2016/06/26

Batatas doces

Durante nove meses assistiu à alteração do seu corpo com distanciamento e estranheza. Às vezes, levava as mãos ao ventre, sentia o feto serpenteando como uma cobra. A gravidez não lhe suscitava amor antecipado pela cria, nem despertava qualquer instinto maternal, apenas uma sensação de extravagância que a confundia por não corresponder à habitual beatitude das primíparas. Mantinha-se à margem, não partilhando o entusiasmo de Ester que fez um enxoval luxuoso, digno de um pequeno príncipe: cueiros de piquet, toucas bordadas, casaquinhos de malha laminada, botinhas cardadas, interiores de fibras puras, muitos babygrows pedidos por catálogo, uns de veludo confortável, outros em jersey de algodão sem mangas e de pernas curtas para as noites mais quentes. Maria escudou-se numa alegria fingida e aguardou para ver. 
No dia do parto, por coincidência, domingo, estava sozinha em casa. O marido saíra logo cedo para comprar pão e lavar o carro. Naquele tempo, os homens de Sacavém tinham o hábito de se juntar, nas manhãs de sábado e domingo, no descampado junto à estrada nacional para a limpeza das suas viaturas. Encontravam no cumprimento desse dever uma desculpa para fugir dos filhos que, enfiados nos seus roupões de flanela, olhos ainda ramelosos, lhes pediam ajuda nos deveres de casa, também das mulheres, sobrolhos carregados, mãos na ilharga, exigindo a resolução de pequenos problemas domésticos: lâmpadas fundidas, canos rotos, algerozes entupidos, rachas e fissuras das paredes a precisar de betume. Salvos da ditadura doméstica, os homens aproveitavam essas manhãs para falarem de mecânica, partilhavam dicas sobre os melhores óleos lubrificantes, lavavam jantes e aplicavam ceras protectoras na carroçaria para evitar o aparecimento de manchas corrosivas de ferrugem. 
Na manhã em que deu à luz, Maria foi à casa de banho e despiu-se com dificuldade. Notou um muco gelatinoso, com laivos de sangue, nas cuecas. Olhou-se no espelho, nua. O seu corpo tornara-se num depósito, num enorme invólucro e isso, mais do que enternecê-la, aborrecia-a. Envergonhava-se desse tédio, julgando-se, por o sentir, indigna da maternidade. Apesar do corpo cheio, sentia-se vazia, simplesmente vazia. A meio da manhã, uma dor forte chegou e o útero empinou-se, rijo e piramidal. Maria percebeu que chegara a hora. Mudou de roupa e, sentindo uma calma que a espantava, deixou-se estar sentada no sofá da sala, aguardando que o marido voltasse. Chegou cansado, pouco passava do meio-dia, o jornal debaixo do braço, o saco do pão a rojar no chão. Antes que tivesse tempo de pousar as coisas em cima da bancada da cozinha, deu-lhe a novidade:
- Temos de ir para a maternidade.
- Rebentaram-te as águas?
- Ainda não, mas já tive três contracções.
O marido olhou-a com insegurança. Deu-lhe um abraço de tal modo apertado que Maria teve de pedir que a libertasse. 
- Olha que me sufocas! - Disse e, ao sentir a incerteza do marido, o enjoativo aroma do detergente que usava para lavar o carro, achou que o amava. Não era um amor de arrebatamentos, mas era exactamente o que queria, sólido, firme, um amor que chegava no tempo certo. 
O marido pegou na malinha que Maria preparara para a maternidade e desceu para ir buscar o Toyota Corolla que, há já algum tempo, passara a guardar numa garagem arrendada no prédio ao lado. Era uma despesa a mais, sobrecarregava o orçamento familiar, mas, depois da capota cinzenta ter sido vandalizada com uma pichagem solitária contra a propriedade privada, era a única forma de salvar a viatura da mesquinhez proletária de certa vizinhança sacavenense. Abriu a porta e, antes de que a mulher se sentasse, estendeu um oleado que, sem utilidade definida, costumava guardar no porta-bagagens. 
- É que podem rebentar-te as águas no caminho e ficam os estofos ensopados. 
Maria sorriu perante o sentido prático do marido. Lá fora, abafava. Era Outubro, tempo dos marmelos e dos aguaceiros brandos. Pela primeira vez desde que engravidara sentiu um desejo caprichoso e infantil. Lembrou-se das batatas-doces que a mãe costumava fritar às rodelas e que servia, como guloseima preciosa, na ceia de Natal. Teve vontade de as comer, cozidas, assadas, fritas, até cruas se preciso fosse. Quando voltasse da maternidade, pediria ao marido que as comprasse, havia de as fritar às rodelinhas muito finas, cobri-las com polvilho de açúcar e canela, tal qual a mãe fazia, comê-las vagarosamente, um prato cheio delas, uma de cada vez, até se empanturrar e saciar esse desejo que, chegando tardio, a confortava por a tornar igual às outras mulheres.

2016/06/23

O Joaquim partiu o pé. Colocou o gesso no dia em que o João, o mais velho, o tirou. Ando com ele ao colo para toda a parte. Gosto de o carregar nos braços; ele, pelo modo como se aninha, também. "Mãe, gostas da tua vida?", perguntou ontem quando me viu, era já muito tarde, a lavar o chão da cozinha. "Gosto filho, gosto muito.", respondi, sem mentir. Larguei a esfregona e levei-o para o quarto. Hoje, deitado na cama, com o gato aos pés, acabou, pela primeira vez na sua vida, de ler sozinho um livro de muitas páginas. Estava feliz. Eu também. 

