Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
Women´s Running
E, agora, vou-me embora, que se faz tarde. Levo os miúdos, bocadinhos do meu corpo, os Women´s Running para correr de Colva a Benaulim, um caderno em branco e os cds do José Afonso para enfurecer o meu pai brâmane. Levo tudo o que preciso. Volto em Janeiro.
Baquelite
Instadas a se pronunciar sobre as qualidades que apreciam nos homens, dizem as mulheres que não lhes interessa o aspecto, nem a situação profissional, nem as habilitações literárias, muito menos a situação financeira. O que procuram nos homens, dizem elas, é o sentido de humor. Oiço-as e invejo a frequência com que se recorre aos poletões de fuzilamento na China. Rá-tá-tá-tá-tá, uma rajada de metralhadora, rápida e furiosa, e um mar de corpos mortos aos meus pés, o silicone e as tripas escorrendo pelos orifícios das balas. Adiante. Procuro nos blogs aquilo que as mulheres de baquelite procuram nos homens: sentido de humor. Porque não o tenho. Sou sisuda. Cronicamente triste. Considero de uma boçalidade primitiva o riso fácil, a gargalhada alarve. O Irmão Lúcia, de frases curtas e ilustrações mordazes, com um humor simples, fez-me rir muitas vezes ao longo deste ano. É, por isso, o meu blog de eleição para o ano que termina.
2007/12/11
Circo
Comprei duas vezes a revista Atlântico. O giro é que, apesar de se armar noutra coisa qualquer, é uma revista fiel aos valores tradicionais. Os homens tratam dos assuntos sérios. Política e coisas assim. As mulheres, duas ou três que por lá andam, escrevem umas coisitas sobre a vida mundana. Blogues, espectáculos, filmes, relações e coisas assim. E os homens atlânticos aplaudem-nas como cãezinhos, neste caso cadelinhas, amestradas que brilham com os seus truques de circo. Bravo.
Led Zeppelin
Gostar dos Led Zeppelin é um sinal da inferioridade masculina. Não conheço uma mulher que goste genuinamente de tal banda. Mas já vi, com estes olhos que a terra há-de comer, o meu cunhado, um advogado pacato e risonho, pouco dado a rodopios e meneios de anca, na pista do Tóquio, sóbrio, mas completamente tresloucado, a dançar um daqueles solos de guitarra medonhos que duram cinco minutos. Uma vergonha.
(Estou a repetir-me. Eu sei. Mas há coisas que não podem ser esquecidas e a inferioridade masculina, baseada no facto de gostarem dos Led Zeppelin, é uma delas.)
(Estou a repetir-me. Eu sei. Mas há coisas que não podem ser esquecidas e a inferioridade masculina, baseada no facto de gostarem dos Led Zeppelin, é uma delas.)
Chanceler
Por influência das análises da Teresa de Sousa e dos elogios matinais da Ana Gomes estou determinada a tornar-me numa admiradora incondicional da chanceler Ângela Merkel. Representa, em muitos aspectos, uma direita progressista, que se marimba nos tiques atávicos das direitas tradicionais, é capaz de denunciar a farsa de Putin e de arreliar a China e os líderes africanos que vieram passear as esposas aos centros comerciais de Lisboa. Por outro lado, a chanceler não se presta às momices do Senhor Sarkozy que já tomou de ponta a sua secretária de estado Rama Yade (a tal de origem senegalesa que fica bem na fotografia de um governo que se quer mostrar tolerante), por esta denunciar as negociatas da França com a Líbia. Abreviando, suspeito que, cada vez mais, o mundo é das mulheres. Os homens, para bem da humanidade, estão em vias de extinção.
