights

(quando chega o Outono volto ao Monte dos Vendavais, livro com cheiro de urze.)

Anis

Mudei de mesa convencida de que o cheiro que me entrava pelas narinas, intenso e insuportavelmente doce, provinha da velha que, sentada na mesa de trás, bebia um galão pingado e comia um pastel de nata. As senhoras velhas têm muitas vezes cheiros assim, doces e intensos. Tomam banho em perfumes e águas-de-colónia das lojas chinesas. Usam roupas que cheiram a estrelas de anis. Sentada na outra ponta do café preparei-me para retomar a leitura do jornal. Preciso de ler pela manhã o jornal em sossego, sem distracções visuais ou olfactivas. Passado pouco tempo o cheiro voltou. Olhei em redor. Funguei. Farejei. Abri e fechei as minhas narinas caninas. Inalei o ar. Insultei baixinho a pobre senhora que, na outra ponta, continuava a comer o seu pastel de nata com lentidão. Desejei que lhe caísse a dentadura para dentro do copo de leite. Uma vingança por largar aquele cheiro nauseabundo de loja dos trezentos pelo café, um cheiro que começava a entrar-me no corpo, que já se colara à minha roupa e ao meu cabelo. Quando cheguei à página da necrologia percebi que era o jornal que largava aquele cheiro. Era. Fui à tabacaria reclamar. Exigi que me trocassem o jornal, que não o conseguia ler, que era uma vergonha venderem um jornal com um cheiro daqueles. A menina da tabacaria, muito recta, escutou-me em silêncio, mostrando-me as suas magníficas unhas de gel com brilhantes incrustados. Depois disse que não se trocavam jornais. Se fosse uma revista, ainda fechava os olhos, agora um jornal não podia aceitar. Peguei no jornal com as pontas dos dedos e sai da loja. Deitei-o fora no primeiro caixote do lixo que encontrei. Entrei no elevador que dá acesso ao parque de estacionamento para fugir daquele cheiro. Antes das portas se fecharem entrou a velha senhora que minutos antes eu fuzilara com o olhar no café. Sorriu-me, depois deu uma bufa ruidosa e saiu no menos dois.

Nadia Comaneci

O ginásio é antigo, de madeiras escuras, tectos altos com estuque trabalhado. Há retratos dos primeiros presidentes da colectividade pendurados nas paredes. Senhores gordos, com bigodes retorcidos e cabelo puxado com brilhantina. Em Cuba, imagino, deve ainda haver muitos ginásios como este, com cheiro de óleo de cedro. Só que, em vez de praças cheias de autocarros, hão-de dar para praças com jacarandás e rosas-da-china e mulheres velhas que vivem em prédios descarnados e usam medalhas com la virgen de la caridad. Ao fundo, um palco, guardado por reposteiros pesados de veludo cor-de-vinho, acumula o pó das memórias e dos mortos. Um grupo de meninos ensaia saltos do trampolim sobre o plinto. Outro grupo faz exercícios de tapete. Pinos. Rodas. Cambalhotas. Quatro janelas largas deixam entrar a luz serôdia do final do dia. É uma luz amarela que ameaça com trovoadas. Reparo nas argolas e nas barras paralelas, nos colchões já velhos, cansados de tantos saltos, tantas acrobacias. A minha filha, aninhada aos meus pés, calça as sapatilhas em silêncio. Não se amedronta por ser a sua primeira aula. Tem corpo de ginasta. É pequena e esguia. Depois de receber as indicações do professor avança para o fim da fila e espera a sua vez. Espanta-me o desembaraço dos meus filhos. Donde lhes vem a confiança e a calma para enfrentar o mundo e os outros? Duas meninas mais velhas falam com ela. Uma pega-a ao colo. A minha filha sorri. Quando chega a sua vez faz três cambalhotas seguidas. É o único exercício que sabe fazer. Depois arrebita o rabo e levanta os braços. Tal como lhe ensinei. Parece uma Nadia Comaneci pequenina, cabriolando no ginásio cubano que fica no Poço do Bispo.

(no y de hoje uma reportagem sobre as power mun, ou lá como é que lhes chamam, as mães bloguers, artesãs, informadas, licenciadas, pós-graduadas, citadinas, que gostam de tricotar cachecóis e de cozer pão. Odeio-as. O que não é de estranhar porque eu desprezo quase toda a gente. Com excepção da Rosa e da Ana, acho-as todos uma parolas, muito dadas ao retro, ao vintage, ao feltro, aos sabonetes ach brito, à amamentação de longa duração e a concertos de música alternativa para bebés.)

Pavão

Só os ingénuos acreditaram na reacção do pavão. As mãos postas em concha, o olhar para cima, como que a pedir perdão por ter marcado um golo em Alvalade. O C. Ronaldo está-se nas tintas para o Sporting e para os sportinguistas. Não o censuro. Eu também estou. Agora é claro como a água que aquela atitude foi encenada, foi pensada, foi desejada, foi estudada. Ficou bem nas primeiras páginas dos jornais. Vê-se logo que o tipo quis imitar o Rui Costa, quando, jogador do Fiorentina, chorou por ter marcado um golo ao Benfica. Só que o Rui Costa é o Rui Costa, nele tudo é genuíno e verdadeiro. Desde as malas Louis Vuitton até às lágrimas e às palavras. Os olhos dele são meigos e pingam o amor que tem pelo Benfica. Eu gosto do Rui Costa.

