Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2016/12/31
2016/12/27
Lenço preto
Ia alternando: ora ficava em casa de Solange, ora na de Adélia. Gostava mais de ficar na vivenda de Adélia onde tinha um quarto só para si e um quintal onde se entretinha a arrancar as folhas secas das roseiras e os joios que cresciam nos canteiros. No apartamento de Solange sentia-se presa, passava muito tempo à janela da cozinha como se só aí, no parapeito, observando o movimento da rua, conseguisse estar. Nesse Natal, chegou muito debilitada, o corpo cada vez mais torto e respirando com dificuldade. Toda a vida sofrera de falta de ar sem nunca lhe ter sido feito um diagnóstico ou proposta qualquer terapêutica. Em Felicidade notava-se um permanente arfar pesado, mas sempre que se sentia mais aflita recorria a mezinhas antigas: tomava chá de folhas de eucalipto e, por conselho de uma vizinha de São Bartolomeu, nos últimos tempos, fumava cigarros feitos com as folhas secas de uma planta que crescia nos terrenos arenosos junto da ribeira. Às vezes, para acalmar a chiadeira das secreções, também usava as folhas da planta em cataplasmas que aplicava no peito antes de dormir. Solange aceitava os remédios caseiros da mãe, mas torcia o nariz quando a via na casa de banho, sentada na sanita, fumando aqueles estranhos cigarros.
- Isso tem algum jeito… – dizia com paciência, sorrindo, mas achando tudo aquilo disparatado e até um pouco triste.
Nesse último Natal, nem os cigarros que fumou, nem os chás que bebeu nem sequer as cataplasmas que aplicou surtiram efeito. Tossia muito, cada vez mais. Às vezes, parecia quase sufocar; nos intervalos, abria a boca como uma carpa chinesa e respirava fundo para sentir o ar chegar aos pulmões. Os ataques provocavam-lhe constantes perdas urinárias que faziam com que largasse um cheiro adocicado de urina e exsudação. Era um cheiro intenso, enjoativo, mas que não causava a Solange propriamente repulsa. Notava, porém, o desconforto do marido e das filhas quando, sentados a ver televisão, viam Felicidade chegar da cozinha e sentar-se a seu lado.
Nessa manhã de Dezembro, ainda de robe traçado, o cabelo num desalinho, Solange arranjava um pedaço de carne para fazer o almoço. Preparava-se para cortar os pés de porco, rijos como cornos, de uma brancura, tão lisa e fúnebre, que faziam lembrar cotos de estearina ardendo em tocheiros de santuários e capelas. Cortado, o chispe cozia melhor, bastava meia hora na panela de pressão e ficava gelatinoso, tenro, desfazia-se em lascas.
Foi então que Felicidade entrou na cozinha. Cheirava pior do que costume, um bafo excessivo parecia libertar-se do seu corpo e espalhar-se, não só na cozinha, mas por todo o apartamento. Solange notou-lhe uma grande mancha na bata e, sentindo uma tristeza repentina, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Não querendo revelar essa fraqueza à mãe, continuou o que estava a fazer. Ergueu o cutelo e procurou localizar as articulações para não falhar o corte. Com um golpe vigoroso partiu em dois o chispe, mas, foi tal a força que imprimiu ao gesto, que se rachou a tábua de cozinha. O periquito, que afiava o bico na pedra de cálcio, amedrontou-se e piou de um modo esquisito.
- Mãezinha, antes do almoço, vou dar-lhe banho, está bem? - Disse Solange, enquanto metia a carne na panela de pressão. Pressentia que o cansaço de Felicidade já não lhe permitia tratar sozinha da sua higiene. A mãe anuiu como se não entendesse bem o significado do que a filha dizia.
Solange aqueceu a casa de banho para evitar constipações, encheu a banheira de água tépida, colocou a roupa interior a aquecer no radiador a óleo. Depois, com cuidado, ajudou a mãe a despir-se. Tirou-lhe a bata, a saia, a camisola, a combinação, as meias de lã que usava sempre presas com uma liga de elástico preto. Felicidade ficou apenas de cuecas e sutiã, de lenço na cabeça.
- Vá, vamos lá tirar o resto! - Disse Solange com despacho, disfarçando o desconforto que a iminente revelação da nudez da mãe lhe provocava.
