O sol brilhava e o verde dos jardins da fundação pareceu-lhe diferente. Apurou o olhar, cerrando as pálpebras, e reparou que as trepadeiras mexicanas já tinham flor. Lembrou-se, então. Fazia quarenta anos. Não atribuía qualquer importância à data. Nunca celebrava o aniversário. Nem a insistência dos filhos - gostavam do bolo, das velas acesas, do ambiente de festa - a fazia mudar de ideias. Não era a passagem dos anos que a maçava, mas a alegria forçada do festejo, sobretudo, a obrigação de retribuir amabilidades. O marido, porém, teimara desta vez. Sempre eram quarenta anos. Festejariam com os amigos mais próximos num restaurante excessivamente caro para o ambiente informal que tinha. O sítio, segundo os suplementos de domingo dos jornais, aliava simplicidade e sofisticação. Reinventava-se ali a confecção de produtos tradicionais, celebrava-se a herança gastronómica. O marido tratara de tudo. Fizera a lista dos convidados. Escolhera uma ementa audaz. Os amigos seriam surpreendidos, logo nas entradas, com a aparição de umas minúsculas bolas de berlin com recheio de santola. Deliciar-se-iam, de seguida, com uma terrine de bacalhau, coentros e espargos. Seguir-se-ia um tornedó de vitela com molho de burzigada. Por fim, ser-lhes-ia apresentado um creme brullé de castanhas aromatizado com aguardente de medronho. Afinal, a tradição devia ser preservada e os petiscos mais populares toleravam-se desde que fossem servidos em faiança estilizada de apurada qualidade. O marido procurara também o presente ideal. Pensara, a princípio, numa jóia que assinalasse a data. Pusera de parte a ideia. A mulher nunca usava jóias. Na verdade, um brinco, por discreto que fosse, uma pulseira, um fio de ouro, resultaria num excesso insuportável. Aninhas era bela. Não necessitava de adornos. O marido acabara por optar por uma viagem. Escolhera Buenos Aires. Lembrava-se de que, certa vez, não podia precisar em que ocasião, a mulher demonstrara interesse em conhecer a capital argentina.
Afastou-se da janela e olhou para a cama. O marido dormia, alheio à luminosidade que tomara conta do quarto. Notou-lhe as escápulas nuas e, por instantes, deixou-se estar a olhá-lo. Tomou um duche rápido e, com o corpo ainda húmido, entrou no quarto de vestir. A empregada deixara pendurado, numa cruzeta, a roupa que escolhera para aquela noite. Levaria um vestido verde azeitona, sem mangas, com um drapeado largo que parecia poder desmanchar-se a qualquer instante. Era um vestido simples mas que exigia a elegância de um corpo esguio. Continuava magra. A gravidez não a deformara, mas também não lhe acentuara a feminilidade. O seu corpo nu lembrava a inocência de um corpo imberbe, de menina prestes a ter a primeira menstruação. Era a sua beleza, a elegância natural, que lhe permitia, em certas ocasiões, usar cores fortes, experimentar combinações arrojadas, imprimir até, se lhe apetecesse, certo desleixo nas escolhas. Ignorava propositadamente as tendências da moda. Se a temporada exigia saltos de vírgula, Aninhas apressava-se a oferecer à empregada todos os sapatos que encontrasse no quarto de vestir com esse tipo de salto. Se as revistas de moda aconselhavam calças justas, fazia questão de as usar largas. Tinha um estilo sóbrio e simples. Usava a extravagância com comedimento, sem pinga de folclore ou exagero. Naquela manhã, a manhã dos seus quarenta anos, escolheu umas calças de ganga e uma blusa branca. Calçou uns sapatos confortáveis. Preparou-se para sair. Atravessou o apartamento cheio de sol. Os filhos ainda dormiam. Encontrou a empregada na cozinha, preparando para o almoço o seu prato preferido. Cumprimentou-a e pediu-lhe que levasse os filhos a passear nos jardins da fundação. Estava um sol tão bonito.
