2013/04/19

Aninhas e as caixinhas de broas

Devia ter pouco mais de dez anos quando lhe ofereceram um livro ilustrado de fábulas. Aninhas, muito morena, cabelo curto, unhas roídas, um anelzinho de prata no dedo indicador, passava horas a lê-lo.  Lia e relia. Tomava atenção aos detalhes dos desenhos. Sentia a rugosidade das folhas e cheirava-as. A sua vida ficou para sempre marcada pela moral intuitiva desses bichos: leões, cigarras, formigas, burros, cavalos, lobos, cegonhas, grous e ovelhas. Por exemplo, sempre que um homem a abandonava, Aninhas procurava ter a astúcia da raposa que, olhando um cacho de uvas cheias e maduras, por as não poder alcançar, diz que estão demasiado verdes. Nem sempre a técnica resultava. Largada há pouco tempo por um professor de semiótica, Aninhas tentava fixar-se apenas  nos seus defeitos: a desadequação entre a careca e o brinco que usava no lóbulo esquerdo, a pança flácida tocando o seu corpo, a facilidade com que as outras mulheres lhe mereciam o superlativo absoluto sintético. Inteligentíssimas. Lindíssimas. Interessantíssimas. Fecundíssimas. Porém, mal acordava, rosto inchado de sono, as pálpebras coladas de ramelas, Aninhas lembrava apenas aquilo que desejava esquecer: as caixinhas de broas que o professor lhe trouxera pelo natal, o seu cheiro a rios de água gelada, o modo como certa vez, na entrada de um prédio, lhe abocanhara os mamilos, mordendo-os, o retalhe do seu corpo imenso na paragem de autocarro.