2015/11/29

2015/11/27

Abstinência

Para me livrar do longo período de abstinência literária, uma amável desconhecida aconselhou-me, via facebook, um livro do Miguel Real. Larguei um “foda-se!” para dentro, bebi, de trago, o vinho que restava no copo e acendi outro cigarro.

2015/11/26

Caminho

À beira da estrada que atravessa a montanha, num pequeno canteiro lamacento, uma mulher coloca pés de arroz na terra. Sozinha, vestida com um sari puído, já sem cor definida, a mulher é uma sombra, um traço quase invisível. Traz um alforge imundo a tiracolo. Desse alforge tira os rebentos, depois, de forma mecânica, enterra-os na lama. A visão da mulher causa desconforto. Costumo ser indiferente à miséria dos outros, centrada que vivo na minha pequenez, mas qualquer coisa naquela mulher me desarma. Talvez seja o alforge imundo ou a certeza de que os seus pés gelam dentro da água. O meu incómodo dura pouco. A habitual egolatria alcança-me como uma flecha certeira. Já os abutres, no céu de nuvens baixos, voam em círculos, à espera do banquete. Na estrema do terreno, perto de uma palafita de chapas de zinco, avista-se uma bananeira de folhas largas. O verde dessas folhas, atravessado pelo sol, é de tal forma esplendoroso que, perante tanta beleza e harmonia, rapidamente esqueço a miséria da mulher enterrada nas lamas. Sinto um doce aperto no peito, uma vontade passageira de chorar. 

2015/11/25

Gunga Din

Li a mensagem do Tiago a desmarcar o nosso encontro. Fiquei irritada. Quem é que escreve a palavra “miasmas” numa sms? Senti-me também estúpida, muito estúpida. De manhã, por causa dele, maquilhara-me com cuidado, escolhera o sobretudo cintado preto e os sapatos de saltos altos que comprei em Bilbau. São bonitos, mas apertam-me os joanetes. Para me livrar da irritação, decidi ir ao cinema. Ao meio-dia, no Monumental, vira no jornal, passava “Um anjo sentado à minha mesa”, da Jane Campion. Saí a correr do escritório. Caminhei apressadamente enquanto falei com a minha irmã ao telefone. Falámos da nossa mãe, do aniversário do Pedro, dos bilhetes para a festa de Natal. Cheguei cansada, cheia de dores nos pés. Na parede do Monumental, um cartaz anunciava a reposição das três cores do Kieslowski. Dezembro vai ser um mês bom: hei-de rever o velho juiz, com ele beberei copinhos de aguardente de pêra.  Era capaz de amar um velho assim, que me confessasse, não as suas glórias, mas a sua mesquinhez, não a sua força, mas a fragilidade porosa dos seus ossos. Um velho que me oferecesse copinhos de aguardente de pêra. Mal as luzes da sala se apagaram, libertei-me dos sapatos de saltos altos. Aguentei o filme durante três horas. Não é grande coisa. A actriz que faz de Janet Frame, com as suas momices de louca, irritou-me. Adormeci quando é internada no hospício. Ando cansada e os estereótipos dão-me sono. Os loucos não são assim. Acordei com o grito de uma anã. Voltei a acompanhar a história da escritora neozelandesa. Janet já não tem os dentes podres e conhece um velho escritor que gosta de apanhar banhos de sol nu. O velho dá-lhe vários e preciosos conselhos para que possa desenvolver a sua arte. “Tens de libertar-te dos subúrbios. Não podes escrever no meio de acomodados e burgueses”, diz o velho. Que parvo! Na confortável escuridão da sala de cinema vazia, ri-me de tamanha estupidez. Há velhos e velhos. Quando o filme terminou, contrariada, voltei a enfiar os pés nos sapatos de saltos altos. À saída, a luz de inverno animou-me. Parei no Galeto. Comi dois croquetes ao balcão. Bebi uma imperial. Voltei para o trabalho. No cruzamento da Avenida da República com a João Crisóstomo, num semáforo, perdi a capa de um salto. Continuei a andar. Manca e dorida. Ao bater nas pedras da calçada o salto do sapato fazia um estranho ruído metálico. Lembrei-me do bico de um melro a bater no vidro do carro do meu pai, numa manhã de neblina, em Goa. Para não me esquecer, para nunca me esquecer, sentindo o frio no rosto, repeti para dentro: Dylan Thomas, Gunga Din, Dylan Thomas, Gunga Din, Dylan Thomas, Gunga Din…