2016/06/22

Caril verde

Chovia quando saí do cinema. Caminhei à chuva. Entrei na loja chinesa da esquina da Av. de Berna com a Av. 5 de Outubro para comprar grampos. A dona é uma senhora amável, sorridente, o dono, um estranho homenzinho de bigode retorcido, sobrancelhas aparadas, unhas muito compridas. Todos os homens chineses com quem me cruzo têm unhas compridas. Entrei no banco, subi ao sexto piso, prendi o cabelo com os grampos. Olhando-me no espelho, desejei ser bela e jovem como a mulher do filme. Sentei-me à secretária e comecei a analisar um processo. Trabalhei concentradamente durante a tarde, tranquila, o trabalho liberta-me, esqueci o filme, o sonho do relógio sem ponteiros, o rosto de Marianne. À noite, depois de entregar os miúdos aos cuidados dos meus pais, fui jantar com duas amigas do bairro onde cresci. Convidam-me para jantares e aniversários dos filhos. Digo sempre que não. Arranjo desculpas. Desta vez resolvi ir. Sou outra mulher quando tomo a fluoxetina. Enquanto me arranjava, dei instruções a mim própria: vais colocar-te no lugar dos outros, vais beber moderadamente, um ou dois copos de vinho, vais escutar o que têm para te dizer, vais sorrir, vais abrir a boca e da tua boca sairão frases como “E os teus pais, como estão?” ou “ Está tão grande, o teu Francisco!”. Vesti uma túnica branca, bordada a missangas amarelas, que comprei em Nova Deli. No restaurante tailandês, sorrisos e conversas. Tudo corria às mil maravilhas, mas, quando uma das minhas amigas começou a falar das vantagens do ensino privado, percebi que não conseguia aguentar por muito mais tempo o fingimento da fluoxetina. A conversa enojou-me. Nunca colocaria um filho numa escola privada. Sou preconceituosa em relação a certos assuntos. Por essa altura, irritada, abandonei o meu corpo, a mesa, a conversa de merda. Ainda assim fiz um último esforço. Interrompi a minha amiga e disse: 
- O caril verde está uma delícia. 
Continuei a sorrir,  fui respondendo monossilabicamente, sim, não, pois é, talvez, e comecei a observar os restantes comensais. Gosto de olhar para os outros. Fixar um riso alarve, uma expressão contida, a mão que leva o garfo à boca. Numa mesa próxima, três homens e uma mulher falavam animadamente. Todos me pareceram felizes, bem vestidos, bronzeados, ali, no restaurante tailandês, onde sua alteza, o rei gago, gosta de ir molhar os bigodes. A mulher era irrelevante: cabelo bem penteado, rosto redondo, maquilhado, mãos arranjadas, um camiseiro aberto, os lábios retocados de botox. A harmonia do rosto, de tão monstruosa e insuflada, fez-me lembrar os retratos do Francis Bacon. Ainda assim, invejei a mulher dos lábios insuflados. Desejei estar sentada na sua cadeira, dentro do seu corpo e sobretudo dentro sua cabeça, rodeada de homens excessivamente bronzeados, ser o centro das atenções. 

Sou bastante estúpida, sei-o há muito. Não tenho critério no desejo de fuga. Durante a tarde, quis ser a bela, serena, literária Marianne que viaja na companhia do sogro para encontrar o marido. No restaurante tailandês, quis ser a mulher de lábios de botox que, numa exuberância comum, vulgar, tão ordinária, namoriscava com três homens ao mesmo tempo. 

2016/06/20

Festival

Mexo constantemente no cabelo, atirando de um lado para o outro um longo cacho preto. O gesto não é inocente. Procuro cativar aqueles que me escutam, não só com as palavras, mas também com uma certa sensualidade que julgo ter. Trago um decote acentuado, as minhas pernas estão cruzadas, pintei os lábios de vermelho, escolhi uns sapatos clássicos. Como pode ser sensual o decote de um sapato. Tenho uma voz clara que, bem projectada, se escuta nas últimas cadeiras do auditório. Não escuto o que digo. Apesar da assertividade fingida, e preparada, do ar seguro, não tenho interesse nas palavras que se soltam da minha boca. A literatura, assim que se explica, torna-se desinteressante. Observo apenas os meus gestos. Pergunto-me se, na cama com o poeta, terei mexido do mesmo modo no cabelo, terei sido igualmente assertiva, segura.  Há algumas semanas, uma mulher perdeu-se na crónica do Lobo Antunes. Ninguém deu pela sua falta, nem o marido, nem o filho, nem o cão. Para que serve afinal uma mulher?