Apanhou um táxi que atravessou a cidade e a deixou na avenida onde se situavam várias lojas de marcas internacionais. Entrou no salão. O dono do cabeleireiro veio recebê-la. Cumprimentou-a com um beijinho e ofereceu-lhe um chá. Aninhas recusou com delicadeza. O dono era um homem gordo, muito expansivo, cuja afectação se justificava pela clientela que conseguira reunir ao longo dos anos: jornalistas, deputadas, uma ou outra ministra, escritoras, professoras universitárias, algumas actrizes consagradas, mas nem uma única dessas celebridades que aparecem nas capas de revista por confundir a sua profissão com meretrício. Aninhas perguntou-lhe pelo companheiro que fora operado há pouco. Não o fazia com sinceridade, não era genuína a sua preocupação. Na verdade, sentia certa repulsa quando via o dono do salão abraçar o namorado, um rapaz novo que trabalhava como colorista. Sacrificava, porém, o seu conservadorismo ao estatuto que aquela aparente intimidade lhe conferia. O salão tinha uma clientela selecta. No entanto, apenas, um círculo muito restrito, a que Aninhas pertencia, tinha direito ao convite para o chá, servido numa porcelana finíssima, quase transparente.
Vestiu uma capa preta e sentou-se na zona de lavagem. Inclinou a cabeça para trás. Era sempre a mesma rapariga que lhe lavava a cabeça. Sabia exactamente o peso exacto que devia colocar na ponta dos dedos. Geralmente, naquela posição, Aninhas sentia que o corpo passava a ser apenas um invólucro, não pensava em nada, fechava os olhos, relaxava, às vezes, dormitava. Porém, naquela manhã, talvez porque a rapariga lhe esfregasse o couro cabeludo com movimentos circulares mais firmes, pondo naquela massagem uma intensidade que não era habitual, deu por si a deitar contas à vida. Ia fazer quarenta anos. Quarenta anos. Tinha um casamento sólido, dois filhos, uma carreira de sucesso como analista sénior numa empresa de auditoria americana, viajava frequentemente na companhia do marido, conhecia o mundo através das janelas dos hotéis de cinco estrelas, vivia num apartamento espaçoso no centro da cidade com vista para os jardins da fundação. Tinha uma empregada interna, competente e silenciosa, que compensava a sua falta de vocação materna. Quando chegava a casa, encontrava os filhos com banho tomado, o pijama vestido, já jantados, os trabalhos de casa feitos, dúvidas tiradas, preparados para dormir. Nem uma nódoa de sopa nos pijamas, nem um vestígio de birras, nenhum choro, nenhuma lágrima. Abria a porta do apartamento, pousava as chaves do carro no móvel da entrada, beijava os filhos, sentia-lhes o cheiro perfumado da cosmética infantil francesa. Tinha sempre a sensação de que aquelas crianças não lhe pertenciam. Esse sentimento não a incomodava. A empregada idolatrava-a. Achava-a a mulher mais bonita da cidade e imitava-lhe certos gestos e expressões. Aninhas era-lhe grata, embora nunca o demonstrasse. A empregada suportava o fardo da maternidade e poupava-a à vergonha de um fracasso. Se um dia os filhos falhassem, saberia que a culpa não fora sua, mas da empregada que os educara.
Para além da casa, da profissão, dos filhos, do casamento sólido, Aninhas tinha também um amante. Conhecera-o há alguns anos nos jardins da fundação. Pouco depois de se mudarem para aquela zona da cidade, ganhara o hábito de passear nos jardins. Observava com atenção as moitas de rododendros, os jardins de buxo, conhecia a floração dos pilriteiros e dos morangueiros anões. Gostava de ler num recanto mais sombrio do jardim. Certa manhã, fora surpreendida por um homem que a interpelou sobre o livro que lia. Conversaram. O homem, professor de literatura moderna, achou graça ao desmerecimento que lhe mereciam os autores clássicos e consagrados. Aninhas não os lia. Achava-os enfadonhos, mas assumia, com espantosa assertividade, esse aborrecimento. Após alguns telefonemas, acceitou almoçar com o professor de literatura moderna. Numa tarde de tédio, beijou-o, e numa tarde de maior fadiga, despiu-se e adormeceu nos seus braços. Encontravam-se, desde então, ocasionalmente num apartamento com marquises de alumínio, perto da Paiva Couceiro. A relação com o amante, apesar de intermitente, era estável e duradoura, de alicerces fundos, betonada. Exactamente como o seu casamento.