(também gosto do Petit, mas por razões completamente diferentes.)

Sócrates

Continuo a encontrar ratazanas do rio quando a noite cai. São sempre três e estão sempre no mesmo local. Já me lembrei que, se calhar, são sempre as mesmas ratazanas que, num gesto de cortesia, me querem cumprimentar. Se tivesse coragem aproximava-me das terríveis bichas e dizia-lhes assim “Em vez de me atazanarem os treinos ide para a zona ocidental da cidade. Lá atentai num homem de plástico, que parece quase humano, de boa figura, que corre sempre com dois seguranças. Quando o virdes, mordei-lhe as canelas com fúria, tasquinhai-lhe as carnes macias, que é para ver se perde aquele sorriso de tolo e deixa de fazer corridinhas para aparecer nos jornais.”

Kaczynski

Acreditem ou não, eu sei que parece anedota, mas a Polónia obrigou a UE a desistir do dia europeu contra a pena de morte. Assim se mede a força de um país. Continuará a existir um dia europeu para os vizinhos (é no dia 29 de Maio) mas não um dia europeu contra a pena de morte. Grandes gémeos Kaczynski. Assim é que é.

Kouchner

Andam, numa roda-viva, a tentar ler na entrevista de Kouchner, MNE da França, aquilo que o homem não disse. Ele não apelou à guerra contra o Irão, nem defendeu uma atitude belicista, de assumida agressividade unilateral, inspirada na política americana. Limitou-se a alertar para o perigo concreto que representa o Irão (só os tontos, muito tontos, desvalorizam esse facto) e num plano abstracto, a colocar a hipótese da guerra. A guerra ou a intervenção militar, como alguns preferem chamar-lhe, é uma hipótese que deve ser equacionada como qualquer outra. Mas, enfim, a esquerda estava à espreita. Era necessário, quanto antes, crucificar Kouchner, esse malandro traidor que cedeu aos encantos da direita populista (é como a esquerda, a chique e a moribunda, chama ao governo francês).

2007/09/18

Amanhecer (2)

Não sou capaz de me olhar nas vitrinas das lojas, nem nas vidraças das entradas dos prédios. Invejo cada pessoa que passa. Invejo a mulher de cabelos compridos, bem penteada, bem maquilhada, com cheiro de luxo. Desce a rua e leva pela mão uma menina feia, que usa sapatos azuis de fivela. Invejo também o homem, de fato escuro, que, ainda com o cabelo molhado, sai de um prédio que tem uma porta de ferro. Deve ser advogado, gestor, auditor, director de qualquer coisa. Também tem cara de dentista. Cruzo-me com duas mulheres de bata branca e lenços brancos. Falam alegremente. As palavras fogem-lhes, felizes, da boca. Entram num restaurante. Devem ser cozinheiras. Também gostava de trabalhar com as mãos. Não são umas mãos muito hábeis, as minhas, mas gostava que desempenhassem outra tarefa que não bater as teclas de um computador. Podia ser cozinheira. Eu gostava. Ou jardineira. Ou mulher-a-dias, usar um avental branco, trabalhar num apartamento de luxo para um casal de sucesso. Trabalhar nas obras, colocar tijolo, cimento, estucar, ladrilhar, rebocar, pintar. Gostava de acabar o dia com o corpo fisicamente cansado e saber porquê. Continuo a andar. Sinto que é tarde. Tarde de mais. Esta frase – é tarde de mais – é fatalista, tão pouco bonita; é frase de folhetins, frase comum nos romances cor-de-rosa. Que se lixe. É o que sinto. Olho para o viaduto da Avenida da República. Por baixo das estruturas de betão cor-de-rosa, os carros, que vão para Entrecampos, passam apressados. Quem dali saltar tem uma morte santa, imediata, aparatosa, quiçá até com direito a uma notícia pequena nas páginas do Correio da Manhã ou do 24 Horas. Ao chegar à minha rua, no semáforo, cruzo-me com caras, rostos, traços que reconheço dos meus dias. São as pessoas que, como eu, apanham o comboio das nove e seis. Entro no meu edifício. Passo o cartão pela máquina. Aparece o meu nome, escrito em letras de luz vermelha. O torniquete abre-se. Entro.

Amanhecer (1)

Chego cedo à estação. Apanho o comboio das oito e cinquenta. Vem cheio. No Oriente, esvazia-se de gente. Sento-me perto da janela. A mulher, sentada à minha frente, dorme profundamente. Tem a cabeça encostada ao vidro. Da boca sai-lhe um bafo morno que embacia o vidro. As pernas dela tocam as minhas. Tem os dois pés em cima do degrauzinho que fica por baixo da janela. As colunas do comboio vomitam baixinho uma música de feira. É bonita, distante, fantasmagórica até. Lembra-me outros tempos. Parece o som de um realejo. Um carrossel, uma pista de carrinhos de choque, maçãs caramelizadas, algodão doce, uma máquina de ler a sina, o poço da morte, o comboio fantasma, pipocas, um palhaço com balões coloridos, outro que faz malabarismos com bolas amarelas e vermelhas. Vejo o rio cinzento, espelho de transparências e luz. Marvila. Chelas. O cemitério do Alto de São João assoma-se do alto de uma colina. Ciprestes e lápides brancas. Ao lado, erguem-se uns prédios amarelos, novos, altos, feios. Parecem feitos de papelão. Se chover muito, se vier aí uma tempestade, daquelas que uivam e ribombam, o papelão ensopar-se-á e os prédios tornar-se-ão numa papa mole, castanha, que desaguará nas águas e servirá de alimento às tainhas e às medusas brancas do rio. Não me apetece ir trabalhar. Também não me apetece continuar dentro do comboio. Saio na estação anterior. Quero andar. Sempre gostei de andar. O frio da manhã morde-me mansamente as carnes do rosto. Ando rapidamente. Penso. Questiono-me, também. Não me compreendo. Os gestos, os silêncios, o enfado, as omissões, a posição inadequada, fazem de mim um ser estranho, alguém que propositadamente se coloca à margem da vida e dos outros.