2016/06/17

Mulher de sucesso


O sol brilhava e o verde dos jardins da fundação pareceu-lhe diferente. Apurou o olhar, cerrando as pálpebras, e reparou que as trepadeiras mexicanas já tinham flor. Lembrou-se, então. Fazia quarenta anos. Não atribuía qualquer importância à data. Nunca celebrava o aniversário. Nem a insistência dos filhos - gostavam do bolo, das velas acesas, do ambiente de festa -  a fazia mudar de ideias. Não era a passagem dos anos que a maçava, mas a alegria forçada do festejo, sobretudo, a obrigação de retribuir amabilidades. O marido, porém, teimara desta vez. Sempre eram quarenta anos. Festejariam com os amigos mais próximos num restaurante excessivamente caro para o ambiente informal que tinha. O sítio, segundo os suplementos de domingo dos jornais, aliava simplicidade e sofisticação. Reinventava-se ali a confecção de produtos tradicionais, celebrava-se a herança gastronómica. O marido tratara de tudo. Fizera a lista dos convidados. Escolhera uma ementa audaz. Os amigos seriam surpreendidos, logo nas entradas, com a aparição de umas minúsculas bolas de berlin com recheio de santola. Deliciar-se-iam, de seguida, com uma terrine de bacalhau, coentros e espargos. Seguir-se-ia um tornedó de vitela com molho de burzigada. Por fim, ser-lhes-ia apresentado um creme brullé de castanhas aromatizado com aguardente de medronho. Afinal, a tradição devia ser preservada e os petiscos mais populares toleravam-se desde que fossem servidos em faiança estilizada de apurada qualidade. O marido procurara também o presente ideal. Pensara, a princípio, numa jóia que assinalasse a data. Pusera de parte a ideia. A mulher nunca usava jóias. Na verdade, um brinco, por discreto que fosse, uma pulseira, um fio de ouro, resultaria num excesso insuportável. Aninhas era bela. Não necessitava de adornos. O marido acabara por optar por uma viagem. Escolhera Buenos Aires. Lembrava-se de que, certa vez, não podia precisar em que ocasião, a mulher demonstrara interesse em conhecer a capital argentina.

Afastou-se da janela e olhou para a cama. O marido dormia, alheio à luminosidade que tomara conta do quarto. Notou-lhe as escápulas nuas e, por instantes, deixou-se estar a olhá-lo. Tomou um duche rápido e, com o corpo ainda húmido, entrou no quarto de vestir. A empregada deixara pendurado, numa cruzeta, a roupa que escolhera para aquela noite. Levaria um vestido verde azeitona, sem mangas, com um drapeado largo que parecia poder desmanchar-se a qualquer instante. Era um vestido simples mas que exigia a elegância de um corpo esguio. Continuava magra. A gravidez não a deformara, mas também não lhe acentuara a feminilidade. O seu corpo nu lembrava a inocência de um corpo imberbe, de menina prestes a ter a primeira menstruação. Era a sua beleza, a elegância natural, que lhe permitia, em certas ocasiões, usar cores fortes, experimentar combinações arrojadas, imprimir até, se lhe apetecesse, certo desleixo nas escolhas. Ignorava propositadamente as tendências da moda. Se a temporada exigia saltos de vírgula, Aninhas apressava-se a oferecer à empregada todos os sapatos que encontrasse no quarto de vestir com esse tipo de salto. Se as revistas de moda aconselhavam calças justas, fazia questão de as usar largas. Tinha um estilo sóbrio e simples. Usava a extravagância com comedimento, sem pinga de folclore ou exagero. Naquela manhã, a manhã dos seus quarenta anos, escolheu umas calças de ganga e uma blusa branca. Calçou uns sapatos confortáveis. Preparou-se para sair. Atravessou o apartamento cheio de sol. Os filhos ainda dormiam. Encontrou a empregada na cozinha, preparando para o almoço o seu prato preferido. Cumprimentou-a e pediu-lhe que levasse os filhos a passear nos jardins da fundação. Estava um sol tão bonito. 

Apanhou um táxi que atravessou a cidade e a deixou na avenida onde se situavam várias lojas de marcas internacionais. Entrou no salão. O dono do cabeleireiro veio recebê-la. Cumprimentou-a com um beijinho e ofereceu-lhe um chá. Aninhas recusou com delicadeza. O dono era um homem gordo, muito expansivo, cuja afectação se justificava pela clientela que conseguira reunir ao longo dos anos: jornalistas, deputadas, uma ou outra ministra, escritoras, professoras universitárias, algumas actrizes consagradas, mas nem uma única dessas celebridades que aparecem nas capas de revista por confundir a sua profissão com meretrício. Aninhas perguntou-lhe pelo companheiro que fora operado há pouco. Não o fazia com sinceridade, não era genuína a sua preocupação. Na verdade, sentia certa repulsa quando via o dono do salão abraçar o namorado, um rapaz novo que trabalhava como colorista. Sacrificava, porém, o seu conservadorismo ao estatuto que aquela aparente intimidade lhe conferia. O salão tinha uma clientela selecta. No entanto, apenas, um círculo muito restrito, a que Aninhas pertencia, tinha direito ao convite para o chá, servido numa porcelana finíssima, quase transparente. 

