Lenço preto

Ia alternando: ora ficava em casa de Solange, ora na de Adélia. Gostava mais de ficar na vivenda de Adélia onde tinha um quarto só para si e um quintal onde se entretinha a arrancar as folhas secas das roseiras e os joios que cresciam nos canteiros. No apartamento de Solange sentia-se presa, passava muito tempo à janela da cozinha como se só aí, no parapeito, observando o movimento da rua, conseguisse estar. Nesse Natal, chegou muito debilitada, o corpo cada vez mais torto e respirando com dificuldade. Toda a vida sofrera de falta de ar sem nunca lhe ter sido feito um diagnóstico ou proposta qualquer terapêutica. Em Felicidade notava-se um permanente arfar pesado, mas sempre que se sentia mais aflita recorria a mezinhas antigas: tomava chá de folhas de eucalipto e, por conselho de uma vizinha de São Bartolomeu, nos últimos tempos, fumava cigarros feitos com as folhas secas de uma planta que crescia nos terrenos arenosos junto da ribeira. Às vezes, para acalmar a chiadeira das secreções, também usava as folhas da planta em cataplasmas que aplicava no peito antes de dormir. Solange aceitava os remédios caseiros da mãe, mas torcia o nariz quando a via na casa de banho, sentada na sanita, fumando aqueles estranhos cigarros.
- Isso tem algum jeito… – dizia com paciência, sorrindo, mas achando tudo aquilo disparatado e até um pouco triste.
Nesse último Natal, nem os cigarros que fumou, nem os chás que bebeu nem sequer as cataplasmas que aplicou surtiram efeito. Tossia muito, cada vez mais. Às vezes, parecia quase sufocar; nos intervalos, abria a boca como uma carpa chinesa e respirava fundo para sentir o ar chegar aos pulmões. Os ataques provocavam-lhe constantes perdas urinárias que faziam com que largasse um cheiro adocicado de urina e exsudação. Era um cheiro intenso, enjoativo, mas que não causava a Solange propriamente repulsa. Notava, porém, o desconforto do marido e das filhas quando, sentados a ver televisão, viam Felicidade chegar da cozinha e sentar-se a seu lado.

Nessa manhã de Dezembro, ainda de robe traçado, o cabelo num desalinho, Solange arranjava um pedaço de carne para fazer o almoço. Preparava-se para cortar os pés de porco, rijos como cornos, de uma brancura, tão lisa e fúnebre, que faziam lembrar cotos de estearina ardendo em tocheiros de santuários e capelas. Cortado, o chispe cozia melhor, bastava meia hora na panela de pressão e ficava gelatinoso, tenro, desfazia-se em lascas.
Foi então que Felicidade entrou na cozinha. Cheirava pior do que costume, um bafo excessivo parecia libertar-se do seu corpo e espalhar-se, não só na cozinha, mas por todo o apartamento. Solange notou-lhe uma grande mancha na bata e, sentindo uma tristeza repentina, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Não querendo revelar essa fraqueza à mãe, continuou o que estava a fazer. Ergueu o cutelo e procurou localizar as articulações para não falhar o corte. Com um golpe vigoroso partiu em dois o chispe, mas, foi tal a força que imprimiu ao gesto, que se rachou a tábua de cozinha. O periquito, que afiava o bico na pedra de cálcio, amedrontou-se e piou de um modo esquisito.
- Mãezinha, antes do almoço, vou dar-lhe banho, está bem? - Disse Solange, enquanto metia a carne na panela de pressão. Pressentia que o cansaço de Felicidade já não lhe permitia tratar sozinha da sua higiene. A mãe anuiu como se não entendesse bem o significado do que a filha dizia.