Notas Soltas

1) A Ana Sousa Dias apresenta no RCP, pelo final da tarde, um programa que se chama Janela Aberta. A Ana, que encontro por vezes no talho e na charcutaria da D. Rosa a pedir cento e cinquenta gramas de queijo fatiado, não tem jeitinho nenhum para apresentar programas generalistas de rádio. 2) O Luis Filipe Borges tem qualquer coisa de Pedro Abrunhosa. Tento imaginar como são os olhos do Abrunhosa. Também tento imaginar como será o cabelo do rapaz da boina. Desconfio que ou é careca ou sofre de problema capilar grave, tipo dermatite seborreica. 3) A Fátima Lopes escreveu o seu segundo romance. As montras da Bertrand estão cheias de pirâmides do seu livro. No comboio, já apanhei duas senhoras, quase febris, em estado de alienação, bebendo as suas palavras. Folgo em saber-nos um país de tantos e tão bons romancistas. 4) A RTP está, ao que parece, a fazer uma retrospectiva dos filmes do Nanni Moretti. Não avisaram ninguém. No sábado, ia tendo uma síncope cardíaca quando percebi que perdi meia hora de um dos seus primeiros filmes “Bianca”. Não se faz. 5) Fui à bola ver o Benfica. O Benfica ganhou e o Rui Costa é o melhor jogador do mundo. Só tenho pena de não ter provado uma sandes de coirato. 6) Consta que os Led Zeppelin vão voltar. Odeio-os. Insisto: são uma prova inquestionável da inferioridade dos homens. Não conheço uma única mulher que goste dos tipos. 7) A Paula Moura Pinheiro voltou de férias. É, de longe, a mulher mais gira da televisão portuguesa. Se fosse homem ou lésbica apaixonava-me perdidamente por ela. É linda.

2007/09/16

Desabafo

Há blogs chatos. Insuportavelmente chatos. São os blogs-masturbatórios. Não tenho nada contra a masturbação. Aliás, pratico-a, com regularidade e sofisticação, desde que me conheço. Sou uma grande defensora da masturbação. A sério. Mas uma pessoa deve masturbar-se com recato. Os blogs-masturbatórios são insuportáveis porque, para além do infundado onanismo que suscitam em quem os escreve - escrevo bem, sou culto(a), atento(a), emprego palavras difíceis, leio tanto, escuto tanto, vejo tanto -, querem dar nas vistas. Fazem lembrar aqueles exibicionistas que andam nus de gabardina nos corredores do metro. Volta e meia abrem o casaco e, com espavento, mostram-se. A gente olha e reolha. Fecha os olhos e torna a abri-los. Porém, apesar do aparato, só vê uma pila murchinha, triste e insignificante.

Outono

Sento-me junto da vitrina do café e observo. Naquela janela, entre dois vasos de gerânios, um velho muito velho come devagar uma laranja e atira, descarado, as cascas para a rua. Em jeito de provocação, lança a quem passa um sorriso trocista. Ali, uma mulher, que fala ao telemóvel, passeia um cão branco, atarracado, de orelhas pontiagudas. Agacha-se o bicho mesmo em frente da entrada de uma loja de utilidades domésticas. Deixa uma espiral de fezes mole no meio do passeio. A dona continua a falar ao telemóvel. O animal vai agora mais ligeiro. Nota-se pela maneira como corre. Trota como se fosse um cavalinho anão e orgulhoso. Como são burros os animais. Quase tanto como a maior parte dos homens. Acolá, uma mulher traz o corpo cansado. Os pés inchados enfiados nuns chinelos de corda. A criança que se aninha no seu colo atrasa-lhe o passo. A mulher quer andar mais depressa para apanhar o autocarro que vem apinhado de gente. Não consegue. Sentam-se as duas, mãe e filha, no banco da paragem. Ali ficam. A mulher descansa por breves instantes. Sabe-lhe bem aquela paragem no dia. A menina, de mil tranças, come um chocolate e atira o papel para o chão. Aquelas pessoas, as que estão do lado de lá do vidro, sem saber, fazem-me companhia.

(Caíram os primeiros dias outoniços. Trouxeram trovoadas e chuvas.)

2007/09/15

José

Estava triste, tão triste, com vontade de morrer, depois escutei-o e renasci. Ouvi-lo é, em mim, infinitamente mais eficaz do que tomar um victan ou um xanax.

