2012/08/29

Dor


Diz-se que o tempo tudo cura, mas o silêncio é de melhor serventia, tudo apaga, não se falando das coisas é como se elas não existissem. Aconteceu o mesmo a Odete. Foram-se as agonias, o mal-estar inicial, calou frustrações, chegou o filho, sumiu-se de vez o sofrimento. A maternidade, para além da perpetuação da espécie, serve muitas vezes para secundarizar uma mulher. Foi nessa instrumentalização que o destino de Odete se cumpriu. Passados tantos anos, tantos domingos, uma vida inteira, ficou lá dentro uma coisinha, uma dor a saracotear no fundo do peito, uma dorzita que é quase nada, Odete já não dá por ela, fracota, extingue-a diariamente com uma alegria breve, uma gargalhada solta em frente da televisão, dois dedos de conversa com a Nanda, a satisfação de um casaco comprado nos saldos, custava sessenta e cinco euros e comprei-o a trinta, rica pechincha. Fica o casaco durante o inverno dentro do armário porque ganha borboto com muita facilidade, a fazenda é ordinária e a cor demasiado viva, inadequada à idade que tem, mas a alegria breve, essa que cala a dor, já ninguém a leva. 

2012/08/28

Aznavour



(Três da manhã, o Joquinhas às voltas na cama, sonha com piscinas e bisnagas de água, os outros a monte,  gozando o declínio das férias, eu a ler o manual de patologia médica que trouxe do Alentejo, as notas a esferográfica da minha mãe, desenhos de cisnes e tulipas, o cheiro a mofo das páginas amarelecidas. Trouxe também um livro de 1960 sobre desejo e perversão sexual, magnífico achado de verão; mas esse desconfio ser pertença da tia Dé.)

2012/08/25

Quelimane


Todas as famílias têm segredos. A minha é pródiga em histórias, incertezas, meias verdades, omissões, em calar a dor. Olho para os meus irmãos. Não vivo longe deles, sem as vozes dos filhos deles chamando-me tia. Um dia partiremos para Quelimane. Lá encontraremos o homem que engoliu o mar e, na sombra de uma árvore frondosa, enroscada numa capulana garrida, a menina que escutava canções do Roberto Carlos.

Dentro de casa

2012/08/02

Billie Jean (2)



(Mas antes deixo o original, melhor. Esta canção liga que é uma maravilha com S. Bartolomeu da Serra, o cheiro a porcos no crepúsculo, o moinho que foi do tio Manuel visto do quintal, os pessegueiros enxertados que davam frutos grená e que já só existem na minha memória,  as sopas de tomate feitas pela prima Filomena que custou a engravidar, tanto que chorou por não cumprir o seu destino de fêmea, o mar frio e revolto de São Torpes, os meus mortos e os meus vivos, que se fodam os que não são meus, só tenho amor aos meus, o café da associação de moradores onde uma brasileira de sobrolhos impecavelmente arranjados, a Denise, tira cafés amargos e suscita a lascívia dos homens que sossegam o cansaço do trabalho do campo, a minha filha namoricando o Artur, miúdo loiraço, com muito pêlo nas ventas, o mais pequeno correndo atrás dos gatos, o mais velho encostado ao meu corpo, amparo da minha solidão. )

Billie Jean



(Depois da santíssima trindade, Sérgio Godinho, Fausto e Chico Buarque, este é o homem mais bonito à face da terra. Nunca vi um nariz tão bonito. É lindo. E como é possível não se gostar do Michael Jackson? É preciso ter o cu muito dorido de enrabadelas intelectuais para não gostar do que é simplesmente perfeito. E, agora, vou de férias, que bem as mereço.)