Aninhas relacionava-se com o marido sem esforço. Conheciam-se desde liceu e havia entre eles uma simbiose perfeita, um desejo de conforto e estabilidade, uma ambição não totalmente assumida de fugir das suas origens. Provinham ambos de famílias de classe média, esforçadas e honestas. Raramente voltavam ao bairro onde haviam crescido, nos subúrbios da cidade, e tinham o cuidado de nunca misturar na mesma festa os familiares com os seus novos amigos. Faziam férias na Sardenha e iam à neve quando apenas as famílias das Avenidas Novas frequentavam as estâncias espanholas. Assim que os seus hábitos se tornavam populares – a democraticidade do consumo e a facilidade no acesso ao crédito levava muitas vezes a que tal acontecesse - passavam a desprezá-los como se nunca tivessem sido seus. A empregada funcionava, muitas vezes, como indicador daquilo que podiam ou não continuar a fazer. Ainda não há muito tempo, enquanto lhes preparava o pequeno-almoço, a empregada contara que aproveitara a folga de domingo para experimentar um restaurante japonês que abrira no Cacém. Gostara dos fritos e até do peixe cru. Aninhas escutou-a e sorriu ao marido. Souberam naquele instante que não voltariam a comer sushi. Acreditavam que a estratificação social, a divisão de classes, não passa pelo dinheiro que se tem, pela casa onde se vive, pelo carro que se guia, mas apenas pela sofisticação de hábitos e interesses. Aninhas e o marido raramente discutiam porque, na verdade, raramente falavam. Eram tidos pelos amigos, pela família, pelos vizinhos, pelos colegas de trabalho, como o casal perfeito, jovens, bonitos, realizados, viajados.
Aplicava-se, porém, na traição. Tratava o amante de maneira diferente. Estimava-o. Esmerava-se por lhe agradar, acarinhava-o como se fosse uma criança pequena. Trazia-lhe sempre uma caixinha com os primeiros morangos da época e comprava-lhe cigarros importados que espalhavam um fumo azul e adocicado pelo apartamento da Paiva Couceiro. Aninhas não sabia se o amava. Sabia apenas que precisava dele. O seu casamento, o apartamento espaçoso com vista para os jardins da fundação, as viagens, a maternidade delegada na empregada silenciosa, toda essa vida de solidez e fruição dependia da manutenção daquela relação. Quanto mais conhecia o amante, os seus defeitos, a sua banalidade, o romantismo insuportável que o fazia dizer “Meu amor”, mais Aninhas se consolava com a sobriedade do marido, a ausência total de afecto, o modo frio como lhe tocava no rosto. Nessa manhã, a manhã dos seus quarenta anos, enquanto a rapariga lhe secava a cabeça com um turco macio, percebeu que conhecera na vida apenas esses dois homens: o amante e o marido. Era uma contabilidade miserável para uma mulher de sucesso.
Passou para a sala dos espelhos. Não precisou de explicar à cabeleireira o que queria. Usava sempre o cabelo pelos ombros, liso, ligeiramente estruturado, sem pontas enroladas para fora. Assumia os cabelos brancos numa idade em que a maior parte das suas amigas discutiam a eficácia dos métodos de coloração. A cabeleireira só uma vez lhe sugerira fazer madeixas. Aninhas, sempre tão cordata, não se conteve. Olhou-a com desdém e explicou-lhe que tinha horror a tudo o que fosse postiço. Não era o seu carácter, a sua personalidade forte, que a levavam a cultivar a autenticidade, aceitando as marcas que a passagem do tempo ia deixando no seu corpo. Era a sua beleza que lhe permitia dispensar os artifícios da cosmética capilar e zombar das vantagens da coloração artificial. Se fosse feia, pintaria o cabelo, faria extensões, submeter-se-ia a cirurgias plásticas, seria fiel às tendências da moda, maquilhando-se, penteando-se, vestindo-se de acordo com os figurinos das revistas. Tornar-se-ia, como todas as mulheres feias que conhecia, num decalque patético de um ideal de beleza artificial e ordinário.
