(Passei o dia a trautear esta canção. Pensei, enquanto caminhava, no meu amor. Tem mãos grandes, mas não sabe abraçar-me.)
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2015/02/12
URSS
Sentados no velho sofá da sala, folheamos o grande livro vermelho. Observamos construções extravagantes, estádios, piscinas, prédios de apartamentos, museus, teatros, palácios de casamentos e de rituais fúnebres. Imagens de uma arquitectura insólita, bela, onírica, vanguardista. O meu filho aponta para uma luminária que, cacheada de lâmpadas, se assemelha a uma gigantesca medusa, depois ajeita o edredão que lhe tapa as pernas. É um edredão bonito, trouxe-o de Jaipur. Pintado manualmente com carimbos de madeira, talvez tenha sido feito por mãos do tamanho das suas. Leio-lhe em voz alta nomes de cidades: Minsk, Chisinau, Vilnius, Baku, Erevan, Talin.
2015/02/10
2015/02/07
Semáforo
Em frente do centro geriátrico “Haja Deus” há um semáforo. Todos os dias, quando volto para casa, apanho-o fechado. O centro geriátrico fica numa das poucas vivendas da Av. Gago Coutinho que ainda não sofreram obras para se transformar em colégios bilingues, escolas profissionais, sedes de empresas. As paredes, de tinta estalada, com manchas de bolor, têm uma cor suja, indefinida. Há dois grandes toldos amarelos nas janelas do primeiro andar e um toldo em forma de lagarta que vai do portão do jardim até à porta de entrada. As janelas, de caixilhos de madeira podre, estão sempre fechadas e as persianas corridas. Nunca se vê uma luz acesa. Parece que ninguém ali mora. Já o jardim, decadente, excessivamente preenchido, é habitado por uma multidão de figuras de pedra: cavaleiros, trovadores, lavadeiras, anões, sereias, fidalgos. Por todo o todo se vêem pesadas floreiras rectangulares. Nas duas floreiras que ficam por cima do pequeno portão de entrada, em forma de concha, crescem dois pés delgadinhos de rosas-de-pedra. Na sombra de um salgueiro-chorão, há uma pequena fonte de águas musgosas. Suportes de corda entrelaçada pendem dos ciprestes e balouçam quando há vento. As iluminações de Natal nunca são tiradas e, no crepúsculo do meu regresso a casa, lançam um fulgor triste. Estou certo de que, se as visse, o Sr. Inácio gritaria à sua filha Solange: “Solange, no próximo Natal, também vou deixar as luzes postas. Poupo muito trabalhinho.” Quem, como eu, tiver uma natureza contemplativa, nunca se cansará de olhar para o jardim do centro geriátrico. Todos os dias descubro um detalhe, um novo habitante de pedra.
Hoje, parada no semáforo, enquanto tentava a todo o custo vislumbrar o interior do centro geriátrico (uma luz estava acesa e, pela janela, consegui ver uma cabeça de cabelos muitos brancos), recordei a última vez que estive com o Alexandre. Foi pouco antes do Natal. Estivemos juntos durante duas horas. Acabámos cansados, muito transpirados. Descansámos em silêncio e, durante o tempo em que sosseguei nos seus braços, o amante intermitente, num gesto de afecto inconsequente, afagou-me docemente os cabelos. Nesse dia, recordei-o hoje, precisamente no instante em que, em frente do centro geriátrico “Haja Deus” aguardava que o sinal ficasse verde, senti que o corpo me doía. Não uma parte do corpo, mas todo o corpo. O meu corpo estava dorido como se tivesse caminhado durante muito tempo ou alguém me tivesse batido. Lembrei-me do sexo febril em “ A vida de Adéle”. Quando o sinal passou a verde, ri-me, feliz, e acelerei.
2015/02/01
Olho
Depois de dar o almoço aos miúdos, fui ao Pingo Doce fazer
as compras da semana. Comprei bolachas e pacotinhos de leite com chocolate para
os lanches, esparguete, macarrão, arroz, azeite, lixívia, listerine, duas
garrafas de vinho, ervilhas, batatas, cebolas, tofina, comprei borrego, frango
e carne de vaca para estufar com cenouras e nabo. Esta semana não trouxe peixe.
O meu luxo foi trazer um gel de banho da le petit marseillais. É caro, muito
caro para a minha carteira, mas a minha filha gosta do cheiro a leite de baunilha.
Compro com cuidado, comparando preços, procurando sempre as promoções e o que é
mais barato. Quando pago a conta penso sempre na sorte que tenho em ter um
ordenado mensal, fixo, que me permite alimentar, cuidar dos meus filhos. Quando
cheguei a casa, depois de poisar os sacos na cozinha, corri aos quartos. O João
esmerava-se nas cábulas para o teste de Geografia, a Madalena e o Joaquim,
cabeças debruçadas sobre os livros, escreviam. “Já sei escrever olho”, disse-me
o mais pequeno. Senti uma alegria genuína, intensa, única. Coisa tão parva.
Aproximei-me, beijei-lhe os caracóis e disse baixinho “Meu amor, gosto tanto de
ti.”Arrumei as compras, organizei a despensa e o frigorífico. Desfiz o
tomilho-limão sobre a carne de vaca que deixara já temperada com alho. Depois, cônscia
de que a minha liberdade é sempre efémera, deitei-me atravessada na cama a ler
a Adília Lopes. Entrava um sol morno pela janela e a minha rua, de prédios
altos, pareceu-me bonita, ampla. Li a nota que a Adília escreveu para o seu livro: “Acho que era a Sylvia Plath que estava convencida, por volta de 1950, que para
escrever romances era preciso ter amantes e fazer viagens. É um mito, isso dos
amantes e das viagens. Pode-se ser feliz e escrever romances sem ter amantes e
se fazer viagens. Mais importante que amantes e viagens é ter um espaço
próprio, um domínio, um território, uma casa, pelo menos um quarto com privacidade,
como muito bem viu Virgínia Woolf”. Continuei a ler, li dois ou três textos,
depois peguei em “ A Letra Escarlate” que ando a reler e onde, ontem, já tão tarde, descobri a
palavra “cônscio”.