Vestiu uma capa preta e sentou-se na zona de lavagem. Inclinou a cabeça para trás. Era sempre a mesma rapariga que lhe lavava a cabeça. Sabia exactamente o peso exacto que devia colocar na ponta dos dedos. Geralmente, naquela posição, Aninhas sentia que o corpo passava a ser apenas um invólucro, não pensava em nada, fechava os olhos, relaxava, às vezes, dormitava. Porém, naquela manhã, talvez porque a rapariga lhe esfregasse o couro cabeludo com movimentos circulares mais firmes, pondo naquela massagem uma intensidade que não era habitual, deu por si a deitar contas à vida. Ia fazer quarenta anos. Quarenta anos. Tinha um casamento sólido, dois filhos, uma carreira de sucesso como analista sénior numa empresa de auditoria americana, viajava frequentemente na companhia do marido, conhecia o mundo através das janelas dos hotéis de cinco estrelas, vivia num apartamento espaçoso no centro da cidade com vista para os jardins da fundação. Tinha uma empregada interna, competente e silenciosa, que compensava a sua falta de vocação materna. Quando chegava a casa, encontrava os filhos com banho tomado, o pijama vestido, já jantados, os trabalhos de casa feitos, dúvidas tiradas, preparados para dormir. Nem uma nódoa de sopa nos pijamas, nem um vestígio de birras, nenhum choro, nenhuma lágrima. Abria a porta do apartamento, pousava as chaves do carro no móvel da entrada, beijava os filhos, sentia-lhes o cheiro perfumado da cosmética infantil francesa. Tinha sempre a sensação de que aquelas crianças não lhe pertenciam. Esse sentimento não a incomodava. A empregada idolatrava-a. Achava-a a mulher mais bonita da cidade e imitava-lhe certos gestos e expressões. Aninhas era-lhe grata, embora nunca o demonstrasse. A empregada suportava o fardo da maternidade e poupava-a à vergonha de um fracasso. Se um dia os filhos falhassem, saberia que a culpa não fora sua, mas da empregada que os educara.

Para além da casa, da profissão, dos filhos, do casamento sólido, Aninhas tinha também um amante. Conhecera-o há alguns anos nos jardins da fundação. Pouco depois de se mudarem para aquela zona da cidade, ganhara o hábito de passear nos jardins. Observava com atenção as moitas de rododendros, os jardins de buxo, conhecia a floração dos pilriteiros e dos morangueiros anões. Gostava de ler num recanto mais sombrio do jardim. Certa manhã, fora surpreendida por um homem que a interpelou sobre o livro que lia. Conversaram. O homem, professor de literatura moderna, achou graça ao desmerecimento que lhe mereciam os autores clássicos e consagrados. Aninhas não os lia. Achava-os enfadonhos, mas assumia, com espantosa assertividade, esse aborrecimento. Após alguns telefonemas, acceitou almoçar com o professor de literatura moderna. Numa tarde de tédio, beijou-o, e numa tarde de maior fadiga, despiu-se e adormeceu nos seus braços. Encontravam-se, desde então, ocasionalmente num apartamento com marquises de alumínio, perto da Paiva Couceiro. A relação com o amante, apesar de intermitente, era estável e duradoura, de alicerces fundos, betonada. Exactamente como o seu casamento.

Aninhas relacionava-se com o marido sem esforço. Conheciam-se desde liceu e havia entre eles uma simbiose perfeita, um desejo de conforto e estabilidade, uma ambição não totalmente assumida de fugir das suas origens. Provinham ambos de famílias de classe média, esforçadas e honestas. Raramente voltavam ao bairro onde haviam crescido, nos subúrbios da cidade, e tinham o cuidado de nunca misturar na mesma festa os familiares com os seus novos amigos. Faziam férias na Sardenha e iam à neve quando apenas as famílias das Avenidas Novas frequentavam as estâncias espanholas. Assim que os seus hábitos se tornavam populares – a democraticidade do consumo e a facilidade no acesso ao crédito levava muitas vezes a que tal acontecesse - passavam a desprezá-los como se nunca tivessem sido seus. A empregada funcionava, muitas vezes, como indicador daquilo que podiam ou não continuar a fazer. Ainda não há muito tempo, enquanto lhes preparava o pequeno-almoço, a empregada contara que aproveitara a folga de domingo para experimentar um restaurante japonês que abrira no Cacém. Gostara dos fritos e até do peixe cru. Aninhas escutou-a e sorriu ao marido. Souberam naquele instante que não voltariam a comer sushi. Acreditavam que a estratificação social, a divisão de classes, não passa pelo dinheiro que se tem, pela casa onde se vive, pelo carro que se guia, mas apenas pela sofisticação de hábitos e interesses. Aninhas e o marido raramente discutiam porque, na verdade, raramente falavam. Eram tidos pelos amigos, pela família, pelos vizinhos, pelos colegas de trabalho, como o casal perfeito, jovens, bonitos, realizados, viajados. 

Aplicava-se, porém, na traição. Tratava o amante de maneira diferente. Estimava-o. Esmerava-se por lhe agradar, acarinhava-o como se fosse uma criança pequena. Trazia-lhe sempre uma caixinha com os primeiros morangos da época e comprava-lhe cigarros importados que espalhavam um fumo azul e adocicado pelo apartamento da Paiva Couceiro. Aninhas não sabia se o amava. Sabia apenas que precisava dele. O seu casamento, o apartamento espaçoso com vista para os jardins da fundação, as viagens, a maternidade delegada na empregada silenciosa, toda essa vida de solidez e fruição dependia da manutenção daquela relação. Quanto mais conhecia o amante, os seus defeitos, a sua banalidade, o romantismo insuportável que o fazia dizer “Meu amor”, mais Aninhas se consolava com a sobriedade do marido, a ausência total de afecto, o modo frio como lhe tocava no rosto. Nessa manhã, a manhã dos seus quarenta anos, enquanto a rapariga lhe secava a cabeça com um turco macio, percebeu que conhecera na vida apenas esses dois homens: o amante e o marido. Era uma contabilidade miserável para uma mulher de sucesso. 