O peso dos dias

rotina: s. f., caminho já trilhado e sabido; hábito de fazer as mesmas coisas ou sempre da mesma maneira; fig., uso geral; prática constante; índole conservadora ou oposta ao progresso; aversão às inovações; norma estabelecida e fixada por escrito, existente em empresas e no funcionalismo público, que regula as relações departamentais e hierárquicas; fluxo de informação e actuações gerais a levar a cabo sempre que se apresenta determinada situação.
Pesa-me a rotina dos dias iguais. É como se os dias da minha vida tivessem sido produzidos em massa. Em fábricas assépticas, reluzentes. Todos com o mesmo peso, a mesma forma, o mesmo rótulo, as mesmas cores pardacentas. Inodoros, com um sabor indefinido, aguado. Pouco apetecíveis. Como uma chávena de chá morno. Não gosto de chá. Nada mesmo. Água quente sem sabor, sem cor, sem cheiro. Dias iguais. Sempre iguais. Iguais como os pacotes de leite, de farinha, de açúcar, que se enfileiram, aprumados, nas prateleiras dos supermercados. Pesam-me os silêncios, as ausências. Às vezes, tenho a sensação que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza. Uma espécie de tumor que cresce à medida que os dias passam iguais. E se um dia o bicho-tumor tomar conta de mim? E se um dia ele rebentar dentro de mim, espalhando, pelos meus órgãos, tecidos, artérias, pedaços putrefactos dos meus dias?

2007/09/14

O sabor da melancia

(é a minha fruta preferida.)

2007/09/13

Cimeira

O Ministério dos Negócios Estrangeiros anda preocupado com a cimeira UE-África. O primeiro-ministro inglês já avisou que não põe cá os pés se o presidente Mugabe vier. Faz bem. Este, por gostar de provocar as ocidentais democracias, quer vir. Os nossos diplomatas, para evitar embaraços, andam que nem umas baratas tontas a tentar convencer Angola e a África do Sul a congregar esforços para que, em substituição do presidente do Zimbabué, venha um qualquer ministro. Eduardo dos Santos, essa pérola negra, tão rara, tão polida, tão distinta, e Thabo Mbeki, já recusaram tal tarefa. Mugabe é um herói africano e os heróis nunca se afrontam. Eu leio e pasmo. Gostava de saber para que serve uma cimeira UE-África. Para que serve? Que propósitos se procuram alcançar? A dúvida não é só minha. Segundo o Público ainda não está definida a agenda e o conteúdo das discussões da dita cimeira. Dá a sensação que a presidência portuguesa faz finca-pé numa cimeira mas não sabe muito bem para que serve a mesma. Até ver só servirá para meia dúzia de ditadores africanos vir pingar o sangue dos seus povos nos copos de cristal dos banquetes que o estado português lhes servirá nos palácios da cidade. Entretanto, em Cabo-Verde a primeira universidade pública iniciou o segundo ano lectivo. Oferece mais de vinte cursos, grande parte de componente tecnológica. É uma boa notícia. A mim, que sou uma tonta, enche-me de esperança e alegria. É mais uma prova de que Cabo-Verde merece, tal como vem reclamando, uma parceria privilegiada com a UE. A presidência portuguesa, em vez de perder tempo a organizar cimeiras da treta com gente que não vale um chavo, devia trabalhar nesse sentido.

2007/09/12

Chico Buarque - Meu Caro Amigo

(a única coisa que me aborrece nesta canção é ele referir o nome da única mulher que foi sua, Marieta.)

Paris

Não demorou muito. A mana foi passar uns dias a Paris. Em vez de me trazer uma daquelas reproduções do louvre ou do museu d’orsey, muito deprimentes, que se encaixilham numa moldura barata e colocam por cima de uma mesinha com fotografias de família, trouxe-me duas ilustrações de Shiva. Numa das ilustrações Shiva está acompanhado por Ganesh e Kali, sua parceira preferida nos jogos sexuais (é o que diz num livro que consultei) e tem o tridente, o Ganges em forma de repuxo a nascer-lhe da cabeça, a pérfida serpente e vários falos de pedra à sua volta. Na glande dos ditos falos de pedra nascem flores cor-de-rosa. Parecem camélias. As ditas flores devem ter um significado qualquer importante. O esperma que representa o florescimento da vida. Qualquer disparate assim. Na outra ilustração, Shiva transfigura-se e assume a forma de um flautista jovem que, num bosque de um dourado verdejante, nos olha inocente e puro. Perguntei-lhe onde as encontrou, tão magnificas, tão coloridas, tão kitch. Explicou-me que, num dos seus passeios, por um qualquer bairro parisiense, tropeçou numa loja de místicos artefactos indianos e deu de caras com a família de divindades hindus. Olhei-a. Com espanto. Andei eu, por sugestão dela, no Martim Moniz, de saltos altos e meias de vidro, metida num lago de mijo e merda, para encontrar Shiva e ela, tão cosmopolita, tão cidadã do mundo, tão viajada, foi encontrá-lo num pacato bairro parisiense. É mesmo insolente. Insuportável.

Maria José

Esqueci-me de falar da Maria José e do seu assumido propósito de banir as lojas chinesas da Baixa. Não se esqueça a Maria José de também expulsar os africanos que param no largo de São Domingos, os mendigos que dormitam nas arcadas do Teatro Nacional e os drógados que pedincham na Rua Augusta. É preciso não deixar o trabalho pela metade e voltar a ter uma Baixa limpa, asseada, sorridente, ajuizada como qualquer mulher de bem.

