Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2011/12/27
2011/12/26
Enfado
Aos homens agradeço a disponibilidade. Não quero, porém, enganar ninguém e por isso esclareço: não tenho a graça da mestiçagem, nem o oriental encanto das fêmeas submissas, não cheiro a canela, nem a cravinho, depois de quatro gravidezes, o meu corpo ficou de monco caído, ancas largas, celulite, estrias, peitos moles, a última depressão deixou-me praticamente careca; ou seja, não sendo uma estampa, faço o que toda a gente faz no mundo virtual, pinto-me de outra mulher a ver se pinga alguma coisa. Mas, o corpo é o menos, pior o resto: sou fraca de espírito, de uma banalidade miserável, não tenho opiniões, nem rasgos, sentido de humor ou vontade. Tenho o dom do silêncio e da fuga e já não é nada mau. A minha banalidade, tamanha, levou aliás a algumas rejeições traumáticas que partilho para que não duvidem do que conto.
Já fui rejeitada por um septuagenário acamado e algaliado, velho brilhante, meio poeta, dândi, lia-me com devoção, andou durante meses a cortejar-me, falava do Luiz Pacheco, do Alberto Pimenta, do Manuel da Silva Ramos, não lhe resisti. Pois o estafermo do velho, no dia em que o visitei num apartamento na Passos Manuel, com um açafate de frutas exóticas para lhe oferecer, depois de meia hora de conversa, não escondeu a desilusão, sentia-se ofendido, enganado, rejeitou-me, truculento, explicou que dispensava futuras visitas, de resto, a brasileira, de rosto carunchoso, que lhe vinha dar banho uma vez por semana parecia-lhe companhia mais interessante, chegava-lhe bem, sabia várias modinhas nordestinas e tinha, além do mais, mãos maravilhosas para ensaboar e esfregar. Fiquei mortificada, branquinha como a cal, imaginava que para um quase morto a quase juventude de uma balzaquiana era irrecusável. Pedi desculpa, deixei o açafate de fruta em cima de uma cómoda de pau-preto e sai dali, lacrimante. Curada da humilhação do velho, procurei consolo num anão que começou a escrever-me no outono. Homenzinho vivaz, escrevia com desassombro. Disse-me logo que era anão, brincava com a sua pequenez e não se cansava de gabar o tamanho do seu instrumento erecto. Aquilo despertou-me a curiosidade. Marcámos um encontro. Após alguns almoços num restaurante perto do Poço do Borratém, o pobre não aguentou mais as minhas conversas. Tentando esconder o enfado, era um anão educadíssimo, explicou que se despedia de vez, tivera uma proposta de emprego no estrangeiro, embarcava no dia seguinte para a Argentina onde os anões eram muito apreciados na indústria pornográfica. À despedida, não subiu, como era costume, a uma cadeira para que o beijasse, tive de me agachar para lhe dar um casto beijinho na testa. Fiquei a vê-lo, tortinho como um caranguejo, mancando, o peso do magnífico pénis puxando-lhe o corpo para o lado direito.
Aninhas e a explicação de matemática
2011/12/14
Revólver
De joelhos no chão, mangas arregaçadas, a minha mãe esfregava nesse banho de imersão de domingo as partes do corpo que ficavam esquecidas durante os duches da semana, pés, costas, orelhas, umbigo. Escutava-a e percebia que havia na sua voz uma pontinha de vingança, dava-lhe gozo desdenhar assim, ainda que indirectamente, as mulheres da família do meu pai, cunhadas, irmãs, sobrinhas, primas, sobretudo a sogra, feia, de lábios finos, cozidos, autoritária, a única mulher que o meu pai abertamente admirava: sozinha, que um marido fraco, dado ao queixume, à preguiça e à bebida, é como se não existisse, não tem serventia de espécie alguma, cuidara das propriedades da família e educara cinco filhos. Naquele tempo, não duvidava do conhecimento da minha mãe. Se ela dizia que as indianas eram assim, feiotas, logo eu as imaginava uns estafermos, magras, enfezadas, sem curvas, narizes de papagaio, cabelos oleosos, por baixo dos saris, pernas fininhas, tortas, arqueadas, deformadas.
Suspirava de alívio por não ter herdado as características físicas da minha avó paterna, Maria Aninhas Valadares, mas estranhava a importância que a minha mãe dava ao torneado das nossas pernas. Vivíamos num mundo de mulheres recentemente emancipadas - na certeza da legalidade escrita as mulheres eram iguais aos homens. Proibia-se a discriminação. As mulheres tinham exactamente os mesmos direitos que os homens. Bastava-lhes o seu trabalho, o seu valor e competência para serem reconhecidas. As mulheres haviam de ser amadas apenas pelas suas ideias, pela firmeza do seu carácter, pela sua sensibilidade, enfim, por essas coisas. A conversa da minha mãe, dando importância ao corpo, antecipando um tempo de volúpia e desejo, ofendia, e de que maneira, o meu precoce feminismo, era um retrocesso intolerável, um sinal de atavismo e ignorância. Havia, porém, muito acerto nas suas palavras. O corpo é uma arma e uma mulher deve usá-lo em todas as ocasiões: fazer pontaria, olhar pela mira telescópica e puxar o gatilho sem misericórdia ou piedade.