Passou para a sala dos espelhos. Não precisou de explicar à cabeleireira o que queria. Usava sempre o cabelo pelos ombros, liso, ligeiramente estruturado, sem pontas enroladas para fora. Assumia os cabelos brancos numa idade em que a maior parte das suas amigas discutiam a eficácia dos métodos de coloração. A cabeleireira só uma vez lhe sugerira fazer madeixas. Aninhas, sempre tão cordata, não se conteve. Olhou-a com desdém e explicou-lhe que tinha horror a tudo o que fosse postiço. Não era o seu carácter, a sua personalidade forte, que a levavam a cultivar a autenticidade, aceitando as marcas que a passagem do tempo ia deixando no seu corpo. Era a sua beleza que lhe permitia dispensar os artifícios da cosmética capilar e zombar das vantagens da coloração artificial. Se fosse feia, pintaria o cabelo, faria extensões, submeter-se-ia a cirurgias plásticas, seria fiel às tendências da moda, maquilhando-se, penteando-se, vestindo-se de acordo com os figurinos das revistas. Tornar-se-ia, como todas as mulheres feias que conhecia, num decalque patético de um ideal de beleza artificial e ordinário.  

Foi na sala dos espelhos, enquanto a cabeleireira lhe esticava o cabelo e a manicura lhe arranjava as cutículas, que o aborrecimento tomou conta de si. A conquista foi metódica e apanhou-a desprevenida. Apoderou-se primeiro do seu espírito. Depois instalou-se no corpo. Aninhas, sentiu que se esvaziava, perdia todo o interior de entranhas, órgãos, tecidos, cartilagens, ossos, águas ensanguentadas. Ficou oca por breves instantes. Mil bichinhos minúsculos entraram depois pelos orifícios do seu corpo. Sentiu-se pesada, como se o seu avesso fosse preenchido por uma massa plúmbea. O aborrecimento triunfara sobre a certeza de uma vida preenchida e realizada. Experimentou um enfado monumental. Aquela sensação pesava-lhe nos ombros, nas pernas, no corpo todo, atrofiava-lhe os gestos, roubava-lhe a ligeireza. Levantou-se para sair. Pensou que talvez o aborrecimento, de tão denso e corpóreo, pudesse ficar preso àquela cadeira, largando-a de vez. Mal deu dois passos, em direcção à porta da saída, percebeu que o levava consigo. 

Despediu-se do dono do cabeleireiro, desejou as melhoras do namorado colorista e apanhou um táxi para casa. Levava o corpo cada vez mais pesado. Temeu, por instantes, que o aborrecimento se transformasse em angústia e a fizesse chorar. Ia a soprar nas unhas pintadas de encarnado quando o táxi parou num semáforo. A praça central da cidade estava vazia e o sol parecia aproveitar a ausência de ruído e movimento para brilhar com maior intensidade ali. Cada janela, cada pedra de calçada, cada parede era um ponto de luz e calor. Olhou com desinteresse a estátua que marcava o centro da praça. Viu a mesma coluna de sempre e, lá em cima, com corpo de chumbo comido pelo verdete, a imagem do déspota esclarecido. Preparava-se para desviar o olhar quando reparou que, na base da estátua, numa das paredes de mármore, alguém escrevera uma frase a vermelho. A tinta parecia estar ainda fresca, nela ainda não assentara a poeira da cidade, nem a fuligem dos tubos de escape. Escrita a todo o cumprimento, podia ler-se a seguinte frase “Já não te amo, Maria”. Durante o tempo em que o carro esteve parado no semáforo, Aninhas fixou aquela frase. Esqueceu por momentos o aborrecimento que sentia. Ali estava, no meio da cidade, à mercê do olhar de todos, o anúncio do fim de um amor. A frase era desconcertante. Só os que amam pincham paredes com dizeres ridículos. Que alguém, deixando de amar, readquirindo desse modo a lucidez, se tivesse dado ao trabalho de anunciar esse facto era coisa que não conseguia compreender. Aninhas desviou os olhos da estátua. Sempre achara que o amor era dispensável e tornava as pessoas imbecis. Percebia agora que o desamor era igual: dispensável e tornava as pessoas imbecis. 