2007/12/08
2007/12/07
Voz amiga
Preparam-se para, a título experimental, criar um cartão de emergência para os suicidas ou potenciais suicidas. Do tal cartão consta uma lista de sítios e telefones a que se pode recorrer nos momentos de crise. Serve o cartão, também, para etiquetar os suicidas perante o sistema nacional de saúde. Podem, se tiverem o tal cartão, beneficiar de atendimento prioritário em consultas de psiquiatria e afins. Não represento nenhuma confraria de suicidas nem nenhuma associação de suicidas anónimos, mas acho que a medida tresanda. As linhas de telefone de ajuda só têm estafermos do outro lado. Desconfio que a maior parte deles tem uma vida tão desolada e triste que se suicida em catadupa. Quanto aos psiquiatras do sistema nacional de saúde estão, quase todos, mais interessados em despachar rapidamente os suicidas falhados que chegam às urgências dos hospitais públicos. Querem que a manhã passe veloz para correrem aos consultórios privados, onde há divãs de design, empregadas solícitas e telas da Armanda Passos penduradas nas paredes.
(Ainda não me tinha sentado na cadeira, já o médico me estava a perguntar se queria ser internada no Júlio de Matos. Disse-lhe que não e expliquei-lhe que dispensava o estigma. Nunca hei-de esquecer a palavra que utilizei. Estigma. Usada naquela ocasião, com o meu corpo tão presente, eu que não o queria, achei-a insuportavelmente pretensiosa e despropositada.)
(Ainda não me tinha sentado na cadeira, já o médico me estava a perguntar se queria ser internada no Júlio de Matos. Disse-lhe que não e expliquei-lhe que dispensava o estigma. Nunca hei-de esquecer a palavra que utilizei. Estigma. Usada naquela ocasião, com o meu corpo tão presente, eu que não o queria, achei-a insuportavelmente pretensiosa e despropositada.)
2007/12/06
Cimeira
Queria ter opinião sobre a cimeira que se avizinha. Sobre a tenda do Kadhafi. Sobre o Mugabe, feito bode expiatório. Sobre os chefes de estado europeus que não virão. Sobre os gastos que Portugal vai suportar por organizar uma cimeira que não serve para nada. Sobre os temas que vão ser discutidos. E os que, nem que cristo desça da cruz, em caso algum poderão abordados. Sobre a carta dos escritores. Sobre o J.M. Coetze, que a assinou, que conhece bem África e é dos autores que mais gosto de ler. Sobre o paternalismo com que certa esquerda sempre fala de África. O paternalismo é a forma mais infame de racismo. Queria ter opinião sobre estas questões todas. Não tenho. É assunto que não me interessa mesmo nada.
Bola de espelhos
Descobri que a rainha de copas, para além de trabalhar no mesmo edifício que eu, é minha colega de ginásio. Está cada vez mais suína. Desconfio que já não fala. Só grunhe. Tem umas mamas imensas que fazem lembrar badalos, os pináculos gordos das basílicas moscovitas. Cada vez que salta, as mamas batem-lhe no queixo. O Adelino, esse, mudou de indumentária. Usa agora uns calções de licra muito justos e amarelos que evidenciam a fragilidade do seu corpo. As pernas e as axilas continuam impecavelmente depiladas. Como invejo o brio depilatório do Adelino! E o novo professor, que não é romeno, nem moldavo, nem ucraniano, tem um molar de ouro e um brilhante num canino. Cada vez que arreganha a boca, um brilho de pechisbeque ilumina o ginásio como uma bola de espelhos iluminando uma discoteca de província.
(Uma mulher quer concentrar-se nos agachamentos e não consegue.)
(Uma mulher quer concentrar-se nos agachamentos e não consegue.)