Solange aqueceu a casa de banho para evitar constipações, encheu a banheira de água tépida, colocou a roupa interior a aquecer no radiador a óleo. Depois, com cuidado, ajudou a mãe a despir-se. Tirou-lhe a bata, a saia, a camisola, a combinação, as meias de lã que usava sempre presas com uma liga de elástico preto. Felicidade ficou apenas de cuecas e sutiã, de lenço na cabeça.
 - Vá, vamos lá tirar o resto! - Disse Solange com despacho, disfarçando o desconforto que a iminente revelação da nudez da mãe lhe provocava.
Felicidade porventura já não sentia o corpo vivo ou talvez estivesse demasiado cansada para sentir vergonha. Tirou as cuecas e desapertou os colchetes do sutiã com uma naturalidade que impressionou Solange. Deixou-se ficar nua, de pé, em frente da filha: corpo exposto, mas de lenço na cabeça.
- Tire lá o lenço! Há quanto tempo é que essa cabeça não é lavada em condições? – Perguntou Solange e, desviando o olhar das mamas e do sexo da mãe, fez um gesto para lhe tirar o lenço.
Felicidade recuou, levando as mãos à cabeça. Solange estranhou o gesto: a mãe parecia não ter vergonha de estar nua à sua frente, mostrava-lhe com uma estranha desenvoltura a plenitude da sua nudez enrugada, assexuada, mas recusava revelar-lhe essa outra nudez. Sabia que o lenço era uma espécie de segunda pele para a mãe. Na aldeia, todas as mulheres mais velhas ainda o usavam: com um nó apertado por baixo do queixo ou, nos dias de mais calor, atado atrás do pescoço. Que se lembrasse, só uma mulher mais velha andava sempre de cabeça descoberta. Era a irmã da Preciosa, mas essa tinha desculpa: para além de muda, era meio atrasada. Passava os dias a comer caramelos e a embalar bonecas na aduela da porta. Pois, com excepção da muda, todas as mulheres da geração da mãe usavam lenço; o lenço era um sinal de honra, de dignidade, sobretudo de respeito pelos maridos mortos.
Felicidade continuou a teimar como uma criança, agarrada ao lenço preto. Solange acabou por se irritar com a teimosia e fez-se ríspida: chegou perto da mãe e, com brusquidão, arrancou-lhe o lenço da cabeça. Viu um crânio liso, muito lustroso, calvo. Apenas um penacho de cabelos brancos nasciam no cocuruto, tornando ainda mais triste a sua aparência. A mãe era completamente careca.
- O cabelo começou a cair quando o paizinho morreu… – Explicou Felicidade tapando a cabeça com as mãos. – Fiquei sozinha, filha, tinha muitas saudades dele! Quanto mais triste me sentia mais o cabelo me caía. Foi caindo, caindo até ficar assim…
Solange voltou a sentir vontade de chorar. Colocou o lenço na cabeça da mãe, atando-o atrás para que não se molhasse. Depois, ajudou-a a entrar na banheira e deu-lhe banho, já sem estranhar a sua nudez. Lavou-a como se fosse uma criança, notando a fragilidade daquele corpo sempre escondido do sol: uma vida de trabalho no campo e a pele lisa, tão branca. Lavou-a com vagar: tronco, pernas, braços, os pés cheios de calosidades. Sentada na banheira, nua, o lenço atado na cabeça, Felicidade parecia não se sentir desapossada do seu corpo. Às vezes sorria à filha como que a dizer-lhe que lhe sabia bem a ternura daquele momento.

(A minha avó chamava-se Felicidade. No Natal, oferecia-me livros e chocolates embrulhados em lindas pratinhas.)

Sol Avesso



Depois do Catujal, antes da Apelação, fica o Bairro do Sol Avesso.

Florlinda

As janelas da casa amarela estão abertas para deixar entrar o fresco do final da tarde. Consigo ver o interior: pesadas jarras de loiça, estantes cheias de livros, molduras com fotografias da criança morta. Nas paredes, imitações de quadros famosos, baratas gigantes, de carapaça brilhante, osgas de patinhas gordas. Tento imaginar a criança morta a brincar com as osgas de patinhas gordas, mas a Florlinda, sim, é a Florlinda,  vem a sair da escola. Veste um colete de pele de coelho e traz umas botas de cano alto. Ao ver-me sentada dentro do carro, acena com um sorriso. Não quero que me veja neste estado. Tenho vergonha. Não é uma mulher inteligente, a Florlinda, é aliás burra que nem uma porta, mesquinha também, mas é gentil. Limpo as lágrimas com as costas das mãos, sorvo o pingo do nariz e aceno-lhe de volta.