Fila do Pão
Hoje, a fornada tarda e, por isso, a fila vai longa. O bairro envelheceu, está cheio de viúvos, enquanto esperam na bicha do pão, não sentem a solidão. Um homem indiano, também velho, é dos primeiros da fila. Magro, mas de uma magreza extrema que espanta, o seu corpo, de tão magro, tem a qualidade rara da translucidez. Na cabeça redonda, crânio lustroso, não se vê um único cabelo. As orelhas largas de abano desequilibram a fragilidade do rosto. Usa um bigode branco. Está imóvel, olhar fixo num ponto, alheio ao burburinho do corredor. Sempre que a fila avança, dá dois passos, depois, deixa-se ficar, esperando, absorto, corpo curvado como um junco soprado por um vento caprichoso. A aparência física, mas, sobretudo, a postura, um alheamento genuíno, uma leve arrogância aristocrata, a de quem nasceu numa casta superior e por isso dela pode abdicar, tornam a parecença inevitável: em que pensará o gandhi do bairro onde cresci?
Aproximam-se dois miúdos. Chegam ruidosos, cabelo empastado de gel, ar trocista, vestidos de gangas barrocas, cheias de brilhos e tachas. A sua chegada provoca um frémito de desconforto. São ciganos e vivem nos blocos de realojamento que a câmara construiu há pouco tempo. As famílias ciganas quebraram a paz do bairro. Trouxeram ruído, alguma violência. Há uma guerra não declarada entre os habitantes do bairro residencial e os que vivem nos blocos de habitação social. É uma guerra silenciosa, mas, como em todas as guerras, assenta num ódio que não conhece excepções. Odeiam-se todos os que estão do outro lado: homens, mulheres, velhos, deficientes, crianças como estas que se aproximam da fila do pão. Os dois rapazes observam os velhos com olhos de gavião. O esquema é sempre o mesmo. Precisam de encontrar o mais frágil, aquele que mais facilmente deixe entrar o medo, a vítima ideal que permita o pequeno furto, tão pequeno e irrelevante, que nem parece ser aquilo que é.
A sua escolha, hoje, não é difícil. Ó senhor, compre-nos aí dez pães, vá lá! O velho indiano não lhes responde. Mantém o olhar fixo. Parece não os ver. Os rapazes pedincham durante mais algum tempo. O silêncio do velho irrita os rapazes. O monhé não diz nada, diz entre dentes o que parece ser mais novo. Compra aí dez pães, ó velho!, a intimidação passa a ser clara, a coacção já não se disfarça, o preconceito assume-se. Insistem no insulto e na ameaça. O velho mantém a sua calma. Rosto sério e alheio. Parece estar num outro mundo. De onde lhe vem a calma? Por que não treme, de raiva, o seu corpo tão frágil? Por que não lhes responde? Os miúdos acabam por desistir. Envergonhados, o orgulho atingido, desaparecem no corredor. Por breves instantes, tudo sossega no corredor da fila do pão. Iuri, no seu mini mercado, corta uma melancia riscada em quartos. Na tabacaria, um homem retoma a leitura dos jornais.
A fila está prestes a avançar quando, do sapateiro, sai uma mulher que veste um salwar kameez de cor clara, mas indefinida. Cheira a sabonete de sândalo e curcuma. Aproxima-se do velho gandhi e fala-lhe muito alto, aos gritos para se fazer ouvir. Desculpa-se por o ter deixado tanto tempo sozinho, estava muita gente no sapateiro, mas valera a pena, conseguira arranjar uma dobradiça que servia na perfeição na bengala. O velho acena a cabeça em sinal de assentimento. A mulher abre o saco. Tira uma bengala dobrável de alumínio. O velho pega-lhe e, imediatamente, inicia movimentos pendulares, de lá para cá, de cá para lá, reconhece o espaço, larga a escuridão, os seus olhos estão na ponta de borracha da bengala. A mulher senta-o num dos bancos do corredor e toma o seu lugar na fila do pão. Sentado, translúcido, sereno, o velho não sente a guerra silenciosa que se passeia pelas ruas do bairro. Não sente medo. Nem ódio. Não se deu conta dos rapazes ciganos. Não os viu. Não os escutou. O velho gandhi vive em paz porque o mundo não lhe chega.
Autofagia
Subo a rua do coliseu, sempre com o barrosão na minha mira, já deixou a filosofia, agora, pergunta-me pelo nome, pede um cartão, um número de telefone. Paro a olhar a montra de um talho. Ao centro, mesmo por baixo de uma fiada de carcaças, há um tabuleiro de alumínio com quatro magníficas mãos de vaca, enormes, as patas, tão bonitas, quatro patas de casco limpo, de um branco baço, deixo-me ficar em frente da montra a olhar aquelas mãos de vaca que não parecem reais, são feitas de cera. Lembram as velas que se vendem nos tendeiros de Fátima, forma de pernas, cabeças de anjos, braços, pés, mãos, corpos humanos esquartejados com precisão, comprados por peregrinos que chegam de camioneta e comem frangos assados e laranjadas nos parques à volta do santuário. Ficam os cotos de estearina a arder em capelas sombrias para cumprir promessas antigas, maleitas que se curam, maridos andarilhos que voltam, filhos que largam o vício.