Foi na sala dos espelhos, enquanto a cabeleireira lhe esticava o cabelo e a manicura lhe arranjava as cutículas, que o aborrecimento tomou conta de si. A conquista foi metódica e apanhou-a desprevenida. Apoderou-se primeiro do seu espírito. Depois instalou-se no corpo. Aninhas, sentiu que se esvaziava, perdia todo o interior de entranhas, órgãos, tecidos, cartilagens, ossos, águas ensanguentadas. Ficou oca por breves instantes. Mil bichinhos minúsculos entraram depois pelos orifícios do seu corpo. Sentiu-se pesada, como se o seu avesso fosse preenchido por uma massa plúmbea. O aborrecimento triunfara sobre a certeza de uma vida preenchida e realizada. Experimentou um enfado monumental. Aquela sensação pesava-lhe nos ombros, nas pernas, no corpo todo, atrofiava-lhe os gestos, roubava-lhe a ligeireza. Levantou-se para sair. Pensou que talvez o aborrecimento, de tão denso e corpóreo, pudesse ficar preso àquela cadeira, largando-a de vez. Mal deu dois passos, em direcção à porta da saída, percebeu que o levava consigo.
Despediu-se do dono do cabeleireiro, desejou as melhoras do namorado colorista e apanhou um táxi para casa. Levava o corpo cada vez mais pesado. Temeu, por instantes, que o aborrecimento se transformasse em angústia e a fizesse chorar. Ia a soprar nas unhas pintadas de encarnado quando o táxi parou num semáforo. A praça central da cidade estava vazia e o sol parecia aproveitar a ausência de ruído e movimento para brilhar com maior intensidade ali. Cada janela, cada pedra de calçada, cada parede era um ponto de luz e calor. Olhou com desinteresse a estátua que marcava o centro da praça. Viu a mesma coluna de sempre e, lá em cima, com corpo de chumbo comido pelo verdete, a imagem do déspota esclarecido. Preparava-se para desviar o olhar quando reparou que, na base da estátua, numa das paredes de mármore, alguém escrevera uma frase a vermelho. A tinta parecia estar ainda fresca, nela ainda não assentara a poeira da cidade, nem a fuligem dos tubos de escape. Escrita a todo o cumprimento, podia ler-se a seguinte frase “Já não te amo, Maria”. Durante o tempo em que o carro esteve parado no semáforo, Aninhas fixou aquela frase. Esqueceu por momentos o aborrecimento que sentia. Ali estava, no meio da cidade, à mercê do olhar de todos, o anúncio do fim de um amor. A frase era desconcertante. Só os que amam pincham paredes com dizeres ridículos. Que alguém, deixando de amar, readquirindo desse modo a lucidez, se tivesse dado ao trabalho de anunciar esse facto era coisa que não conseguia compreender. Aninhas desviou os olhos da estátua. Sempre achara que o amor era dispensável e tornava as pessoas imbecis. Percebia agora que o desamor era igual: dispensável e tornava as pessoas imbecis.