Notas com bolor

1) No Expresso desta semana, a Clara Ferreira Alves, para além de dissertar sobre umas camisolas (?) feitas com a lã de umas cabrinhas que estão em vias de extinção, fala sobre o Rajastão. Remata com um daqueles lugares comuns que tanto aprecia: são poucos os sítios capazes de nos mudar e o Rajastão é um deles. Eu digo: bem aventurados os desgraçados que vivem na Brandoa e apanham o 49 para o Cacém. Bem aventurados os que só foram até Ayamonte comprar caramelos e galhetas espanhuelas. Bem aventurados os que sonham com uma viagem até Pipa, Porto-Galinhas, Cancun ou Varadero. Deles é o reino dos céus. Amem. 2) Consta que o governo português não receberá oficialmente o Dalai Lama, prémio Nobel da Paz. Em contrapartida, receberá, aquando da Cimeira EU-Africa o presidente do Zimbabué, o grande herói da luta anti-colonialista, o algoz que nos últimos anos se tem empenhado, perante a indiferença de quase todos, a destruir um país e um povo. Se eu fosse o Luis Amado fazia como a avestruz. Enfiava a cabeça na areia. Nunca mais de lá a tirava. 3) A Suiça andou entretida, antes do Verão, a discutir uma proposta que possibilitava o voto das crianças. Indignou-se meio mundo. Que as criancinhas não podem votar. Falta-lhes maturidade e discernimento. Não percebo por que não há-de votar o meu filho de nove anos e a sua trupe de ruidosos amigos se gente como o Cinha Jardim, o Cláudio Ramos e outros que tais o podem fazer.

Chefe Silva (3)

Para além de me avivar estas lembranças, o Chefe Silva é uma espécie de guardião de dias preciosos e distantes, dias em que nos maravilhávamos, sem saber, com o encanto das coisas simples. Um estufado de vaca era um estufado de vaca. Um bolo de leite era um bolo de leite. Uma sopa de peixe era uma sopa de peixe. Não havia artifícios ou engodos. São patéticas as revistas de culinária de hoje (que continuo a comprar por vício) e os nomes sofisticados que se utilizam. Queijo de cabra acamado em plataforma caramelizada de figos secos com espargos selvagens salteados. Trilogia de três chocolates com nougat de nozes e xarope de hortelã. Tudo tão pedante, tão insuportavelmente pedante. Os pratos de fusão, cheios de ervas italianas e frutos vermelhos, mirtilos, casis, framboesas, são um sinal evidente da vacuidade em que vivemos. É pelo sabor genuíno do peru recheado da tia Dé, pelo leveza do bolo pic-nic, tão doméstico nas nossas vidas, pela mousse de chocolate consistente que todas fazemos, pelas tardes frias de Inverno aquecidas pelo chá e pelos churros da minha mãe, por tantos outros sabores, por tantas outras lembranças, que este ano quase me senti tentada a ir à feira do livro.

Chefe Silva (2)

Uma vez, lembro-me agora, o meu irmão desafiou-me para fazer pastéis de nata. Ignorava, pobre aprendiz, a perícia de mãos que a massa folhada exige. Disse-lhe que sim e corremos a ver a receita nos livros do Chefe Silva. Passámos uma tarde na cozinha. Os pastéis ficaram comestíveis, mas com uma aparência distante da dos que se perfilam nas vitrinas das pastelarias. O meu irmão, porém, rejubilou com o nosso feito culinário. Obrigou toda a gente a provar os ditos e procurou conforto nos elogios forçados. Por fim, sorrindo, com uma solenidade que lhe é muito própria, que lhe está entranhada no corpo, rematou dizendo “Da próxima vez, vamos fazer bolas de Berlim!”. Nunca chegámos a fazê-las. Aliás, felizmente, nunca mais cozinhámos juntos. A cozinha, salvo honrosas excepções, como o Chefe Silva, é coisa para as mulheres. Fico enervada quando vejo homens na minha cozinha, quando me dão conselhos, quando opinam, faz assim, faz assado. A cozinha, mais do que delicadeza, ponderação, imaginação, exige esforço e os homens, é sabido, não estão para isso.

Chefe Silva (1)

Deixei há muito de ir à feira do livro. A feira deixou de ser a festa que era quando, na nossa meninice, trazíamos sacos cheios de livros da Enid Blyton e da Agatha Christie. Deixou há muito de ser a aventura que foi, durante a adolescência, quando roubava livrinhos das edições avante sobre a luta de classes na China de Deng ou sobre o Maio de 68. Depois, a idade aburguesou-me. Gosto de comprar livros, ainda que mais caros, em livrarias (apesar de Lisboa ser uma cidade de poucas e más livrarias). Por tudo isto, por preguiça sobretudo, deixei de ir à feira do livro. Este ano, porém, a minha irmã soube que em determinado dia o Chefe Silva estaria lá a autografar os seus livros. Ora, todas as mulheres da minha família reverenciam o Chefe Silva. O Chefe Silva faz parte das melhores memórias de minha infância. Passei tardes a folhear os volumes da teleculinária, apreciando os pudins, as gelatinas, as galantines, os estufados, os profiteroles, os biscoitos, os fritos de Natal. Menina ainda, de cabelo muito curto, suspirava com o bolo de noiva no número 29 do volume I. Um bolo em escada, coberto de glacé branco e florzinhas pequenas. Em cima, os noivos, de mãos dadas, tão bonitos, augúrio de felicidade. Passei outras tardes experimentando doces e compotas, licores, bolos e bolinhos, biscoitos.