Continuo a olhar as quatro mãos de vaca, quero guardar aquele instante, umas mãos de vaca assim não me aparecem pela frente todos os dias. O barrosão, corpo suado de subir a rua, inquieta-se, já não sabe o que fazer, estranha o meu interesse na montra do talho. A menina já provou mão de vaca com grão, é uma delícia, diz por fim. A autofagia do bicho entristece-me. Ouço-o em silêncio. Linda, a pronúncia do norte.
2011/12/05
Sensual Galego
(tão linda, esta canção.)
(na linha vermelha, hoje, encontrei um homem de olhares fatais.)
Amante
2011/12/02
Almoço de família
O meu irmão desconhece a história do rapaz esquizofrénico e não se apercebe do estremecimento dos objectos frágeis da sala que acontece quando se prepara para comer. Olha a pirâmide de comida que se ergue em cima do garfo e, de repente, enfia-a na boca, mastiga vigorosamente essa primeira garfada, come com deleite, tanto prazer, fechando os olhos, assumindo a sua natureza mulata, o desejo rácico de vadiagem, gosto da minha família, dizem os seus olhos, gosto do meu apartamento espaçoso às portas da cidade, o bairro social do outro lado da estrada, as matronas ciganas, de arrecadas de ouro nas orelhas, olhando-me com superioridade, largando torpedos de palavrões quando passo em silêncio com os meus filhos quase mulatos, esses filhos que, quase brancos, são meus, tão meus, como eu nunca fui do meu pai e da minha mãe, gosto da minha mulher, das minhas irmãs e da minha sogra, que é alegre e me mima com gestos de amor verdadeiro, gosto, sobretudo, da minha televisão de última geração, comprada em dez prestações sem juros, tão bonita que ela fica em cima do móvel de cerejeira que trouxe do norte, olho a televisão e esqueço-me do resto, gosto de tudo isso, mas, se pudesse escolher, se fosse livre, voltava ao lugar onde nasci, a minha vida seria feita da lentidão africana, indolência, águas mornas, muitas mulheres redondas com o desejo à flor da pele, nádegas firmes, seios cheios, às refeições, esta comida que agora como, nesta sala de móveis de pau-preto, feita pelas mãos de uma mãe cujo ventre nunca habitei.
A minha cunhada está sentada ao lado do meu irmão. Dar-se-á conta da dor antiga que o marido cala? Não come. Vai mordiscando aqui e ali. Finge com esses gestos que é uma pessoa de pouco alimento, quer mostrar, há muito o percebi, que não tem culpa do corpo que tem, refegos, bolsas de gordura, mãos imensas, estômago dilatado, estrias, buraquinhos de celulite, a feiura de um corpo disforme, não é culpa sua. Está sempre a explicar, enquanto mordisca uma tâmara aqui, uma tosta com chutney de coentros ali, que quase não come, é assim, maior, porque faz retenção de líquidos, sofre de obstipação grave, está dias, semanas, meses sem evacuar, não há grânulos, chás, xaropes, iogurtes, cereais com fibras capazes de lhe fazer trabalhar a tripa. A minha cunhada pretende com o mordiscanço habitual e as justificações do costume enganar-nos, mas o engano e a mentira exigem certo brilhantismo; ela, a quem tanto devo por me ter feito tia e de quem gosto, não o tem. Na realidade, come imenso e, pior, come mal. Temo, por isso, a desgraça. Um dia, talvez aconteça durante um almoço de domingo, a grave obstipação de que padece cessará. Rebentará. A merda, há tantos anos acumulada nos interstícios do seu corpo, que a faz volumosa, sairá em golfadas revoltas, manchará os copos da cristaleira, as chávenas de café que a velha marquesa de Cascais ofereceu à minha mãe para se livrar do neto demente, os pingos do lustre que reflectem a luz que entra pelos vidros da marquise.
2011/11/20
2011/11/17
Aninhas e a intimidade
Aninhas estranhava a facilidade com que as outras mulheres se tornavam íntimas. Pouco depois de se conheceram, trocavam beijinhos, tratavam-se por tu, contavam segredos de fêmea, partilhavam ralações domésticas enquanto comiam mini pratos de lulas recheadas sobre mesas de fórmica. Aninhas não tinha vocação para a comiseração do género e não apreciava a devassa, assim, em pedaços de névoa cheirando a gordura, da vida familiar. A intimidade que essas mulheres partilhavam não lhe interessava, parecia-lhe banal e ordinária; envergonhava-a. Na realidade, por arrogância, Aninhas não era íntima de ninguém. Não era sequer íntima dos homens com quem dormia. Despia-se à frente deles, com as janelas abertas, a luz do dia iluminando-lhe o corpo. Tirava a roupa devagar, numa lentidão de gestos propositada, primeiro a parte de cima, abrir os botões da blusa, um a um, depois os sapatos, as meias de licra, o ruído de fecho da saia mordendo o silêncio. Aninhas gostava de mostrar o corpo porque sentia que era a única coisa que tinha para dar. Fazia questão de o mostrar, imaculado, puro, virgem, pronto para o sacrifício. Dormia com esses homens sem nada lhes revelar, não dando nada, não esperando deles nada em troca. Nunca chegava a ser íntima dos homens com quem dormia. Na verdade, o sexo, que Aninhas apreciava moderadamente, tinha isso de bom: era tão desinteressante que dispensava a intimidade.