2007/12/05
Felicidade
Trago ao pescoço um lenço de lã preto, velho, que herdei da minha avó Felicidade. É um dos lenços que ela costumava usar na cabeça. Aconchega-me o peito, esconde o decote. Gosto de o levar ao nariz e procurar, em vão, resquícios mornos do cheiro dela. Toco no lenço e lembro que, durante a adolescência, tive vergonha da minha avó, do seu ar provinciano, do seu lenço de luto, sobretudo, das suas mãos. Mãos de bruxa, mãos em garra, nodosas, ásperas, mãos de terra, de tanto e tanto que passou. Saber-me assim, ainda que num passado distante, é coisa que dói. Queria, na altura, uma avó da Avenida de Roma, igual às das minhas amigas, com cabelos armados pintados de azul e cãezinhos de companhia no regaço. Não queria aquela. Que nunca lera um livro. Nem uma revista. Que não sabia sequer escrever o seu nome. Hoje, não sei porquê, veio-me uma saudade grande dela. Da avó que cantava canções que falavam da lua, das giestas da serra, do alandroal. Da avó que contava histórias de bandidos e animais fabulosos. Da avó que sabia jogar ao jangro, fazer flautas de caninhas, chifres de lenços e bonecas de pano, esguias, muito feias e imperfeitas.
2007/12/03
Café da manhã
O Sr. Zé não sabe preparar meias de leite. Chegam sempre mornas, demasiado escuras, com gosto de remédio, de desinfectante, de pozinho de farmácia. Mas sabe tudo sobre vindimas e pinhais. Esta manhã, como se me confiasse um segredo, explicou-me que Dezembro é o seu mês preferido, não pelo Natal, nem pelo menino Jesus nas palhinhas deitado, que lhe diz pouco, mas por ser tempo de apanhar medronhos selvagens. O Sr. Domingos não sabe fazer torradas. Encharca-as de manteiga, os pingos de gordura untam o jornal logo pela manhã. Mas sabe correr. Corre como uma impala negra, uma estatueta articulada de ébano, o corpo muito direito, as pernas longas, a passada firme. É muito mais velho do que parece. À segunda-feira avisa-me do calendário das provas e insiste que eu participe. Eu nunca participo.
(Sou capaz de ser extraordinariamente amável para as pessoas de quem gosto.)
2007/12/02
Boneca
Helmer: Why, Nora, what a thing to say!
Nora: Yes, it is so, Torvald. While I was at home with father he used to tell me all his opinions and I held the same opinions. If I had others I concealed them, because he would not have liked it. He used to call me his doll child, and play with me as I played with my dolls. Then I came to live in your house. I mean I passed from father's hands into yours. You settled everything according to your taste; and I got the same tastes as you; or I pretended to. I don't know which--both ways perhaps. When I look back on it now, I seem to have been living here like a beggar, from hand to mouth. I lived by performing tricks for you, Torvald. But you would have it so. You and father have done me a great wrong. It's your fault that my life has been wasted. . .
Helmer: It's exasperating! Can you forsake your holiest duties in this way?
Nora: What do you call my holiest duties?
Helmer: Do you ask me that? Your duties to your husband and children.
Nora: I have other duties equally sacred.
Helmer: Impossible! What duties do you mean?
Nora: My duties toward myself.
Helmer: Before all else you are a wife and a mother.
Nora: That I no longer believe. I think that before all else I am a human being, just as much as you are--or, at least, I will try to become one. I know that most people agree with you, Torvald, and that they say so in books. But henceforth I can't be satisfied with what most people say, and what is in books. I must think things out for myself and try to get clear about them. I had been living here these eight years with a strange man, and had borne him three children. Oh! I can't bear to think of it. I could tear myself to pieces!I can't spend the night in a strange man's house.
Fui ver “Boneca”, adaptação do Nuno Cardoso do texto de Ibsen. Mais uma vez chorei. Estou velha. Agora dá-me para chorar no teatro e no cinema, eu que nunca verti uma lágrima em público, que sempre tive a decência espartana de saber chorar sozinha e em silêncio. Para não incomodar ninguém. A cena final, porém, desconcertou-me. No final, não é Nora quem fala, não é ela que abandona o lar, o marido, os filhos, a maravilhosa felicidade doméstica. De onde lhe vem a coragem e a lucidez? A personagem, parece, parece-me, dá lugar ao autor. É Ibsen quem nos fala através dela. É ele que nos mostra um caminho, uma alternativa. Nora continua com Torvald, na sua casa de bonecas, obediente e feliz, um pardalito tonto, uma máscara que se enterrou para sempre na carne.