Entrou em casa passava já do meio-dia. A empregada não voltara ainda do passeio nos jardins da fundação com os filhos. Um cheiro morno de pastéis de carne acabados de fritar espalhava-se pelo apartamento. Dirigiu-se ao escritório, arrastando, como se de um parasita gigante se tratasse, o seu corpo de aborrecimento. Encontrou o marido sentado, falando ao telefone. Combinava qualquer coisa para o jantar. Pela conversa, percebeu que não se arranjava santola suficiente para as entradas. Do outro lado, sugeriam rillete de faceira de porco ibérico. O marido concordou com a sugestão. Aninhas esperou que terminasse. "Quero o divórcio.", explicou-lhe, mal o viu poisar o telefone. No preciso instante em que as palavras se soltaram da sua boca, sentiu-se menos pesada. Pareceu-lhe, mas não podia assegurar, que os minúsculos bichinhos a abandonavam, chiando de excitação, e, como bolas de chumbo minúsculas, se espalhavam pelo soalho nacarado do escritório. O marido levantou os olhos. Aquiesceu sem lhe exigir justificações. Não conseguia explicar a decisão da mulher, mas, por outro lado, não a estranhava. Levantou-se e olhou pela janela os jardins da fundação. As sequóias pereceram-lhe feias e as tílias floriam em cachos brancos. Sem se virar para Aninhas, disse-lhe apenas que talvez fosse melhor desmarcar o jantar. Trataria de tudo. Nessa mesma tarde, depois de ligar aos amigos, fez as malas, despediu-se dos filhos e mudou-se para casa dos pais que viviam numa vivenda camarária que se esboroava em caliça na Amadora. A mãe recebeu-o com alegria. Sempre tolerara a nora, a impertinência daquela beleza altiva, a educação esmerada, o desprezo pelas origens burilado ao limite até se tornar numa simpatia que parecia genuína. As mulheres perfeitas, sabia-o bem, não existem. As mulheres, mesmo as perfeitas, não conseguem calar a sua natureza. Feitas a partir de uma costela, há nelas um desejo adormecido de rebelião. Cedo ou tarde, acabam por prescindir do corpo que lhes deu vida. Só assim se libertam. Só assim sossegam.   

Aninhas viu-se sozinha na noite dos seus quarenta anos. A empregada não fez perguntas. Deitou as crianças e recolheu ao quarto onde se entreteve a ver telenovelas brasileiras com os sapatos de salto de vírgula calçados. O apartamento estava mergulhado em penumbra e sombras. Era uma escuridão que a consolava. Lá fora, a noite caíra sobre os jardins da fundação, escondendo as tílias, os pilriteiros, os rododendros; só o perfil, levemente assustador, das sequóias permanecia visível. Aninhas sentou-se no escritório. Faltava-lhe fazer uma coisa. Precisava de ligar para o apartamento das marquises de alumínio, na Paiva Couceiro. Custava-lhe mais acabar a relação com o amante do que a relação com o marido. O casamento assentava num contrato e Aninhas sabia que a dissolução dos contratos se encontra prevista na lei, tutelando interesses, dividindo patrimónios, acautelando as opções de cada um. A lei parametriza a vida; cuida, de forma asséptica e eficaz daquilo que começa, mas também de tudo o que termina. A relação com o amante, porém, não assentava em premissas definidas, era volátil, inexistente. Não havia direitos, nem deveres, nem salvaguardas. Assentava apenas em sentimentos. 

Aninhas pensara durante a tarde. Nenhuma justificação lhe pareceu razoável, suficientemente plausível para acabar com aquela relação que pouco exigia e nada deixaria. Na penumbra do escritório lembrou-se então da frase que encontrara nessa manhã escrita na base da estátua na praça central da cidade. Discou o número da casa do amante. "Já não te amo, Rui.", disse-lhe com clareza, antes que ele pudesse cumprimentá-la. Era uma frase curta. Dita de supetão, não lhe exigia fingimento ou dissimulação. Porém, de tão absurda, ao dizê-la, teve vontade de soltar uma gargalha pequena. Pressentia que o amante sofria do outro lado da linha. Talvez chorasse quando desligasse o telefone. Dificilmente encontraria nos corredores da faculdade uma mulher como ela. Costumava desabafar, nas horas clandestinas que passavam no apartamento de marquises de alumínio, que as colegas cultivavam uma feminilidade esclarecida. Não tiravam o buço e, no tempo quente, usavam vestidos pingões que mostravam corpos macilentos. Aninhas não lhe queria mal. O amante, no fundo, assegurados que estivessem os mínimos de beleza e voluptuosidade, acreditava na igualdade de géneros, nas relações assentes no diálogo, nos sentimentos nobres, no amor, enfim. Era um bom homem, mas demasiado moderno para perceber que a sua decisão assentava em critérios de pura racionalidade. Não lhe podia explicar que já não precisava dele. Terminado o casamento, podia acabar com a relação que o sustentava. Aninhas sabia o que fazia: deitava-o ao lixo. Dispensava-o como aos sapatos com salto de vírgula que oferecia à empregada.

(Escrito  aos trinta e cinco anos. Achava que sabia escrever e os quarenta pareciam-me ainda distantes.)

