2015/02/07

Semáforo

Em frente do centro geriátrico “Haja Deus” há um semáforo. Todos os dias, quando volto para casa, apanho-o fechado. O centro geriátrico fica numa das poucas vivendas da Av. Gago Coutinho que ainda não sofreram obras para se transformar em colégios bilingues, escolas profissionais, sedes de empresas. As paredes, de tinta estalada, com manchas de bolor, têm uma cor suja, indefinida. Há dois grandes toldos amarelos nas janelas do primeiro andar e um toldo em forma de lagarta que vai do portão do jardim até à porta de entrada. As janelas, de caixilhos de madeira podre, estão sempre fechadas e as persianas corridas. Nunca se vê uma luz acesa. Parece que ninguém ali mora. Já o jardim, decadente, excessivamente preenchido, é habitado por uma multidão de figuras de pedra: cavaleiros, trovadores, lavadeiras, anões, sereias, fidalgos. Por todo o todo se vêem pesadas floreiras rectangulares. Nas duas floreiras que ficam por cima do pequeno portão de entrada, em forma de concha, crescem dois pés delgadinhos de rosas-de-pedra. Na sombra de um salgueiro-chorão, há uma pequena fonte de águas musgosas. Suportes de corda entrelaçada pendem dos ciprestes e balouçam quando há vento. As iluminações de Natal nunca são tiradas e, no crepúsculo do meu regresso a casa, lançam um fulgor triste. Estou certo de que, se as visse,  o Sr. Inácio gritaria à sua filha Solange: “Solange, no próximo Natal, também vou deixar as luzes postas. Poupo muito trabalhinho.” Quem, como eu, tiver uma natureza contemplativa, nunca se cansará de olhar para o jardim do centro geriátrico. Todos os dias descubro um detalhe, um novo habitante de pedra. 

Hoje, parada no semáforo, enquanto tentava a todo o custo vislumbrar o interior do centro geriátrico (uma luz estava acesa e, pela janela, consegui ver uma cabeça de cabelos muitos brancos), recordei a última vez que estive com o Alexandre. Foi pouco antes do Natal. Estivemos juntos durante duas horas. Acabámos cansados, muito transpirados. Descansámos em silêncio e, durante o tempo em que sosseguei nos seus braços, o amante intermitente, num gesto de afecto inconsequente, afagou-me docemente os cabelos. Nesse dia, recordei-o hoje, precisamente no instante em que, em frente do centro geriátrico “Haja Deus” aguardava que o sinal ficasse verde, senti que o corpo me doía. Não uma parte do corpo, mas todo o corpo. O meu corpo estava dorido como se tivesse caminhado durante muito tempo ou alguém me tivesse batido. Lembrei-me do sexo febril em “ A vida de Adéle”. Quando o sinal passou a verde, ri-me, feliz, e acelerei.