2015/11/19

Amendoim

Deixei o último romance da Elena Ferrante a meio. De repente, sem perceber muito bem a razão, deixei de ter interesse na história de Lina e Lenuccia. Passou um mês. Desde então, para além de um pequenino livro do Amos Oz sobre fanatismo (“tornei-me escritor por causa da pobreza, da solidão e dos gelados.”) e de alguns poemas de Álvaro de Campos, lidos na vã tentativa de os explicar ao meu filho João, não li nada. Mesmo nada. É como se uma bruxa me tivesse lançado um feitiço. Sinto um vazio, um vazio que me paralisa e estupidifica, mas que não consigo contrariar. Em vez de ler, vejo televisão: novelas, concursos e programas de culinária. Vejo também alguma pornografia, sem grande entusiasmo, mais por desfastio do que propriamente por necessidade. Ontem, pensando neste longo período de desintoxicação literária, enquanto experimentava uma receita que aprendi na televisão – barras de chocolate preto com amendoim salgado -, percebi finalmente como posso livrar-me do vazio, desta incompreensível e absoluta desnecessidade de ler.


2015/11/18

2015/11/13

Mar

Não pego num livro há mais de três semanas. Não sou capaz. Ler faz-me sentir e faz-me pensar. Não quero sentir e não quero pensar. Quero ser apenas engraçadinha. Desejo, sem condescendência ou paternalismos, ser a rapariga que ontem seguia na carruagem quase vazia do comboio. Tinha formas voluptuosas, unhas em garra e um lindo cabelo escuro. Saiu na estação de Entrecampos. Não tenho fé, nem sei rezar, mas acredito na salvação. Uma evidência: o facto de desprezar os crentes que conheço não tem de me afastar de Deus. De manhã, a caminho da escola, o Joaquim disse:
 
- As rotundas das cidades, de todas as cidades do mundo, são lugares tristes.
 
Acho que o meu filho tem razão. As rotundas das cidades, de todas as cidades do mundo, são lugares tristes. Nanni Moretti olhou-me de frente enquanto ajeitava o laço. Beijei-o na boca, depois no feio nariz, por fim nos olhos cansados. Sou uma casa habitada. Não conheço a geometria da solidão. No domingo, quando o Reinaldo vier buscar os miúdos, meto-me no carro e vou ver o mar. Quero muito ver o mar: chegar à beirinha da água, arregaçar as calças, largar meias e sapatos, molhar os pés.

2015/11/12

Goldmonexx

Não tenho dinheiro para me aguentar até ao final do mês. Enquanto não chega o cartão de crédito que pedi, fui à Goldmonexx, na Amadora, penhorar duas libras de ouro e a salva de prata que um tio do meu ex-marido nos ofereceu quando casámos. Esperava encontrar atrás do guichet de vidro, de nariz adunco, olhos malvados, uma velha parecida à que atormentava Raskólnikov. Imaginei a velha, má, cínica, diabólica, ali, na Goldmonexx da Amadora, a esfregar as mãos de contente quando me visse entrar, pobre mãe de família, envergonhada dos seus apertos. Quando dei de caras com um homem de meia-idade, cabelo branco e ralo, feições regulares, vestido com um simples pulover preto, senti alguma desilusão. Novamente dei conta de que a literatura deturpa – e de que maneira! – a realidade. Na vida real nem os prestamistas têm ar de prestamistas. Apesar do aspecto desinteressante, da ausência de fibra literária, o homem  foi amável e eficiente. Fez-me assinar um papel e, sem conversas, passou-me um rolinho de notas que me apressei a enfiar no bolso invisível da mala.