2016/06/16

Mãos

Todos os dias, enquanto espero a minha vez, desejo ser atendida pela D. Madalena ou pela Iris, uma rapariga de sorriso trocista e magníficos sobrolhos desenhados. Não tenho sorte. “Bom dia. O que deseja?”, pergunta a Lurdes com maus modos, seca, a querer despachar serviço. Respondo-lhe, procurando não olhar para as suas mãos, tento pensar noutras coisas. O esforço é inglório. Quanto mais tento pensar noutras coisas, mais o meu olhar é atraído para as mãos da Lurdes. Acabo, num vislumbre rápido, por fixá-las. Vermelhas, como se tivessem sido escaldadas em água a ferver, as canículas arrancadas, a polpa dos dedos esfarelada, as unhas postiças a esconder as verdadeiras, escamadas, amarelas de micoses e fungos. Sei que são assim porque volta e meia, à Lurdes, cai-lhe uma unha postiça e vejo o que está por baixo. Umas mãos assim devem cheirar a alhos grelados. Não aguento a visão das mãos da Lurdes. Fico agoniada. Sinto culpa por sentir agonia perante umas mãos que trabalham. Podia tomar o pequeno-almoço noutro café, no refeitório do banco, mas estou habituada a começar o dia ali, no snack-bar do Apolo 70, com o jornal, um café duplo e um pão com manteiga, entretida com as notícias, quase sempre distraída a observar quem passa. Os meus companheiros de pequeno-almoço, aqueles que diariamente espio, cujos gestos e manias conheço há muitos anos, são sempre os mesmos: o padre reformado que traz o buldogue ao colo, o ajudante de farmácia vaidoso, a mulher feia despeitada que critica a beleza alheia, a costureira pequenina da cave, sentada ao balcão de pernas cruzadas, os indianos da loja de telemóveis, rapazes sérios de bigodinhos ralos. Leio o jornal, bebo o café, trinco o pão com manteiga. Mal o mastigo. A minha vontade é deixá-lo no prato, mas tenho medo que a Lurdes perceba de que não o como por ter nojo das mãos que o prepararam. Não quero ofendê-la. Não gosto de ofender ninguém.

2016/06/15

Duas



Comprou uma marreta, partiu-se em duas e, numa só, foi Adalgisa e Adaljosa. 

2016/06/14

Ponta dos dedos

Não sou deus, mas para lá caminho. A escrita salvou-me. Já não apanho o comboio das oito para trabalhar num edifício de escritórios. Já não como frango assado aos domingos. Deixei de cheirar mal dos pés. Desaprendi o significado de palavras que escrevi durante muitos anos: litispendência, discricionariedade, réu, citação. A escrita melhorou a minha vida: curou-me do melasma, emagreci cinco quilos e aprendi a mastigar de boca fechada. Também deixei de coçar os pêlos púbicos para depois cheirar a ponta dos dedos. Tal gesto, parece-me, não fica bem a quem escreve. Uma vez por outra, de vez em quando, tenho vontade de ir passear ao outlet de Alcochete para ver as montras dos saldos, mas rapidamente esqueço esses devaneios e mergulho nos poemas do Dylan Thomas. Talvez um dia me atreva a escrever poesia. 

2016/06/13

Flauta azul

Cortava o pequeno lombo de porco aos cubos, para depois o fritar para o jantar dos miúdos, quando o sol, de um amarelo moribundo, mas intenso, da cor do açafrão, bateu nas minhas mãos ensanguentadas fazendo desenhos de luz. As minhas mãos são pequenas, de dedos curtos e unhas roídas, feias, mas o sangue e o sol transformaram as minhas mãos. Se soubesse desenhar, desenhá-las-ia naquele preciso instante. Peguei na garrafa de cerveja e bebi o que dela restava. Com esse gesto, pegar na garrafa e levá-la à boca, as minhas mãos fugiram do sol. Isso afligiu-me profundamente. Ouvi as instruções de Julie. Une flute? Une flute. E o som frágil, mavioso, de uma flauta azul inundou a cozinha. Continuei a cortar a carne. Novamente o sol indiano nas minhas mãos. 

2016/06/10

Hora de jantar

Ninguém podia falar. O pai exigia silêncio. De olhos postos no televisor, comendo devagar, prestava atenção às notícias que a locutora ia apresentado. O jantar era sempre assim: o pai vendo o telejornal, os filhos comendo em silêncio, a mãe, em frenesim tardio, depois de um dia de trabalho, despachando o que houvesse a despachar para estar pronta à hora da telenovela. Ana estava bem avisada sobre a postura que devia ter durante a refeição: silêncio absoluto para não perturbar o pai e, se possível, se quisesse agradar-lhe, mostrar interesse nas notícias. Por vezes, distraía-se. Esquecida das ordens, falava com a irmã mais nova. Lúcia era habilidosa com as mãos. Para controlar a ansiedade que o silêncio imposto lhe causava, tinha o hábito de fazer dobragens com as folhas translúcidas dos guardanapos. À hora do jantar, saiam das suas mãos cravos, nenúfares, pequenas rosas.
- Que rosinha tão linda!
- Gostas?
- Ensina-me a fazer…
- Tu não és capaz, Ana!
- Sou sim!
- Tens sempre negativa a Trabalhos Manuais…
- Estúpida.
Riam-se. O pai não dizia nada quando via as filhas alegres, continuava a ver televisão, mas descaíam-lhe os cantos da boca, os olhos ficavam gelados. Carlos, o filho mais velho, chumbara já duas vezes no curso de Direito, era um desgraçado, nunca seria ninguém na vida, as raparigas, via-se bem, iam pelo mesmo caminho. Duas filhas, duas ignorantes que se deslumbravam com flores de papel em vez de se interessarem pelas notícias do mundo. A mãe, aflita, temendo que a desilusão do marido se transformasse em raiva, abria os olhos. “O vosso pai está a ver o telejornal!”, acabava por dizer. Lúcia logo esmagava a flor de papel na mão. Calava-se. Ana fingia não ouvir, mas, quando o pai por fim a mandava calar, desprezo na voz, calava-se também. Aquilo custava-lhe. Sentia então raiva, fazia por se controlar, não podia responder, a resposta poderia desencadear reacções violentas no pai. Ana, nesses instantes, assustava-se: pressentia que se tivesse ao seu alcance uma pedra, uma faca bem afiada, mataria o pai. Mexia com o garfo o arroz branco no prato. Não gostava de arroz branco, mas em casa, para além das batatas a acompanhar o peixe cozido, apenas se comia arroz, sempre branco, sempre cozido em água e sal. O pai só gostava de arroz branco. Observava os azulejos das paredes, a mãe, numa azáfama, de volta do fogão e do lava-loiças. Tudo era triste e desolador: o egoísmo do pai, a subserviência da mãe, a violência contida em cada gesto à hora de jantar.
Passados alguns anos, já Ana e Lúcia eram adolescentes, Carlos saíra de casa para viver num quarto alugado, o pai – talvez por sugestão da mãe – passou a jantar sozinho na sala. Depois de tomar banho, de robe e pijama, sentava-se na poltrona em frente da televisão. Cheirava bem, a sabonete e champô, estava limpo, tinha mãos bonitas, um cabelo espesso, muito preto. Ana sentia vontade de se sentar ao seu lado, mas não era capaz. O pai era um estranho, um homem que vivia na mais completa solidão. Antes de começar o telejornal, a mãe levava o tabuleiro à sala: um pano lavado, o arroz na quantidade exacta, uma costeleta frita, molho sobre o arroz, a acompanhar, um copo de vinho. Voltava depois à cozinha, onde, sentadas à mesa, Ana e Lúcia a esperavam para começar a jantar. Comiam em silêncio. Estavam habituadas ao silêncio. Tudo continuava a ser triste e desolador. Só o pai, concentrado nas notícias, sem ter ninguém a perturbá-lo, parecia agradado com a mudança. A sua felicidade era evidente: estava acompanhado pelo mundo e sua gente, mas livre da família.