Felicidade porventura já não sentia o corpo vivo ou talvez estivesse demasiado cansada para sentir vergonha. Tirou as cuecas e desapertou os colchetes do sutiã com uma naturalidade que impressionou Solange. Deixou-se ficar nua, de pé, em frente da filha: corpo exposto, mas de lenço na cabeça.
- Tire lá o lenço! Há quanto tempo é que essa cabeça não é lavada em condições? – Perguntou Solange e, desviando o olhar das mamas e do sexo da mãe, fez um gesto para lhe tirar o lenço.
Felicidade recuou, levando as mãos à cabeça. Solange estranhou o gesto: a mãe parecia não ter vergonha de estar nua à sua frente, mostrava-lhe com uma estranha desenvoltura a plenitude da sua nudez enrugada, assexuada, mas recusava revelar-lhe essa outra nudez. Sabia que o lenço era uma espécie de segunda pele para a mãe. Na aldeia, todas as mulheres mais velhas ainda o usavam: com um nó apertado por baixo do queixo ou, nos dias de mais calor, atado atrás do pescoço. Que se lembrasse, só uma mulher mais velha andava sempre de cabeça descoberta. Era a irmã da Preciosa, mas essa tinha desculpa: para além de muda, era meio atrasada. Passava os dias a comer caramelos e a embalar bonecas na aduela da porta. Pois, com excepção da muda, todas as mulheres da geração da mãe usavam lenço; o lenço era um sinal de honra, de dignidade, sobretudo de respeito pelos maridos mortos.
Felicidade continuou a teimar como uma criança, agarrada ao lenço preto. Solange acabou por se irritar com a teimosia e fez-se ríspida: chegou perto da mãe e, com brusquidão, arrancou-lhe o lenço da cabeça. Viu um crânio liso, muito lustroso, calvo. Apenas um penacho de cabelos brancos nasciam no cocuruto, tornando ainda mais triste a sua aparência. A mãe era completamente careca.
- O cabelo começou a cair quando o paizinho morreu… – Explicou Felicidade tapando a cabeça com as mãos. – Fiquei sozinha, filha, tinha muitas saudades dele! Quanto mais triste me sentia mais o cabelo me caía. Foi caindo, caindo até ficar assim…
Solange voltou a sentir vontade de chorar. Colocou o lenço na cabeça da mãe, atando-o atrás para que não se molhasse. Depois, ajudou-a a entrar na banheira e deu-lhe banho, já sem estranhar a sua nudez. Lavou-a como se fosse uma criança, notando a fragilidade daquele corpo sempre escondido do sol: uma vida de trabalho no campo e a pele lisa, tão branca. Lavou-a com vagar: tronco, pernas, braços, os pés cheios de calosidades. Sentada na banheira, nua, o lenço atado na cabeça, Felicidade parecia não se sentir desapossada do seu corpo. Às vezes sorria à filha como que a dizer-lhe que lhe sabia bem a ternura daquele momento.
(A minha avó chamava-se Felicidade. No Natal, oferecia-me livros e chocolates embrulhados em lindas pratinhas.)
2016/12/23
Florlinda
As janelas da casa amarela estão abertas para deixar entrar o fresco do final da tarde. Consigo ver o interior: pesadas jarras de loiça, estantes cheias de livros, molduras com fotografias da criança morta. Nas paredes, imitações de quadros famosos, baratas gigantes, de carapaça brilhante, osgas de patinhas gordas. Tento imaginar a criança morta a brincar com as osgas de patinhas gordas, mas a Florlinda, sim, é a Florlinda, vem a sair da escola. Veste um colete de pele de coelho e traz umas botas de cano alto. Ao ver-me sentada dentro do carro, acena com um sorriso. Não quero que me veja neste estado. Tenho vergonha. Não é uma mulher inteligente, a Florlinda, é aliás burra que nem uma porta, mesquinha também, mas é gentil. Limpo as lágrimas com as costas das mãos, sorvo o pingo do nariz e aceno-lhe de volta.
Madeira perfumada
Acordei indisposta, com dores de cabeça. Vomitei no lavatório da casa de banho. Bati duas vezes com a cabeça na parede ao pensar nos textos que ontem aqui escrevi, também nas várias mensagens que enviei ao João Pedro. O álcool torna-me má, invejosa e miserável. Também me faz mal à pele. Vesti-me, lavei o rosto com água fria, beijei os meus filhos (dormiam ainda) e fui trabalhar. A meio da manhã, incapaz de me concentrar, fui à igreja de Nossa Senhora de Fátima. Sentei-me dentro de um dos confessionários, encostei a cabeça à madeira perfumada e adormeci.
