(Fui à primeira sessão. Na sala, eu e uma velha de vestido roxo que me contou que, quando era da minha idade, fez um cruzeiro no Volga. Fartei-me de chorar. Tão bonito, o filme. Vou obrigar o meu pai, a minha mãe, a tia Dé e os miúdos mais velhos a irem vê-lo.)
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2012/07/21
2012/07/13
Alentejo
(Estou completamente viciada no Roque Popular, sobretudo, na Luzia, tão linda esta canção, hei-de tê-la ouvido mais cem vezes, hoje. E, em Agosto, falta pouco, volto à minha aldeia alentejana, que tem festa com frangos assados, baile, festeiros e festeiras, a Marisa cabeleireira, tão jeitosinha, e a Luísa nojenta, de tacões de madeira e blusas transparentes, puta da Luísa - gorda e loira, tinha de ser loira, deslavada, imbecil, as loiras são quase sempre assim, convencem-se de que a palidez lhes mascara a primitiva insignificância - roubou o namorado à minha prima Filomena, a maior suinicultora do litoral alentejano; em Agosto, a festa em S. Bartolomeu da Serra tem leilões de garrafas de vinho do porto e leitões, uma mulher de olhar permanentemente espantado, contam que foi resquício de mal de amor, também lá está a prima Laura, sentada a uma mesa de fórmica, umas vezes triste, outras alegre, nunca se sabe como está, é como calha, que a bipolaridade não é doença só de gente de inteligência superior, também marca os outros. Eu, entre eles que me recebem sempre com distância, danço com este e com aquele, os meus filhos correndo no adro da estação, descansando por fim em colos negros, alapando na Virtuosa e na Preciosa. Os meus avós, José e Felicidade, largam a cova nessa noite para ver os bisnetos. Sou menos infeliz em Agosto porque os sinto. Quis-lhes tanto. Quero que os meus filhos amem os meus pais exactamente como eu os amei. Como se pode gostar da merda do Algarve, havendo o Alentejo?)
2012/07/09
La Llorona
(Quando os miúdos me mimam, és a melhor mãe do mundo, dizem, dou-lhes para trás. Explico-lhe que a melhor mãe do mundo tive-a eu. Não há, nunca haverá outra igual. Cantava esta canção e eu, pequenina, ficava presa às palavras que lhe saíam da boca. Faz hoje 72 anos. Parabéns, meu primeiro amor, minha menina velha.)
2012/07/05
Mulher-árvore (4)
Sucede que a semente
era embrião de uma árvore de grande porte, mastodôntica, cruzamento de sequóias
e embondeiros, viera trazida num cargueiro senegalês que aportara em Lisboa num
dia de vendaval; uma rajada mais forte, aparentada dos alísios tropicais,
fizera-a voar para terra. A árvore cresceu, cresceu, cresceu, fez-se de copa
ramalhuda, folhagem densa e luminosa, a mulher andava na rua e toda a gente lhe
gabava o ornamento. Por altura do Natal, porém, começou a sentir desconforto, custava-lhe
aguentar o peso da árvore. Tinha de a tirar. Fazia-o com pena. Gostava de
acordar de manhã e sentir a líquida condutância do seu corpo arbóreo. Por causa
da fotossintética mentolada melhorara substancialmente dos seus problemas
respiratórios, deixara de usar o brisomax e o pulmicort. Na rua, muitas vezes,
vinham bandos de pardais atrás de si, atraídos pelos frutos roxos que nasciam
aos cachos, ficavam os passarinhos a aguar com vontade de bicar os abrunhos; às
vezes, se tinha tempo, a mulher parava, deixava-se estar perfeitamente imóvel e
punha-se a observar a aproximação dos pássaros. Repiu, piu, piu, faziam os
pardais, deliciados com a polpa sumarenta e doce, estremeciam de satisfação, as
bárbulas perdiam o tom pardacento, refulgiam em cores estranhas: ametista, magenta
e aspargo. A mulher das narinas grandes não era, por isso, capaz de simplesmente
a arrancar. Matar a árvore estava fora de questão.