2016/06/09

Lucia Berlin



Como um livro de contos pode ser um extraordinário romance.

2016/06/07

Menino Jesus

Falei durante trinta e nove minutos e quatro segundos, ao telefone, com o meu melhor amigo. Falámos sobre o Zola, a Lucia Berlin, a Inês Fonseca Santos, o Diogo Vaz Pinto - não o disse ao Ricardo, mas acho que fazem um lindo par -, e também sobre as bebedeiras do meu filho João. É bom ter um amigo. Sinto-me tão feliz por ter o Ricardo na minha vida que bebo mais um copo de moscatel e danço para o gato com floreados grotescos de mãos cansadas.

2016/06/05

Comportamento incaracterístico selvagem

O gato dorme em cima do frigorífico. Fumo, bebo e escuto o Elvis cantar "Suspicious minds" . Leio a bula da fluoxetina. Deixei de a tomar em Outubro de 2014. A ela volto. Já não recordava a extensa lista de efeitos secundários: dificuldade de engolir, diarreia, arrepios, dores de cabeça, alterações do sono ou sonhos anormais, euforia, movimentos involuntários, agitação extrema, perda de cabelo, disfunção sexual, secura da boca, falta de ar, erecções prolongadas, comportamentos de automutilação, e, o meu preferido, comportamento incaracterístico selvagem. “Deve evitar o álcool enquanto estiver a tomar este medicamento”. São divertidos os folhetos informativos dos medicamentos. Não se devem levar muito a sério, caso contrário uma pessoa dá em doida. Engulo um comprimido com um gole de moscatel de Setúbal. É tão docinho. Amachuco a folha de papel numa bola e atiro-a para o corredor. O gato desperta do seu sono e, ziguezagueando de um modo estranho, aos gangões, corre para a apanhar. Estaria a ter um sonho anormal? Abro a agenda e leio os textos que escrevi nos últimos dias, o início de dois contos, a imitar descaradamente o estilo da Lucia Berlin, as habituais notas sobre o dia-a-dia: aulas de natação, passeios no parque depois das aulas, discussões com o João, julgamentos, um grupo de rapazes na pizzaria, os olhos do meu pai, episódios do Inspector Morse, o choro incontido e em toda a parte, o aniversário do Sr. Branquinho no restaurante Chocalho em Alcáçovas. Uma a uma, lentamente, rasgo as folhas escritas da agenda. Faço bolas de papel. Atiro-as em todas as direcções. O gato está eufórico. 

2016/06/01

Lucy

Li, por estes dias, um livro do Coetzee. Lá para o meio do romance há uma violação brutal, primitiva, africana no pior sentido, a fazer lembrar o tal profeta Joseph Koni de que ontem falava o jornal. A violência da cena, é muita, também é dada pela reacção da vítima, uma jovem mulher, que, não sendo assumidamente lésbica, prescinde da companhia dos homens. Essa mulher aceita a sujeição ao sujeito soberano. É essa inicial passividade, motivada por razões ideológicas, que, mais do que a violência física, violenta o leitor. É bom escritor, o Coetzee, dos que mais gosto de ler. Mas, consumada a violação, quando, em meia dúzia de linhas, se debruça sobre, como lhes chama, os assuntos de sangue das mulheres - menstruação, parto e violação - escreve o seguinte: violar uma lésbica é pior do que violar uma virgem: é um golpe mais forte. Li, sublinhei, reli, tenho pensado muito no assunto e juro que ainda não percebi. Deve ser preciso ser homem, ter certo discernimento, para perceber.

(1 de Maio de 2012)