2016/12/20
Ricardo Álvaro
Amanhã, almoço com o meu melhor amigo. Nada me podia deixar mais feliz. Hei-de dançar quando o vir chegar. Braços no ar como se lhes desse o vento, eu, novamente, com dezoito anos, a primeira bebedeira, olhos fechados, a dançar no átrio da Escola Herculano de Carvalho. Vou dormir. Acabou-se o licor de uísque.
Fotografam-se poetas com os seus gatos e os seus filhos louros, espantosas e adoráveis criancinhas que comem compota de mirtilos ao pequeno-almoço, anunciam os escritores o seu sucesso, uma notícia ali, uma crítica acolá, um prémio de mil euros atribuído pela Junta de Freguesia de Argoncilhe, caramba, caramba, como sou bom escritor!, lê a jovem poeta um poema do Carlos Drumond de Andrade com se fosse uma gata com o cio, mostra a menina poeta os livros que faz manualmente, folhinhas secas, florinhas secas e papel pardo, ai, que coisa mais bonita, rejubilam os leitores com os merdosos livros que leram, levam-se a sério os críticos que escrevem em jornais de referência, tão cheios de si próprios, fodendo os outros críticos que tentam escrever nos jornais de referência, gritam os deprimidos o seu desespero (por que não se matam?), escreve a professora de filosofia o seu diário, nunca revelando um desespero, um orgasmo, o sufocar lento da solidão, passeios à chuva, isso sim, uma conversa de café, isso sim, um marmeleiro florido, isso sim, e é tudo e é tão pouco, indignam-se os medíocres, discutem os preguiçosos, grita o gigante de Gulpilhares que sabe escrever, ó, santo deus, se sabe!, pois se foi finalista daquele prémio literário, a culpa de não ser publicado é da editora com ar de sonsa que escreve letras para fados, mostra o editor velho, velhíssimo, feiíssimo, a sua pescaria em São Tomé. Tudo isto comentam os pobres de espírito, de preferência com corações, risonhos e fiadas de pontos de exclamação.
O frio de Trancoso
Encontrei o Manuel da Silva Ramos na Avenida Marquês de Tomar. Perguntou-me se continuava a escrever. Disse-lhe que não e desculpei-me com os filhos, o trabalho até tarde. Falámos sobre o frio de Trancoso, sobre o lançamento do livro do Tiago e sobre os livros do escritor egípcio. Despediu-se pouco depois com a desculpa de ter de ir escrever o próximo capítulo do último livro. Fiquei a ver o escritor desaparecer na Avenida Marquês de Tomar. À medida que caminhava, distanciando-se, tive a sensação de que era a própria literatura quem de mim fugia.
2016/12/16
Sete escravas de ouro
Agarrou-a pelo braço e levou-a para a varanda. Foi a primeira vez que a trancou completamente nua. Teresa não reagiu, não gritou, não bateu com os punhos nas vidraças, como fazia no início, apenas encolheu o corpo para se proteger do frio.
Rui viu um pouco de televisão e depois foi deitar-se. Dormiu sossegado, não acordou para beber água nem mesmo para ir à casa-de-banho. Ao acordar teve a vaga sensação de ter tido sonhos felizes. Talvez por isso a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi a da sua mãe caminhando de mãos dadas com Ana à beira do lago. Ana era uma criança encantadora, alegre e, pelo modo como falava, um pouco belfa, a voz cheia de mimo, cativava qualquer pessoa. Até o tio Alberto sorria quando Ana se sentava ao seu colo e lhe pedia que contasse a história do Pinto Calçudo. Só se lembrou de Teresa quando o sol, entrando pelas frestas dos estores, fez brilhar os frascos de perfume pousados na cómoda. Nua na varanda. Como teria passado a noite? Ainda não fazia muito frio, mas, durante a noite, arrefecia. Sentiu angústia por ter trancado a mulher na varanda, mas não experimentou arrependimento. Pôs-se à escuta para ver se ouvia algum ruído vindo da varanda. Nada. A casa estava quieta, silenciosa e apenas o sol, incindindo nos frascos de perfume, parecia quebrar a calma aparente que pairava sobre os objectos. Por instantes, temeu que tivesse acontecido alguma coisa a Teresa. E se tivesse saltado da varanda? “Vou ao terraço e atiro-me cá para baixo…”, era a frase que usava sempre que discutiam. Uma frase desesperada, mas dita calmamente, cada palavra pronunciada com lentidão, como se só assim a ameaça pudesse ser encarada como real. Não suportava que Teresa a dissesse, sobretudo em frente de Ana.
