Diz-se que o tempo tudo cura, mas o
silêncio é de melhor serventia, tudo apaga, não se falando das coisas é como se
elas não existissem. Aconteceu o mesmo a Odete. Foram-se as agonias, o
mal-estar inicial, calou frustrações, chegou o filho, sumiu-se de vez o
sofrimento. A maternidade, para além da perpetuação da espécie, serve muitas
vezes para secundarizar uma mulher. Foi nessa instrumentalização que o destino
de Odete se cumpriu. Passados tantos anos, tantos domingos, uma vida inteira,
ficou lá dentro uma coisinha, uma dor a saracotear no fundo do peito, uma
dorzita que é quase nada, Odete já não dá por ela, fracota, extingue-a
diariamente com uma alegria breve, uma gargalhada solta em frente da televisão,
dois dedos de conversa com a Nanda, a satisfação de um casaco comprado nos
saldos, custava sessenta e cinco euros e comprei-o a trinta, rica pechincha.
Fica o casaco durante o inverno dentro do armário porque ganha borboto com
muita facilidade, a fazenda é ordinária e a cor demasiado viva, inadequada à idade
que tem, mas a alegria breve, essa que cala a dor, já ninguém a leva.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2012/08/28
Aznavour
(Três da manhã, o Joquinhas às voltas na cama, sonha com piscinas e bisnagas de água, os outros a monte, gozando o declínio das férias, eu a ler o manual de patologia médica que trouxe do Alentejo, as notas a esferográfica da minha mãe, desenhos de cisnes e tulipas, o cheiro a mofo das páginas amarelecidas. Trouxe também um livro de 1960 sobre desejo e perversão sexual, magnífico achado de verão; mas esse desconfio ser pertença da tia Dé.)
2012/08/25
Quelimane
Todas as famílias
têm segredos. A minha é pródiga em histórias, incertezas, meias
verdades, omissões, em calar a dor. Olho para os meus irmãos. Não vivo longe
deles, sem as vozes dos filhos deles chamando-me tia. Um dia partiremos para
Quelimane. Lá encontraremos o homem que engoliu o mar e, na sombra de uma
árvore frondosa, enroscada numa capulana garrida, a menina que escutava canções
do Roberto Carlos.
2012/08/02
Billie Jean (2)
(Mas antes deixo o original, melhor. Esta canção liga que é uma maravilha com S. Bartolomeu da Serra, o cheiro a porcos no crepúsculo, o moinho que foi do tio Manuel visto do quintal, os pessegueiros enxertados que davam frutos grená e que já só existem na minha memória, as sopas de tomate feitas pela prima Filomena que custou a engravidar, tanto que chorou por não cumprir o seu destino de fêmea, o mar frio e revolto de São Torpes, os meus mortos e os meus vivos, que se fodam os que não são meus, só tenho amor aos meus, o café da associação de moradores onde uma brasileira de sobrolhos impecavelmente arranjados, a Denise, tira cafés amargos e suscita a lascívia dos homens que sossegam o cansaço do trabalho do campo, a minha filha namoricando o Artur, miúdo loiraço, com muito pêlo nas ventas, o mais pequeno correndo atrás dos gatos, o mais velho encostado ao meu corpo, amparo da minha solidão. )
Billie Jean
(Depois da santíssima trindade, Sérgio Godinho, Fausto e Chico Buarque, este é o homem mais bonito à face da terra. Nunca vi um nariz tão bonito. É lindo. E como é possível não se gostar do Michael Jackson? É preciso ter o cu muito dorido de enrabadelas intelectuais para não gostar do que é simplesmente perfeito. E, agora, vou de férias, que bem as mereço.)