Procurou ajuda junto
de uma amiga jardineira, muito boa pessoa, que trabalhava na Câmara Municipal de
Loures. A amiga logo reconheceu as suas limitações, estava habituada à
manutenção das espécies comuns, não era especialista no transplante, tentara trazer
quatro oliveiras centenárias – corriam risco de se perderem por causa da
construção de uma nova estrada camarária - para o largo do tribunal, cumprira
meticulosamente as etapas do transplante de árvores de porte médio, mesmo assim
perdera duas, definharam lentamente até se tornarem troncos estrangulados. Aquela
árvore exigia a intervenção de um sábio. Por sorte, explicou a jardineira, o
maior sábio botânico europeu vivia em Portugal, chamava-se José Theophrastus e
vivia em Paço de Arcos, numa vivenda recamada de azulejos cor de caramelo,
junto à marginal.
2012/07/02
Mulher-árvore (3)
Durante algum tempo, sempre que a
mulher se sentia tentada a guardar qualquer coisa dentro das narinas, lembrava as
duas rãs que lá tivera hospedadas. Um dia, porém, enquanto passeava no porto,
entre contentores e cargueiros encontrou, junto a um caixote de lixo, uma
semente. Muito pequenina, com a forma de um feijão, tão bonita e estranha. A
mulher quis guardá-la para a mostrar ao filho mais pequeno, que todos os dias
chegava da escola com flores, folhas, pedras e paus para lhe oferecer, mas,
nesse dia, por sorte ou azar, usava um vestido largo sem algibeiras. Levou a
semente ao nariz. Sentiu um cheiro mentolado, cheiro de hortelã, poejo,
lúcia-lima e erva-cidreira. O cheiro intenso pareceu-lhe muito adequado ao
desentupimento das fossas nasais. É que, apesar de não ter diagnóstico
definitivo, tanto podia ser rinite alérgica ou bronquite asmática, a mulher
vivia numa permanente aflição, falta de ar, chiadeira e piadeira, sempre
pingando um ranho aguado, nariz permanentemente trancado. Talvez o cheiro
mentolado da semente ajudasse no tratamento da sua maleita. Enfiou-a no nariz e
sentiu alívio imediato como se tivesse posto vinte gotas de cloridrato de
nafazolina em cada narina. Nessa noite deitou-se e, ao contrário do habitual,
dormiu um sono seguido. Sem sornadura. Foi assim durante duas semanas. Até que,
numa manhã de Setembro, o inesperado aconteceu. Estava o filho mais pequeno,
rapazinho chamado Quinzolas, cheio de caracóis dourados, tão bonito que mais
parecia um anjinho barroco, sentado à mesa da cozinha a tomar o pequeno-almoço.
Bebia o leite com cola-cao por uma palhinha encarnada antes de ir para a
escola. A mulher das narinas grandes entrou, queixando-se das sandálias
novas que lhe apertavam muito os joanetes. Mal a viu, o menino engasgou-se,
esguichou leite achocolatado pelo nariz e deu um grito, apontando para o rosto
da mãe.
A mulher correu ao espelho da
casa de banho, assustada, talvez lhe tivesse nascido uma verruga com pêlos no
queixo ou talvez o cabelo tivesse embranquecido de um dia para o outro, já
ouvira falar de casos semelhantes. Sossegou mal se viu ao espelho: um pequeno
ramo, ligeiramente retorcido espreitava na sua narina esquerda; na ponta,
nascera uma folhinha encerada, a fazer lembrar as das japoneiras, assim de um
verde muito vivo e luminoso. O ambiente acolhedor, tal como fizera eclodir os
ovinhos das rãs guineenses, fizera germinar a semente mentolada. Nascera-lhe
uma árvore no nariz. A mulher ainda pensou em arrancá-la com uma pinça tal
como fazia aos dois pêlos que lhe nasciam no queixo por cima de uma cicatriz
antiga. Porém, ao segundo relance, resolveu deixá-la estar. Pois não havia quem
andasse de anilha de bovino no nariz, alargador na orelha, corpo tatuado,
postiços de gel em cima de unhas ratadas? Porque não haveria ela de andar nos
transportes públicos, no supermercado, trabalhar ao balcão do banco, participar
nas reuniões de condomínio, com uma pequena árvore pendurada no nariz?