Apanhei o comboio de volta para Lisboa. Na carruagem quase vazia, vendo os subúrbios passar, pensando no  bilhetinho que à noite escreveria ao Joaquim, senti-me tranquila, em paz, liberta de preocupações. Assumir a minha miséria afinal não custou nada. É só dinheiro. Depois de anos sombrios, de tão pesada angústia, acho que sou finalmente feliz. É um sentimento estranho. Não estou habituada a sentir-me assim. No próximo mês, precisando, vendo as pulseirinhas, os fios, os crucifixos que as tias do meu ex-marido ofereceram quando os miúdos nasceram. “Cristo salva!”, costumavam dizer as tias nos seus conciliábulos. Cristo salvar-me-á: não na cruz, mas na pequena balança digital do homem da Goldmonexx.

2015/11/04

Cheiro

Comem as papaias, as mangas, as vagens do tamarindo, também os frutos das pequenas árvores que o tio Filipinho plantou junto do muro rendilhado. Roubam as aparas de coco que secam ao sol. Às vezes, anda a Juanita a estender roupa, aparecem de surpresa e, atrevidos, talvez imitando gestos observados nos homens da aldeia, levantam-lhe a saia do sari. Gritam permanentemente. Quando o fazem mostram dentes raiados de castanho e as altas gengivas muito cor-de-rosa. Durante a tarde, em vez de procurarem uma sombra, juntam-se em cima do telhado, grupos de quatro ou cinco, e, como se fossem gente, falam animadamente. O Moreno e a Michelle, que vivem no apartamento do primeiro andar, andam com os nervos à flor da pele. Queixam-se que não conseguem dormir a sesta. Pediram por isso à tia Maria que, no piso térreo, mandasse preparar o quarto que era do tio Babai. Um quarto amplo, junto da cozinha, habitado por cristos padecentes e nossas senhoras de olhar triste. Já o meu pai, cansado dos trabalhos nas repartições públicas de Margão, dorme sossegado. Liga a ventoinha, deita-se, fecha os olhos. Conta que, apesar da distância, consegue sentir o cheiro da minha mãe. Concentrado nesse doce cheiro, o cheiro da minha mãe, rapidamente adormece. Não escuta a alegria dos macacos que desceram da montanha e invadiram a aldeia.

2015/11/02

Renda preta

O Miguel vem a Lisboa na próxima semana. Mandou-me um mail a dizer que gostava de almoçar comigo. Não ando com cabeça para almoços, mas estou disponível para encontrar-me com ele, ao final do dia, num hotel ou numa pensão limpinha. Não me deito com um homem há muito tempo. E preciso. Avisei-o que, se aceitar o meu convite, terá de ser ele a pagar o quarto. Nos últimos meses, por causa dos manuais escolares, dos aniversários dos rapazes, das múltiplas inscrições em actividades extra-curriculares, das vacinas para o gato, do arranjo do carro, tenho pouco dinheiro. O meu amigo ainda não me respondeu, mas eu já fui adiantando serviço: tirei o buço, os pêlos das pernas, das axilas e das virilhas. Os meus ombros estão dourados do sol. Decidi que, se nos encontramos, usarei as cuecas de renda preta que comprei para ir a um festival literário. Imaginava que, à semelhança do que acontece lá fora, os festivais literários portugueses eram locais de animado convívio. A Mila chegou a dizer-me que alguns, mais a norte, eram mesmo uma pouca-vergonha de fornicação e bebedeiras. Acreditei no que a minha querida amiga me disse e, ingénua, fui na expectativa, não só de escutar poetas, escritores, editores, jornalistas da especialidade, mas também de, a um ou outro, mostrar as minhas cuecas de renda preta. Ouvi intervenções interessantes, passei a admirar ainda mais certos escritores (e a detestar ao ponto da náusea e da regurgitação outros), conheci homens inteligentes, amáveis, sedutores, mas sexo que é bom e faz tão bem à saúde nem vê-lo. A desilusão que apanhei foi de tal ordem que, na volta, meti as cuecas de renda preta no fundo da gaveta e jurei não voltar a um festival literário. Nunca mais voltei a usá-las. Na próxima semana, se deus-nosso-senhor quiser, volto a dar-lhes uso. Quando me despir para o Miguel, quando desapertar lentamente os botões das calças, as cuecas de renda preta cumprirão finalmente o seu destino: serão mostradas a um escritor.

2015/11/01