2007/09/08

Annie Hall

Ontem, num dos muitos canais manhosos da Cabovisão, vi, de uma ponta à outra, um dos meus filmes preferidos: Annie Hall. Até aqui nada de estranho. Sou capaz de ver os mesmos filmes várias vezes. Assim como gosto de ler várias vezes os mesmos livros. Acontece que o filme estava dobrado em brasileiro. Ora, a minha obstinação pelo Brasil é notória e pública. No entanto, ouvir o Woody Allen, com voz de falsete, dizer “pôxa” em cada frase e a Diane Keaton, a maravilhosa Diane Keaton, com uma voz igual à das personagens dos filmes da Disney que são dobrados no Brasil, tipo a fada pequena e gorducha da Cinderela ou a empertigada Rainha das Flores da Alice no País das Maravilhas, é uma tortura. Não duvidem. É uma verdadeira tortura. No entanto, vá-se lá saber como e porquê, aguentei-a, estoicamente, até ao fim. Eu não ando bem. Decididamente não ando. É a loucura, a desfaçatez de espírito que, de mansinho, pé ante pé, se aproxima. Qualquer dia, ainda dou por mim, especada em frente do televisor, a ver um qualquer programa da Bárbara Guimarães. Credo. Acho que, mesmo louca, totalmente inerte e imbecil, não me sujeitaria a tamanho sofrimento.

Cornichons

Ando viciada em cornichons. Como seis a sete por dia. É um vício deplorável. Vou ao frigorífico. Abro o frasco, bojudo e largo, comprado, baratíssimo, no lidl, enfio as mãos dentro do vinagre frio e escolho dois ou três pepinos anões. Coloco-os em cima da bancada. Olho-os. Tão pequenos. Sinto um ligeiro desconforto por comê-los. Acontece-me o mesmo com as cenouras bebés, as petingas, os jaquinzinhos e também com as ervilhas tortas. Não consigo evitar. Comer uma petinga é o mesmo que “comer” uma criança. Comer um pepino anão é o mesmo que “comer” um deficiente. Tais inquietações depressa passam. Uma vez ultrapassado o complexo de culpa, enfio os cornichons na boca. Um de cada vez. Gosto do sabor do vinagre. É um sabor excessivo, mas limpo. Sempre gostei. Em miúda, esgueirava-me para dentro da despensa, esticava-me e, assim, em bicos de pés, procurava a garrafa do vinagre na segunda prateleira. Quando a encontrava, entre os mil e um frascos de especiarias da minha mãe, mesmo ao lado da garrafa de azeite, certificava-me de que ninguém me via. Principalmente, a tia Dé, sempre tão atenta, capaz de armar um pé de vento se encontrasse a sua sobrinha mais velha, ajuizada e exemplar, a beber vinagre. Se não visse ninguém, enfiava o gargalo da garrafa na boca e bebia goles pequeninos. Sentia-me reconfortada com aquele excesso de sabor. Tenho uma explicação de cariz sexual para a minha adição a pepinos anões, mas abstenho-me de a enunciar.

Avante

Gostava de ir à Festa do Avante. Tenho atracção pelo grotesco.

Kacsinsky

Os irmãos Kacsinsky são sinistros. A gente olha para eles e imagina-os assassinos impiedosos, de cutelo nas mãos, esventrando corpos de rapazes jovens, de nádegas firmes. Ou então, vestidos de cabedal e pregos, sendo vergastados por uma dominadora de saltos altos e vagina pelada. Uma coisa é certa. Os gémeos polacos são homens complexados, de falos minúsculos. Só assim se compreende as questiúnculas que, de forma sistemática, têm levantado na União Europeia, e que funcionam como entrave à pretendida consolidação europeia. Agora, imagine-se, tiveram a ousadia de se opor à proposta de instituir simbolicamente um dia europeu contra a pena de morte. Os dias europeus valem o que valem. Nada. Mas, caramba, há um dia europeu dos vizinhos e um dia europeu para uma Internet segura. Porque não há-de haver um dia europeu contra a pena de morte? Eu acho que os gémeos polacos gostam de brincar ao faz de conta. Faz de conta que somos importantes. Alguém devia dar-lhes um valente pontapé no rabo e recambiá-los para a aldeia onde nasceram.

(E, depois, há quem tenha medo, medinho, da entrada da Turquia na União Europeia. Como se os países que cá estão fossem todos modelos de virtude democrata.)

2007/09/05

Vanessa da Mata/Ben Harper

(o que gosto desta canção.)

Livros

Em resposta, direi que sou incapaz de enunciar os livros que não mudaram a minha vida. Que interesse tem isso? São tantos. Quase todos. Sou capaz, porém, de enunciar alguns dos livros que mudaram a minha vida. São livros-cinzéis. Esculpiram o que sou: 1) Rosa, minha irmã Rosa, Alice Vieira; 2) O Diário, Anne Frank: 3) Em Nome da Terra, Vergílio Ferreira; 4) Palomar, Italo Calvino; 5) Crime e Castigo, Dostoievski.

Anatomia de Grey

Acelero a rotina dos miúdos. Engrosso a voz. Tudo deitado. Rápido. Hoje a história é pequena e não há tempo para cantorias, nem para leitinhos, nem para conversas sobre isto e sobre aquilo. Eles estranham a minha pressa. A Dádá choraminga. Temo o pior. Dou-lhe um beijinho repenicado e prometo compensá-la com a história da sardinha Julieta. Ela acena a cabeça, aquiescendo. Respiro de alívio. Deito-me por fim em frente da televisão com o primeiro cigarro do dia na mão. Estou viciada na Anatomia de Grey. O mundo pode desabar que eu não perco um episódio. E tenho, admito, um fraquinho do Dr. Derek Sheperd. Tem ar de tudo menos de médico.