Entrou em casa passava já do meio-dia. A empregada não voltara ainda do passeio nos jardins da fundação com os filhos. Um cheiro morno de pastéis de carne acabados de fritar espalhava-se pelo apartamento. Dirigiu-se ao escritório, arrastando, como se de um parasita gigante se tratasse, o seu corpo de aborrecimento. Encontrou o marido sentado, falando ao telefone. Combinava qualquer coisa para o jantar. Pela conversa, percebeu que não se arranjava santola suficiente para as entradas. Do outro lado, sugeriam rillete de faceira de porco ibérico. O marido concordou com a sugestão. Aninhas esperou que terminasse. "Quero o divórcio.", explicou-lhe, mal o viu poisar o telefone. No preciso instante em que as palavras se soltaram da sua boca, sentiu-se menos pesada. Pareceu-lhe, mas não podia assegurar, que os minúsculos bichinhos a abandonavam, chiando de excitação, e, como bolas de chumbo minúsculas, se espalhavam pelo soalho nacarado do escritório. O marido levantou os olhos. Aquiesceu sem lhe exigir justificações. Não conseguia explicar a decisão da mulher, mas, por outro lado, não a estranhava. Levantou-se e olhou pela janela os jardins da fundação. As sequóias pereceram-lhe feias e as tílias floriam em cachos brancos. Sem se virar para Aninhas, disse-lhe apenas que talvez fosse melhor desmarcar o jantar. Trataria de tudo. Nessa mesma tarde, depois de ligar aos amigos, fez as malas, despediu-se dos filhos e mudou-se para casa dos pais que viviam numa vivenda camarária que se esboroava em caliça na Amadora. A mãe recebeu-o com alegria. Sempre tolerara a nora, a impertinência daquela beleza altiva, a educação esmerada, o desprezo pelas origens burilado ao limite até se tornar numa simpatia que parecia genuína. As mulheres perfeitas, sabia-o bem, não existem. As mulheres, mesmo as perfeitas, não conseguem calar a sua natureza. Feitas a partir de uma costela, há nelas um desejo adormecido de rebelião. Cedo ou tarde, acabam por prescindir do corpo que lhes deu vida. Só assim se libertam. Só assim sossegam.
Aninhas viu-se sozinha na noite dos seus quarenta anos. A empregada não fez perguntas. Deitou as crianças e recolheu ao quarto onde se entreteve a ver telenovelas brasileiras com os sapatos de salto de vírgula calçados. O apartamento estava mergulhado em penumbra e sombras. Era uma escuridão que a consolava. Lá fora, a noite caíra sobre os jardins da fundação, escondendo as tílias, os pilriteiros, os rododendros; só o perfil, levemente assustador, das sequóias permanecia visível. Aninhas sentou-se no escritório. Faltava-lhe fazer uma coisa. Precisava de ligar para o apartamento das marquises de alumínio, na Paiva Couceiro. Custava-lhe mais acabar a relação com o amante do que a relação com o marido. O casamento assentava num contrato e Aninhas sabia que a dissolução dos contratos se encontra prevista na lei, tutelando interesses, dividindo patrimónios, acautelando as opções de cada um. A lei parametriza a vida; cuida, de forma asséptica e eficaz daquilo que começa, mas também de tudo o que termina. A relação com o amante, porém, não assentava em premissas definidas, era volátil, inexistente. Não havia direitos, nem deveres, nem salvaguardas. Assentava apenas em sentimentos.
Aninhas pensara durante a tarde. Nenhuma justificação lhe pareceu razoável, suficientemente plausível para acabar com aquela relação que pouco exigia e nada deixaria. Na penumbra do escritório lembrou-se então da frase que encontrara nessa manhã escrita na base da estátua na praça central da cidade. Discou o número da casa do amante. "Já não te amo, Rui.", disse-lhe com clareza, antes que ele pudesse cumprimentá-la. Era uma frase curta. Dita de supetão, não lhe exigia fingimento ou dissimulação. Porém, de tão absurda, ao dizê-la, teve vontade de soltar uma gargalha pequena. Pressentia que o amante sofria do outro lado da linha. Talvez chorasse quando desligasse o telefone. Dificilmente encontraria nos corredores da faculdade uma mulher como ela. Costumava desabafar, nas horas clandestinas que passavam no apartamento de marquises de alumínio, que as colegas cultivavam uma feminilidade esclarecida. Não tiravam o buço e, no tempo quente, usavam vestidos pingões que mostravam corpos macilentos. Aninhas não lhe queria mal. O amante, no fundo, assegurados que estivessem os mínimos de beleza e voluptuosidade, acreditava na igualdade de géneros, nas relações assentes no diálogo, nos sentimentos nobres, no amor, enfim. Era um bom homem, mas demasiado moderno para perceber que a sua decisão assentava em critérios de pura racionalidade. Não lhe podia explicar que já não precisava dele. Terminado o casamento, podia acabar com a relação que o sustentava. Aninhas sabia o que fazia: deitava-o ao lixo. Dispensava-o como aos sapatos com salto de vírgula que oferecia à empregada.
(Escrito aos trinta e cinco anos. Achava que sabia escrever e os quarenta pareciam-me ainda distantes.)