2011/11/15
Bonjour Tristesse
Amanuenses
2011/11/14
Rodovalho
Abro o papelote de alumínio, arranco peles, solto os lombos triangulares, enfio os dedos por baixo dos opérculos, junto da cabeça, para retirar os pedaços mais brancos e saborosos. Com a ponta dos dedos, parto os lombos em porções mais pequenas, tacteando, esfarelo um pouco, à cata de espinhas, tem muito cuidado a arranjar o peixe do teu filho, se o menino fica com uma espinha atravessada é uma desgraça, nem sabes a quantidade de crianças que apareciam no hospital engasgadas, tossiam, tossiam, arranhavam a garganta, pareciam cãezinhos a rosnar, um, lembro-me bem, morreu asfixiado com uma espinha de bacalhau enterrada na garganta, ninguém a conseguiu de lá tirar, assim costuma dizer a minha tia com quem, por segurança e prazer, aprendi a arranjar o peixe com as mãos. Amachuco o papelote de alumínio cheio de espinhas, escamas, peles, gorduras ocres, embaciadas, cheio de lixo. Salvo, porém, a cabeça do peixe que coloco num prato. Não há no peixe parte mais saborosa do que a cabeça, aí se concentra, de forma espantosa, todo o sabor do mar. Sento-me com o prato à minha frente. Pego na cabeça com as duas mãos e, com um pequeno esforço, abro-a em duas metades. Estalam os ossos. Partem-se os ossos. Chupo mandíbulas, maxilas, bolbos inesperados de carne, tacteio a fileira de dentes cónicos e finos, enfio os dedos nos globos oculares para soltar os olhos que vêm numa bolsa gelatinosa e escura. Mastigo as bolsas e parecem de areia. Por fim, fico apenas com a couraça central do crânio que enfio na boca; presa nos molares, trinco-a. Abre-se esse centro de massa encefálica, é uma coisinha de nada, uma massa aguada, de um branco sujo, sabor intenso. Chupo a mioleira do peixe.
Assim sentada na cozinha, chupando uma cabeça de peixe, recordo um homem cuja insignificância – tamanha – fez com que dele me esquecesse durante muitos anos. Chamava-se Paulo Henrique e foi meu pretendente. Fomos colegas na universidade. Empregou-se, pouco depois, fruto de conhecimentos privilegiados, numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos. Levava-me a almoçar. Também me levava a concertos na Gulbenkian e tamborilava os dedinhos. Levava-me a esses sítios com o propósito de me mostrar um certo estilo de vida, que me propunha, se me escolheres, parecia dizer, não tarda nada guiarás um audi, eu um bmw, seremos dois jovens adultos de sucesso, os nossos filhos poderão frequentar um colégio jesuíta, em meia dúzia de anos, se os juros se mantiverem baixos, podemos comprar uma casa de férias em Tróia.
Um dia, sabendo que eu gostava de peixe, levou-me a comer a um restaurante finório. Queria impressionar-me. O restaurante ficava ali para os lados de Entrecampos. Era um sítio de sombras, um luxo decadente de dourados oxidados e fetos artificiais. Um restaurante de adúlteros, de patrões e secretárias, de traições breves, repetidas, urgentes e essenciais. Cheirava aquele lugar ao sexo feito nos carros estacionados na escuridão junto ao rio, ao sexo feito nos quartos de hotéis baratos, pressentiam-se ali humidades, lingerie molhada, falos entumecidos, mamilos túrgidos sobre mesas postas com preceito, guardanapo de pano, copos de cristal, o pão colocado à esquerda, num pratinho com a faca da manteiga.
Veio o peixe, um rodovalho (não era sequer um linguado, não era um peixe fino, espalmado, era um peixe gordo, carnudo, mas uma pessoa, às vezes, tem de criar ocasiões para usar as palavras de que gosta muito), numa travessa de faiança branca, num carrinho de rodas que chiava, empurrado por um empregado de jaqueta branca. O empregado, muito sério, rigidez de empalamento no corpo, serviu-me um lombo que regou com um fiozinho de azeite, duas batatinhas oblongas e um raminho de grelos a acompanhar. O meu pretendente olhava-me e sorria com os olhos. Os seus olhos continuavam a falar. Se ficares comigo, diziam os seus olhos, ofereço-te a sofisticação que nunca tiveste, livras-te da tua avó de lenço preto à cabeça, da tenda de campismo do teu pai nas férias grandes, das roupas compradas em saldos pela tua mãe.
Mal sabia ele que a sofisticação, depois de um período breve de apetecimento, começava naquele tempo a dar-me voltas ao estômago e que tenho da família uma visão assumidamente mafiosa, assente em muitos anos de discussões, gritos, reencontros. Dispenso os amigos, não cuido deles, mas se um dia me morre um irmão, um pai, um filho, morro também. Comi os lombos educadamente, fazendo um esforço para manter a boquinha fechada, limpando os beiços ao guardanapo de pano. No final, para tornar irrecusável o seu amor, o Paulo Henrique disse quanto ganhava. Era muito. Senti naquele momento uma vergonha muito grande por um homem assim me querer. Afinal que havia em mim que pudesse fazer aquele homem pensar que me podia ter? Olhei a cabeça do rodovalho defunto, o tal que não era, fugindo no carrinho que chiava, empurrado pelo empregado de jaqueta branca, e dei conta de um requisito essencial para escolher um homem. Precisava de encontrar alguém gostasse de me ver comer com as mãos.