(A seguir, lá para a meia noite, passaram uma série sobre lésbicas. Parece que dá todos os dias. É a coisa mais deprimente e desinteressante que já vi. Uma catrefada de mulheres, todas boazonas, dadas às artes, claro está, lindas, magras e maquilhadas, soluçando traições, apregoando o desprezo dos malvados heterossexuais, vivendo entre elas, numa espécie de comuna de fufas contentinhas e orgulhosas por assumirem a sua orientação sexual. Não há pachorra. A série não é má. É péssima. Larguei logo um chorrilho de palavrões. Mais valia darem dois episódios da Anatomia de Grey.)

Madre Teresa

Por volta dos doze anos vi um documentário na televisão sobre a Madre Teresa e as Missionárias da Caridade. Ao vê-las percorrer as ruas da cidade-labirinto, tocando os moribundos, alimentando crianças, tratando dos que não têm nada nem ninguém, roendo a miséria da vida, chorei lágrimas sinceras de comoção. Nesse preciso instante decidi que quando crescesse havia de ser freira. Também eu queria dedicar a minha vida aos outros, levar-lhes alívio e alegria. Também eu queria alimentar, lavar, ajudar, ensinar, curar. Pareceu-me, naquela altura, que essa era a única maneira de viver a vida sem criar escaras. A minha vocação, porém, durou pouco tempo. Cedo percebi que nunca poderia ser freira. Era, e continuo a ser, de uma passividade absurda, incapaz de concretizar um projecto ou uma ideia. Depois, faltava-me um requisito essencial para o desempenho de tais funções: a fé. Não tenho fé. Nunca tive. E tenho pena de não a ter. É muito difícil viver sem fé. Vive-se com urgência e precipitação, com a inquieta sensação de desperdício da única oportunidade que temos para ser felizes. A fé faz falta. Por isso, volta e meia, procuro-a. Enfio a cabeça dentro do meu corpo e lanço um grito esganiçado lá para dentro. Ecoa a minha voz nos corredores das minhas pernas e dos meus braços, no salão do meu tronco, voa a minha voz até às clarabóias distantes por onde entram as sombras e a luz. Fico rouca de tanto chamar por ela. Ela, a fé, nunca me respondeu. Como se faz para ter fé? E como é possível ter fé num mundo tão amargo, de injustiça, frivolidade, sofrimento e miséria? Não consigo compreender. Não estranho, por isso, as dúvidas e inquietações que, durante 50 anos, a Madre Teresa sentiu. Difícil é ter fé. Falo de fé genuína, não da fé domingueira dos que abrem a boca para receber a hóstia sagrada e, depois, seguem vivendo regaladinhos e aliviados. Interessa-me pouco averiguar sobre se a fé da Madre Teresa era genuína ou não. Nem me interessa saber se aquilo que fez, durante a vida, foi por causa da fé. Só me interessa saber que o fez. E continuar a tê-la como exemplo.

Silêncio

Apetece-me o silêncio. Mas o silêncio é um bicho raro, em vias de extinção, não se encontra em sítio algum. Está fora de moda. O dia está cheio de ruído. Letras que copulam, furiosas, até formarem sílabas, sílabas que formam palavras, palavras que constroem espirais de frases, frases que alicerçam diálogos. Tamanho desperdício de palavras, escritas e faladas, desespera-me. As palavras são como a água. Como as jazidas de petróleo, urânio, carvão. Meios escassos não se desperdiçam. Sempre ouvi dizer. Gastamos tanto as palavras que elas correm o risco de perder o seu significado. É no silêncio e na ausência que as pessoas se encontram. Mas a noite também não traz silêncio. Vem com o frenesim dos pássaros nocturnos. Piam as aves em estranhas sinfonias, batem as asas, espalham o pó das árvores sobre o mundo. A noite vem com os murmúrios do desejo alheio. Quero-te. Abraça-me. Toca-me. Vem com o desaguar manso das lágrimas das mulheres traídas nas almofadas de poliéster. Vem com o barulho pesada das páginas que volto. Vem com o cri-cri dos grilos que habitam o jardim. Vem com os ruídos cansados das entranhas deste prédio. E com as gargalhadinhas lépidas das meninas dos anúncios de telemóveis que vivem nos sonhos dos homens. A noite é malvada. Má. Má. Má. Traz os ruídos dos sonhos. Os sonhos, os meus, com escadarias de musgo, corredores sombrios, palácios de papelão, cansam-me. Dão cabo de mim. Preciso, com a urgência tola dos tolos, de silêncio. Não o encontro.

(Voltei sem vontade de escrever. Os textos das últimas semanas são, quase todos, textos antigos, de outros diários, de outros cadernos, de outros blogs. Fica o desnecessário esclarecimento. Para que não se estranhe o silêncio quando ele, por fim, chegar.)