Afastou os pensamentos sombrios e procurou prolongar as rotinas para adiar o momento em que abriria o trinco da varanda e encararia a mulher. Tomou banho, esfregou bem o pescoço e as costas, fez a barba com vagar, passando a lâmina duas vezes no rosto para a pele ficar macia. Preparou o pequeno-almoço. Deu comida ao gato que, mansamente, se enrolou nos seus pés. Foi espreitar a filha: Ana dormia profundamente, enrolada aos pés da cama. Quando já não tinha mais nada a tratar, entrou na sala. Afastou os cortinados. Lá fora, Teresa continuava encolhida: a cabeça encostada à banqueta onde o gato dormitava nas tardes de sol, os pés e os lábios azuis do frio. Durante a noite, arrancara as folhas das plantas e despejara sobre si a terra dos vasos. Naquela posição, coberta de terra, folhas e flores, Teresa pareceu-lhe pequena, frágil e ainda mais bela. Sentiu uma erecção e lembrou-se do verso de um poema. O ruído do trinco da porta fez com que a mulher abrisse os olhos. Levantou-se e, sem o olhar, sem nada dizer, caminhou na direcção do quarto. Ficou um rasto de terra no chão encerado da sala. O tilintar das sete escravas de ouro que Teresa usava sempre no braço esquerdo quebrou por fim o silêncio da manhã.
2016/12/12
Antes do baile verde
Não pegava num livro desde o dia 18 de Setembro. Hoje, não sei o que me deu, li vários contos da Lygia Fagundes Telles. Apesar do desespero dos últimos tempos - de que serve a terapia, a medicação rigorosamente observada, as consultas de quinze em quinze dias, se a doença volta sempre?-, fui inundada por uma alegria imensa. Gostava de ser capaz de escrever assim, exactamente assim: com talento e precisão.
Andrei Efimitch
Falei sobre "A enfermaria nº 6" ao meu psiquiatra. Não conhecia. "Nunca leu Tchekhov?!", perguntei com espanto, irritação maternal, usando um tom insuportavelmente pedante, tentando de alguma forma inverter os nossos papéis. Cansada de falar sobre mim ao jovem psiquiatra, tentei que o jovem psiquiatra partilhasse alguma coisa sobre si próprio. Não acho justo que saiba tudo sobre a minha pessoa, cada medo, cada lágrima, cada inquietação e eu, para além de que trabalha em Santa Maria e gosta de "As virgens suicidas", nada conheça da sua vida. Respondeu com naturalidade: "Não, Ana, nunca li Tchekhov". E continuou em silêncio.
Carica
Aos dez anos, fui com os meus pais a Marrocos. Comi bolos areados na melhor pastelaria de Rabat. Coloquei as mãos em concha por baixo da cabeça decepada. Em praias desertas, apanhei búzios e conchas vermelhas. Mergulhei no mar e o meu cabelo ficou emaranhado com pequenas algas verdes. Dormi numa tenda de campismo. O colchão cheirava ao plástico da boneca recebida no Natal. Senti um perverso deleite ao ver a pele da tia Dé queimada pelo sol. Invejei o casal francês que viajava numa pequena auto-caravana. Observei o pai francês brincar com os filhos. Voltei a sentir inveja. A caminho de Marraquexe, no Toyota vermelho, comi pão com doce de tomate e fatias de melancia. O sumo da melancia escorreu pelo meu pescoço. Fiquei com as mãos pegajosas do doce de tomate. Ajudei a minha mãe a escolher pratos de bronze, potes de barro pintado à mão e banquetas de couro. Bebi chá de hortelã, servido num bule de prata. Vi um negro com um grande angioma abraçado uma mulher muito bela. Não vi o deserto. Também não vi camelos. Mas, num restaurante de estrada, bebi pela primeira vez na vida Coca-Cola. Guardei a carica por causa das estranhas letras árabes. Ainda a tenho.