2007/12/01
Minotauro
Vão andar descalços pelo quintal. Comer com as mãos. Aprender a fazer bolinhas de arroz e metê-las à boca depois de mergulhadas em molhos de mil cores. Vão ver os cogumelos gigantes do espaço para cerimónias, casamentos e baptizados, Royal Paradise é como se chama, do primo Franky. Vão assistir à missa em concanim, espreitar as pulseiras de ouro das mulheres e os cabelos perfumados de jasmim. Vão conhecer a fábrica de gelo. Vão procurar o minotauro no mercado de Margão e fugir das matilhas de cães sarnosos que rondam a cidade. Vão meter os pés nos arrozais, onde há cobras e outros bichos. Vão descobrir que os macacos se sentam nos galhos do tamarindo e observam a tia Quitéria enquanto as suas mãos esguias de pianista escolhem os bagos de arroz. Vão subir à torre da Kanchanganga e dar de comer às gralhas que todos os dias vêm cumprimentar as irmãs mais bonitas de Bombaim. Lara e Elaine Noronha. Vão percorrer as ruas da cidade e tocar os cristos que vivem nas bermas. Vão estranhar os cheiros, a sujidade, a miséria. Ela não desaparece por não a olharmos. Vão mergulhar os corpos pequeninos na praia de colva onde não há turistas sauditas, nem turistas russos, só indianos passeando de mãos dadas e indianas que mergulham nas águas do Índico de sari. E um carrossel muito velho, onde peixes gigantes, de sorrisos assustadores, embalam meninos que trazem as mãos cheias de vento.
(Em breve, volto à Índia. Desta vez levo os miúdos. E se eles não gostarem? Vai ser terrível porque se os meus filhos não gostarem da Índia eu vou passar a gostar um bocadinho menos deles.)
MST
Há um grupo de blogers que anda desde o início do mês num corrupio, a desdenhar, com afinco, o novo livro do Miguel Sousa Tavares. Há os que anunciam que nunca, mas nunca, nem que a vaca tussa, nem que o mundo acabe, colocarão os olhos sobre tal obra. Há aqueles que criticam os primeiros, mas, à cautela, para evitar confusões, dizem que também não têm interesse em ler tal livro. Andam mais ocupados em ler os clássicos ou em apreciar o pop barroco do Rufus não sei das quantas. Há depois os bafientos que, procuram no caruncho das enciclopédias e dos anais, erros históricos, falhas gravíssimas, imperfeições inultrapassáveis. Como se a gente lesse um romance para aprender História. Como não sou uma bloger bem pensante, muito menos cultivada nos grandes autores, vou ler o livro do Miguel Sousa Tavares de uma ponta à outra. Não sei se vou gostar. Suponho - e digo suponho porque verdadeiramente nunca gostei de nenhuma - que os autores sejam como as fodas que damos na vida. Umas vezes gostamos, outras vezes não. Outras vezes, enjoamos. Por exemplo, ao terceiro Murakami, senti uma náusea, um enjoo tal, que à primeira oportunidade, no auge de uma discussão, rasguei-o em mil pedaços. E, no entanto, gostei do Norwegian Wood e do Suptnik, meu Amor. Tanto, que até quis que o cabelo se me embranquecesse de um dia para o outro. Salvo um ou outro exagero, também gostei do Equador. Aquela cena do herói à beira da morte, estropiado de todo, falo incluído, mas que ainda tem ganas de papar a bela Anne, pareceu-me exagerada. É um romance bem escrito, despretensioso, que conta uma história. Que distrai. Não percebo, por isso, tamanho alarido e desdém. Só falta organizarem-se virtuais passeatas contra o livro. Por mim, tenho intenção de o levar para a Índia e de o ler na lânguida sombra da mangueira durante a hora das sestas alheias. E, se acontecer ao MST o que aconteceu ao Murakami, sempre tenho seiscentas páginas à mão para rasgar nos momentos de fúria.