2011/11/09
2011/11/06
Pripyat
2011/11/05
2011/11/04
Dr. Lucas
2011/11/02
Translucidez
Aproximam-se dois miúdos. Chegam ruidosos, cabelo empastado de gel, ar trocista, vestidos de gangas barrocas, cheias de brilhos e tachas. A sua chegada provoca um frémito de desconforto. São ciganos. Vivem nos blocos de realojamento que a câmara construiu há pouco tempo. As famílias ciganas quebraram a paz do bairro. Trouxeram ruído, alguma violência. Há uma guerra não declarada entre os habitantes do bairro residencial e os que vivem nos blocos de habitação social. É uma guerra silenciosa, mas, como em todas as guerras, assenta num ódio que não conhece excepções. Odeiam-se todos os que estão do outro lado: homens, mulheres, velhos, deficientes, crianças como estas que se aproximam da fila do pão. Os dois rapazes observam os velhos com olhos de gavião. O esquema é sempre o mesmo. Precisam de encontrar o mais frágil, aquele que mais facilmente deixe entrar o medo, a vítima ideal que permita o pequeno furto, tão pequeno e irrelevante, que nem parece ser aquilo que é.
(O nº 3 da revista The Printed Blog sai esta semana. Saio com ela.)
2011/11/01
Sangue do meu sangue
(Digo-lhe, num suspiro, és a única pessoa com quem gosto de vir ao cinema. Não tira os olhos do ecrã. Márcia não sabe que sopa há-de fazer amanhã. É mentira, diz, és uma mulher muito mentirosa, também gostas de vir com o avô.)
2011/10/28
Oriente
2011/10/18
Cozido à portuguesa
Aquelas tardes, passadas em frente à televisão, vendo os programas do oceanógrafo francês, eram obra do meu pai que nos incentivava a ver documentários, fossem de bicheza, de política, fossem sobre os bosquímanos da Namíbia ou sobre os aborígenes da Austrália, não havia grande critério na selecção que fazia, tudo servia para nos educar e, sobretudo, para nos libertar de um país que considerava confinado, de grades, bolores, líquenes. Ganhei com o meu pai o gosto pelos documentários. Ele manteve-o. Desde que a televisão de cabo chegou, carregada de canais temáticos, o meu pai tem dificuldade em seleccionar os documentários que quer ver, desconfio que, por vezes, fica baralhado com tanta informação. Os documentários sobre animais são os que mais gosta de ver. A minha mãe queixa-se que passa tardes inteiras a ver filmes sobre escaravelhos, térmites, aranhas peludas, um nojo, uma pessoa quer ver um programa de variedades, uma telenovela e não pode, diz ela, compungidamente, não compreendendo o interesse do meu pai por esse mundo de animais tão insignificantes que se estraçalham com a biqueira do sapato.
São essas tardes de domingo em que a minha família se juntava à volta de televisão para ver os documentários do Cousteau, a sala ainda a cheirar a farinheira, a chispe, a chouriço de sangue, que lembro, passados tantos anos, quando encontro o meu pai sentado em frente do televisor a ver os seus documentários. Aproveito esses momentos para disfarçadamente o observar. Enquanto se inteira da nidificação dos albatrozes, passa ele a ser o objecto de estudo. Vou ao armário, onde há garrafas de bebidas licorosas e vidros em forma de parra que vieram nos contentores de Moçambique, encho uma malguinha de madeira com aperitivos indianos e, enquanto debico lentilhas fritas, observo-o com atenção: o modo como o pijama lhe cai no corpo, os pés de barbatana, os tremores involuntários da cabeça, a boca ligeiramente aberta mostrando a prótese dentária que colocou num dentista em Margão. Tomo mentalmente nota do meio ambiente envolvente, as movimentações da casa, o cheiro que vem da cozinha, o ruído dos chinelos ortopédicos da tia Dé chiando no chão de madeira, a voz da minha mãe a falar com a minha filha.
2011/10/17
Fluxo Menstrual
(O Dr. Boaventura Santos, há anos, a coordenar o observatório permanente da justiça, que serve para pouco, mas também é suportado pelo Estado, anda em absoluto delírio. O Dr. Garcia Pereira também.)
2011/10/13
Intrusa
O meu espanto foi tal ao encontrar aquela ordinária, ali, tentando os pobres condutores de bmws e de audis, que me engasguei com o pão de deus que, naquele momento, mastigava. Relaxou-se a glote e um bocadinho de coco desviou-se do caminho. Valeu-me a prontidão da senhora da loja de lingerie, uma simpatia, muito boa vendedora, intuitiva, impinge-me collants da Dorien Gray, a oito euros e meio o par, já percebeu que, independentemente da qualidade e da resistência da lycra, não resisto a comprar collants de uma marca tão literária. Também compro perfumes sem os cheirar só porque gosto do nome. Un Jardin Aprés La Mousson. Largou a amável senhora o pãozinho com sementes de sésamo, linhaça e girassol que comia delicadamente ao balcão e correu em meu auxílio. Bateu-me nas costas, com vigor, até o bocadinho de coco sair disparado pela minha narina direita. Bendita senhora.
