Ainda tão perto de Lisboa, ali
quando a auto-estrada passa por Alhandra, a cimenteira, a capela no altinho, a
linha do norte marcando o fim à vila, os álamos que deitam uma sombra baça,
cheia de poeira, sobre os prédios antigos, iguais aos de Moscavide e Sacavém, ali,
ainda tão perto de casa, a curva do rio a ver-se, e já eu ia leve, levezinha, a
bater os dedos no volante, esquecida da carraça que me chupa o sangue e deixa
os vasos quebradiços, os órgãos secos, a traqueia estrangulada em muitos nós,
quero respirar e não consigo. Fui e voltei. Cheguei a casa, deviam ser nove da noite,
retemperada, consolada, o bem que a música me faz, é preciso tão pouco para me
animar. Mal abri a porta veio a prole enrolar-se nas minhas pernas. Beijos e abraços,
gotas de mercúrio, inchando até serem uma só, também gosto muito de vocês,
tanto, são a luz da minha vida, o melhor que a vida me deu, o resto que se lixe,
não fossem vocês, ricos amores, e já me teria lançado ao mar, num lugar de
águas escuras, profundas, onde um peixe antigo, luminoso, iridescente, de
fiadas de dentes fininhos, me arrancasse o corpo ao pedaços.
Virei-me para a minha mãe. Pedi-lhe
para os aturar mais uma hora. Calcei uns ténis. Lá fora, a noite abafava, nem
uma brisa se levantava do rio, era uma noite de verão, estática, andavam as
tainhas mais moles do que é costume, nadando aos círculos que o cerebelo
carregado de nafta e gasolina deixa-as muito estúpidas, vinham com a cabeça à
tona para olhar com os seus olhos amarelos as estrelas e a lua. Não se via
ninguém. Passei apenas por um homem grisalho que passeava um cão minúsculo e
levava pelas costas uma mochila das jornadas peninsulares de psiquiatria. Atrasei
o passo. Corri durante uma hora. Voltei a casa. Despediu-se a avó. Tomei banho.
Deitei-me. Olhei a secretária e o computador. Lembrei-me dos meus propósitos,
tão boas as minhas intenções, agora que ninguém me reclama, agora que ninguém
me cansa, hei-de escrever todas as noites, um bocadinho de lixo todas as noites.
Não custa nada. Até ter um lixo de muitas páginas. Apaguei a luz. Mal a
escuridão entrou no quarto, pensei em mamas, rabos, pénis muito tesos ejaculando
para dentro de bocas. O orgasmo veio fácil, em meia dúzia de segundos, numa
vertigem, sem esforço, uma coisa sem jeito nenhum, sensaborona, aguada,
desoladora, profundamente triste.
Adormeci. Às três da manhã,
bradou o mais pequeno. Preciso de ti, disse e subiu à minha cama com o coelho
Botelho na mão. Às quatro da manhã, veio a do meio, vestia uma camisa de noite
cheia de anémonas, tão frágil, tão delicada, a minha filha, como uma gota de
água. Tive um pesadelo contigo e com o pai, explicou. Fica, meu amor, que a
noite não silencia os medos, nunca a escuridão os apazigua. Às cinco da manhã,
chegou o mais velho, um cristo cigano, sem dizer uma palavra, dormia ainda,
dormia de olhos muito abertos, trazia o corpo fluído de prata. Terceira gota. Ocupou
na cama o lugar do pai. Adormeci a um canto, meio corpo de fora, caindo para um
abismo de espinhos e névoas. Acordei de madrugada, chilreavam os pardais e os
melros nas árvores da praça, piu, piu, piu, piu, um frenesim matinal muito bom.
O mais novo despertou com o alarido dos pássaros. Galgou o corpo da irmã e livrou-me
do precipício. Beijou-me e adormeceu.