Mentol

Gosto de música. Oiço todo o tipo de música. Boa e má. Só não oiço música clássica. Mas já fiz um esforço para gostar. Quando andava na faculdade cheguei mesmo a ir a dois concertos na Gulbenkian, arrastada por um colega, redondo, ufano e pretensioso, que andava a tentar impressionar-me com os seus interesses intelectuais e elitistas. Se me conhecesse um bocadinho melhor, saberia que me impressionaria bem mais um convite para passar uma noite no Ritz Club, a dançar mornas e coladeras, ou se me tivesse oferecido um disco do Travadinha ou do Tito Paris. Durante o concerto, em vez de ficar quietinho na cadeira, como a imponência da música requeria, pôs-se a abanar a cabecinha e a bater os dedos gordos na cadeira para me dar a entender que conhecia bem a partitura. Ao terceiro convite tive que lhe dizer que não aguentaria outra investida ao mundo da música clássica. Expliquei-lhe que o problema era meu, que os meus ouvidos, infelizmente, eram incapazes de se deleitar com tais acordes. Que gostava de coisas banais e comezinhas. Ele não desistiu e, em alternativa, sabendo que eu gostava de cinema, convidou-me para ir ver o Imperdoável, do Clint Eastwood. Foi pior a emenda que o soneto. Antes de entrarmos para a sala, reconhecendo a sua gula, comprou um cartuxo de rebuçados de mentol. Quando nos sentámos, ofereceu-me um. Um mísero rebuçado. Depois, para meu espanto, comeu os outros todos de enfiada, fazendo um ruído ensurdecedor. Cada vez que comia um rebuçado, dava duas ou três chupadelas ruidosas, quase cavalares. Em seguida, utilizando todas as capacidades que os seus caninos lhe permitiam, trincava-os. Dilacerava-os, mastigava-os, deixando no ar um cheiro enjoativo a mentol. Quando o filme acabou, reparei que tinha a língua verde, coisa que me causou uma agonia imensa. Continuámos a ver-nos depois de terminar o curso. Ainda chegámos a almoçar algumas vezes. Ele, entretanto, tornara-se - na postura, no aspecto, na maneira com estava e como falava - num verdadeiro senhor doutor, coisa na qual eu não me tornara. Isso causava-lhe um certo incómodo. Aliás, lembro-me que, num desses almoços, teve a distinta lata de fazer um reparo à canadiana cinzenta, coçada, que eu levava vestida. Disse-me que já conhecia aquele casaco da faculdade e que o achava inadequado ao meu novo estatuto. Ele, pelo contrário, assumia, com empenho e alegria, o seu novo estatuto. Tinha um Alfa-Romeu preto e levava-me sempre a restaurante caros, cheios de homens engravatados e de mulheres com madeixas e nuances no cabelo. Passava os almoços a gabar-se de como era um profissional respeitado e de como todas as empresas o queriam para director de qualquer coisa. Comia com a boca aberta. Uma vez chegou mesmo a dizer-me quanto ganhava e a perguntar-me quanto é que eu, jurista de um instituto público, recebia no final do mês. Eu, atordoada com tal pergunta, disse-lhe. Olhou-me com um ar misericordioso, como quem diz, coitadinha. Tanta coisa, tanta merda, mas a verdade é que, no fim, dividíamos sempre a conta. Nunca mais lhe respondi aos convites. Deixei de lhe falar. Nesse dia, decidi que não voltaria a fazer fretes. Que não voltaria a aturar gente que não me diz nada. Gente que me é insuportável. E não aturo.

Martim Moniz (Buda)

Perguntei, então, ao senhor de uma das lojas se não tinha ilustrações de deuses indianos. Olhou-me com desdém como quem diz para que raio queres tu tal coisa, não te armes ao pingarelho, deves ser uma dessas tontas que renegam as heranças ancestrais. Depois de me olhar de alto a baixo, disse-me que divindades hindus não tinha, mas que, em compensação, tinha um buda. E apontou para um monstruoso buda, esférico, com ar maléfico e assustador. Saí da loja furiosa com a mana. Ainda por cima, à saída da loja, deparei com o corredor alagado de mijo. Aparentemente, uma das casas de banho do centro estava entupida e, por isso, uma água acastanhada inundava os corredores. Todavia, nenhum dos habituais frequentadores do centro parecia preocupado. Uma senhora chinesa continuou sentada à porta da sua loja, como se os dejectos dos outros não estivessem a dançar-lhe por baixo dos pés. Já eu fugi a sete pés. O cheiro a merda era de tal ordem que ainda o sinto. Mas, malograda a busca, continuo a desejar que Shiva habite a minha casa.

Martim Moniz (Shiva)

Decidi que quero uma imagem de Shiva em casa. Entre outras coisas, Shiva é o deus da destruição. E não se menospreze o poder da destruição. Só depois de se destruir se pode voltar a construir. Perguntei à mana onde é que nesta cidade podia encontrar Shiva. No Martim Moniz, é óbvio, disse ela com aquele ar insolente, de criança mimada. Pedi-lhe que me acompanhasse na busca. Que não podia, que tinha coisas a fazer. Resolvi, por isso, procurá-lo sozinha. Desci ao centro comercial da Mouraria, sob o olhar atento dos homens, de todas as raças e feitios, que se amontoam na escadaria central. Nas lojas dos meus patrícios - é como o meu pai chama aos indianos, a todos, mesmo que sejam siks de turbantes cor de açafrão - entre bugigangas, penduricalhos, lantejoulas, especiarias, cachecóis, lenços, procurei Shiva. Em vão. Nada. Nenhum sinal. Nem a serpente, nem o tridente, nem o rio que lhe nasce na cabeça, nem o objecto fálico que o costuma acompanhar e cujo nome não recordo.