2011/10/12
Ossos Ilíacos
A mãe do Márcio é uma rapariga nova que usa um pearcing na língua. É preciso ignorar os castanheiros da índia, os choupos outoniços largando folhas pelo chão, é preciso ceder à tentação de espreitar as marquises que se debruçam sobre o recreio da escola - ali um quadro espelhado do pierrot e da columbina, ali um homem velho fumado à janela - e olhar a rapariga com atenção. Quem assim a olhar notará que, no preciso instante em que, no portão da escola, passa o filho para as mãos da auxiliar, enche os pulmões de ar, contrai o diafragma, retém a respiração por breves segundos, depois, liberta o ar pelo nariz com um ruído que mal se nota. Respira fundo. É de alívio que a rapariga respira. Entre o momento em que deixa o filho na escola até à hora a que o vai buscar volta a ser uma simples adolescente, pode passear com as amigas do bairro, mandar mensagens de telemóvel, marcar encontros à porta do centro comercial.
O pai do Fábio André é um homem gordo e suado. Trabalha no talho que fica numa das pracetas perto da escola. Já o vi de bata ensanguentada, mãos ferruginosas de desmanchar carcaças, fumando um cigarro à porta do talho. Tem um touro tatuado no braço que larga um bafo muito quente. Uma pessoa passa pelo touro tatuado e amedronta-se com o olhar furibundo do bicho. Os olhos do talhante são diferentes, olhos mansos de animal já morto.
Há também o pai do Rúben Miguel, seco, anda sempre de mãos nos bolsos e usa um brinquinho. É, no seu género, um homem atraente, apetecível, de cabelo grisalho, um príncipe, ali, nas torres e pracetas do bairro. Costuma vir sozinho trazer o filho à escola. Por vezes, porém, vem com a mulher, uma loira baixa, muito magra, os ossos ilíacos salientes espreitando por cima do cós das calças. A mulher, nota-se no modo como sorri, na gentileza do seu corpo que se abre como uma flor, ama o marido. Deseja-o. O homem, porém, gostaria de lhe fugir. Quando a encontra, ao final do dia, deitada na cama, sorrindo-lhe, puxando a colcha para trás, mostrando-lhe o corpo frágil, os ossos ilíacos que o magoam, pedindo-lhe a que ame e proteja, tem vontade de pegar numa almofada e sufocá-la lentamente.
Abas Largas
(maravilhosa, por ser íntima e pessoal, a crítica que o João Bonifácio escreveu ao livro da Dulce Maria Cardoso. Li-a na linha vermelha, interrompida durante muito tempo por causa de um homem que se atirou na estação de Arroios. Não fora o homem se atirar à linha e eu não teria encontrado tempo para ler a crítica do João Bonifácio e lembrar o amor que tenho ao meu pai. Encadeamento estranho da vida.)
2011/10/06
Bomba Relógio
Dois copos de vinho verde, bailarico na cozinha, o João a espreitar e a dizer "és tão bonita, mãe".
Poliedro
2011/10/05
Asno de Ouro
Linda de Suza
Certeza
2011/10/02
Rio
2011/09/30
2011/09/28
Acesso Bloquesdo
Beleza
Elevador
2011/09/22
Enfant
2011/09/21
Aninhas e o desejo
2011/09/15
2011/09/14
Aravind Adiga
2011/09/13
Grau
A graduação é um método prático, muito comum, mas, quase sempre, de difícil execução. Um grau mede a intensidade, a força de alguma coisa. Os parâmetros que se utilizam para atribuir determinado grau, mais ou menos intenso, têm de ser claros, previamente estabelecidos. Isto de medir a sexualidade de alguém não é nada fácil, mas a graduação proposta pela associação portuguesa de canonistas é demasiado confusa e imprecisa para ser levada a sério. Li a notícia e fiquei com tantas dúvidas. Como se distingue um exclusivamente homossexual de um predominantemente homossexual? De que serve a distinção se os efeitos são os mesmos? Ser predominantemente homossexual não implica ser acidentalmente heterossexual? Para quê o detalhe da distinção? E a intensidade do grau mede-se apenas em função das práticas sexuais ou também do desejo sexual não concretizado? E por que razão é que só os acidentalmente homossexuais podem, mediante voto de castidade, ser considerados aptos ao desempenho das funções matrimoniais? Por que se nega essa tábua de salvação aos predominantemente homossexuais? Até um exclusivamente homossexual, devoto, fiel nas suas convicções, obediente aos dogmas da sua fé, pode fazer um voto de castidade, renunciar àquilo que é, calar a vontade e o desejo, passar a ser apenas uma sombra, um espectro de olhos cegos, dedos queimados, capaz, no entanto, de vez em quando, com esforço e empenhamento, de se dar para cumprir os desígnios de procriação do casamento.
Estes assuntos não são fáceis. Não é simples graduar a sexualidade das pessoas, até porque – é a minha ignorante opinião - não há ninguém exclusivamente homossexual ou exclusivamente heterossexual. A ser alguma coisa, a ser essencial a classificação, de duas uma, ou somos predominantemente heterossexuais ou predominantemente homossexuais. A predominância não nega a liberdade do desejo, não impõe a prisão das certezas. Acho, por exemplo, que a maior parte das mulheres predominantemente heterossexual é acidentalmente homossexual. Podem nunca ter tido práticas sexuais com outras mulheres, não querem tê-las, mas constroem o desejo e a excitação a partir do corpo das outras mulheres.
Depois, não se percebe esta embirração da igreja em relação à homossexualidade que não é doença, nem distúrbio, nem desvio, mas opção livre que merece respeito cristão. Tanta genuína perversão por aí, tanta parafilia interessante para abordar, e só a aborrecida homossexualidade merece atenção. É injusto para os coprófilos, para os necrófilos, para os zoófilos, para os pedófilos, enfim, para os parafilos em geral. Uma coisa boa, porém, resulta da notícia do Público. Lendo-a, percebemos que, em relação às capacidades intelectuais dos canonistas da associação portuguesa de canonistas, deus, nosso senhor, poupou-nos à incerteza e à duvida, a questão do grau não se coloca: são exclusivamente cretinos, acidentalmente parvalhões, predominantemente idiotas.
2011/09/11
Aninhas
2011/09/07
2011/09/06
Aprendiza
2011/09/04
Cova do Vapor
2011/08/31
Nível
Rapaz
Antes das férias, por exemplo, andou de volta dos clássicos russos. Numa semana – uma semana tem apenas sete dias – vi-o de roda de dois romances do Dostoievsky e do mais longo romance do Gogol. Como se pode despachar numa semana três obras-primas da literatura universal, duas densas, a outra divertida, mas todas merecedoras de tempo? Tamanha imaturidade irritou-me. Foi por causa do rapaz das arcadas, do seu modo de ler, imberbe, que decidi também levar um russo para as férias. Escolhi o Turgueniev. Gostei moderadamente do livro. Já estava farta do niilismo e da misoginia do tal Bazarov. Sou, sempre fui, pelo triunfo da emoção sobre a razão. Podia ter lido livro em menos noites. Porém, li-o devagar, poucas páginas de cada vez, uma leitura prolongada, preguiçosa, propositadamente indolente. Só para fazer pirraça ao rapaz das arcadas.
2011/08/29
Saramago (2)
Não sei explicar por que razão, passados tantos anos, recordei, com detalhe, este episódio enquanto assistia ao documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Talvez fosse apenas o sul a chamar por mim. Quando desliguei a televisão e o silêncio se instalou pensei assim: afinal gosto deste homem. No dia seguinte, partilhei o entusiasmo com a minha irmã. Gozou-me, como sempre faz, soltou uma casquinada valente, e disse qualquer coisa do tipo ó mana, és tão inconstante. A conversa é sempre a mesma. A minha inconstância é um axioma familiar. Ultrapassada a questão ideológica, a minha irmã percebeu que apenas a sordidez da vidinha privada podia reavivar o meu desprezo pelo Saramago. Então tu não sabes que ele batia na primeira mulher?, atirou ela com uma ponta de maldade, sabendo que poucas coisas me revoltam mais do que homens que batem em mulheres. Deves ser completamente louca, disse, e acabei, naquele preciso instante, a conversa, desligando-lhe o telefone na cara. Engoli em seco e meti O Ano da Morte de Ricardo Reis na mala de viagem. Livro extraordinário. Descoberta tão boa na frescura da noite alentejana. Li-o com espanto, deliciada, feliz por o estar a ler. Fiz listas de palavras. A minha filha quis saber por que é que, volta e meia, sublinhava o livro. Estou a caçar palavras, em cada página, caço uma palavra, expliquei e pusemo-nos a olhar a caçada.
Ainda não tirei a limpo se o Saramago batia ou não na primeira mulher. Não quero saber. Reconheço a sensatez dos que dizem que interessam os livros, não os escritores, interessa pouco aquilo que pensam sobre o mundo, é irrelevante a sua vida privada. Fossemos nós, leitores, à procura, em quem lemos, de exemplos de vida, heroicidade, liberdade, valores sólidos, e ficávamos à míngua, sem nada para ler. Está tudo muito bem. É assim mesmo que deve ser. E, no entanto, foi a descoberta da intimidade, a dança das rotinas diárias, a partilha de um amor maior que a vida, essa extraordinária capacidade de encontrar o sagrado nos gestos profanos, banais e indignos, que me levou a ler um escritor, por mim, há muito, proscrito.
Saramago (1)
Mas a vida, como se costuma dizer, é uma caixinha de surpresas e, quando menos esperamos, apanha-nos desprevenidos. Até as embirrações mais sólidas, que julgávamos de pedra e cal, enterradas no fundo do nosso ser, se vão embora. Aconteceu-me este verão. Precisamente com o Saramago. Apanhada de surpresa, numa noite vazia, de angústia leve, dormiam os miúdos, dei comigo a ver o documentário do Miguel Gonçalves Mendes. Passava no segundo canal. Escutei a voz do escritor, vi o medo da morte dentro dos seus olhos, enterneci-me com a sua figura frágil, e lembrei o meu avô José, que não foi serralheiro mecânico, mas carpinteiro. Foi então, enquanto via o documentário, que lembrei um episódio esquecido da infância.
2011/07/25
Femmes Infidèles
Et quand ils ont bien bu
Se plantent le nez au ciel
Se mouchent dans les étoiles
Et ils pissent comme je pleure
Sur les femmes infidèles.
(Volto em Setembro.)
I-Phone
Quarenta Anos
Aninhas pensara durante a tarde. Nenhuma justificação lhe pareceu razoável, suficientemente plausível para acabar com aquela relação que pouco exigia e nada deixaria. Na penumbra do escritório lembrou-se então da frase que encontrara nessa manhã escrita na base da estátua na praça central da cidade. Discou o número da casa do amante. Já não te amo, Rui, disse-lhe com clareza, antes que ele pudesse cumprimentá-la. Era uma frase curta. Dita de supetão, não lhe exigia grande fingimento ou dissimulação. Porém, de tão absurda, ao dizê-la, teve vontade de soltar uma gargalha pequena. Coibiu-se, porém. Pressentia que o amante sofria do outro lado da linha. Talvez chorasse quando desligasse o telefone. Dificilmente encontraria nos corredores da faculdade uma mulher como Aninhas. Costumava desabafar, nas horas clandestinas que passavam no apartamento de marquises de alumínio, que as colegas cultivavam uma feminilidade esclarecida. Eram, mais coisa, menos coisa, uns estafermos. Não tiravam o buço e, no tempo quente, usavam vestidos pingões que mostravam corpos macilentos. Aninhas não lhe queria mal. O amante, no fundo, assegurados que estivessem os mínimos de beleza e voluptuosidade, acreditava na igualdade de géneros, nas relações assentes no diálogo, na genuidade dos sentimentos nobres, no amor, enfim. Era um bom homem, mas demasiado moderno para perceber que a sua decisão assentava em critérios de pura racionalidade. Não lhe podia explicar que já não precisava dele. Terminado o casamento, podia acabar com a relação que o sustentava. Aninhas sabia o que fazia: deitava-o ao lixo. Dispensava-o como aos sapatos com salto de vírgula que oferecia à empregada.
Afife
2011/07/20
Agualva-Cacém
Vem a conversa do Sr. Guia a propósito do R. que me levou os miúdos para a praia. Uma semana inteira sem os ver, os três ausentes, assim de uma assentada, não estou habituada, não sei que fazer com o tempo. Despedi-me deles e, mal virei costas, vi a solidão encostada à ombreira da porta do meu apartamento, prontinha para entrar e fazer-me companhia, oferecida, langorosa, como se estivesse sentada na sala de apresentação de um prostíbulo. Fingi não a ver e fechei-lhe a porta na cara, ainda a ouvi dizer ai, com a força, pensei eu, magoei-a no septo nasal, vulgo cana do nariz, feita de ossos moles, cartilagens alares, dói que se farta quanto batemos em algum lado. Entrei, pois, em casa, disposta a não deixar a solidão fazer de mim gato e sapato. Telefonei ao Sr. Guia a perguntar-lhe se ainda me queria treinar. Que sim, olha a pergunta, era um homem de palavra, tinha até muito gosto, que fosse ter com ele no dia seguinte, apanhas o comboio e saias em Agualva-Cacém, vou buscar-te à estação. Assim tem sido, apanho o comboio, lancho na cozinha da D. Cremilde, onde há flores de plástico, um naperão de linha mesclada em cima de uma mesa lacada, um televisor sempre ligado na tvi, como uma sandes de marmelada – é para teres energia!- e um iogurte sólido. O Sr. Guia chega com os seus calções azul, camiseta de alças, ar sério, esfregando as mãos. Saímos para correr.
Almada
2011/07/12
Gotas
Virei-me para a minha mãe. Pedi-lhe para os aturar mais uma hora. Calcei uns ténis. Lá fora, a noite abafava, nem uma brisa se levantava do rio, era uma noite de verão, estática, andavam as tainhas mais moles do que é costume, nadando aos círculos que o cerebelo carregado de nafta e gasolina deixa-as muito estúpidas, vinham com a cabeça à tona para olhar com os seus olhos amarelos as estrelas e a lua. Não se via ninguém. Passei apenas por um homem grisalho que passeava um cão minúsculo e levava pelas costas uma mochila das jornadas peninsulares de psiquiatria. Atrasei o passo. Corri durante uma hora. Voltei a casa. Despediu-se a avó. Tomei banho. Deitei-me. Olhei a secretária e o computador. Lembrei-me dos meus propósitos, tão boas as minhas intenções, agora que ninguém me reclama, agora que ninguém me cansa, hei-de escrever todas as noites, um bocadinho de lixo todas as noites. Não custa nada. Até ter um lixo de muitas páginas. Apaguei a luz. Mal a escuridão entrou no quarto, pensei em mamas, rabos, pénis muito tesos ejaculando para dentro de bocas. O orgasmo veio fácil, em meia dúzia de segundos, numa vertigem, sem esforço, uma coisa sem jeito nenhum, sensaborona, aguada, desoladora, profundamente triste.
Adormeci. Às três da manhã, bradou o mais pequeno. Preciso de ti, disse e subiu à minha cama com o coelho Botelho na mão. Primeira gota. Às quatro da manhã, veio a do meio, vestia uma camisa de noite cheia de anémonas, tão frágil, tão delicada, a minha filha, como uma gota de água. Tive um pesadelo contigo e com o pai, explicou. Fica, meu amor, que a noite não silencia os medos, nunca a escuridão os apazigua. Segunda gota. Às cinco da manhã, chegou o mais velho, um cristo cigano, sem dizer uma palavra, dormia ainda, dormia de olhos muito abertos, trazia o corpo fluído de prata. Ocupou na cama o lugar do pai. Terceira gota. Adormeci a um canto, meio corpo de fora, caindo para um abismo de espinhos e névoas. Acordei de madrugada, chilreavam os pardais e os melros nas árvores da praça, piu, piu, piu, piu, um frenesim matinal muito bom. O mais novo despertou com o alarido dos pássaros. Galgou o corpo da irmã e livrou-me do precipício. Beijou-me e adormeceu.