Madeira perfumada

Acordei indisposta, com dores de cabeça. Vomitei no lavatório da casa de banho. Bati duas vezes com a cabeça na parede ao pensar nos textos que ontem aqui escrevi, também nas várias mensagens que enviei ao João Pedro. O álcool torna-me má, invejosa e miserável. Também me faz mal à pele. Vesti-me, lavei o rosto com água fria, beijei os meus filhos (dormiam ainda) e fui trabalhar. A meio da manhã, incapaz de me concentrar, fui à igreja de Nossa Senhora de Fátima. Sentei-me dentro de um dos confessionários, encostei a cabeça à madeira perfumada e adormeci.

2016/12/20

Ricardo Álvaro




Amanhã, almoço com o meu melhor amigo.  Nada me podia deixar mais feliz. Hei-de dançar quando o vir chegar. Braços no ar como se lhes desse o vento, eu, novamente, com dezoito anos, a primeira bebedeira, olhos fechados, a dançar no átrio da Escola Herculano de Carvalho. Vou dormir. Acabou-se o licor de uísque. 

Facebook

Fotografam-se poetas com os seus gatos e os seus filhos louros, espantosas e adoráveis criancinhas que comem compota de mirtilos ao pequeno-almoço, anunciam os escritores o seu sucesso, uma notícia ali, uma crítica acolá, um prémio de mil euros atribuído pela  Junta de Freguesia de Argoncilhe, caramba, caramba, como sou bom escritor!, lê a jovem poeta um poema do Carlos Drumond de Andrade com se fosse uma gata com o cio, mostra a menina poeta os livros que faz manualmente, folhinhas secas, florinhas secas e papel pardo, ai, que coisa mais bonita, rejubilam os leitores com os merdosos livros que leram, levam-se a sério os críticos que escrevem em jornais de referência, tão cheios de si próprios, fodendo os outros críticos que tentam escrever nos jornais de referência, gritam os deprimidos o seu desespero (por que não se matam?), escreve a professora de filosofia o seu diário, nunca revelando  um desespero, um orgasmo, o sufocar lento da solidão, passeios à chuva, isso sim, uma conversa de café, isso sim, um marmeleiro florido, isso sim, e é tudo e é tão pouco, indignam-se os medíocres, discutem os preguiçosos, grita o gigante de Gulpilhares que sabe escrever, ó, santo deus, se sabe!, pois se foi finalista daquele prémio literário, a culpa de não ser publicado é da editora com ar de sonsa que escreve letras para fados, mostra o editor velho, velhíssimo,  feiíssimo, a sua pescaria em São Tomé. Tudo isto comentam os pobres de espírito, de preferência com corações, risonhos e fiadas de pontos de exclamação. 

O frio de Trancoso

Encontrei o Manuel da Silva Ramos na Avenida Marquês de Tomar. Perguntou-me se continuava a escrever. Disse-lhe que não e desculpei-me com os filhos, o trabalho até tarde. Falámos sobre o frio de Trancoso, sobre o lançamento do livro do Tiago e sobre os livros do escritor egípcio. Despediu-se pouco depois com a desculpa de ter de ir escrever o próximo capítulo do último livro. Fiquei a ver o escritor desaparecer na Avenida Marquês de Tomar. À medida que caminhava, distanciando-se, tive a sensação de que era a própria literatura quem de mim fugia. 

2016/12/16

Sete escravas de ouro

Agarrou-a pelo braço e levou-a para a varanda. Foi a primeira vez que a trancou completamente nua. Teresa não reagiu, não gritou, não bateu com os punhos nas vidraças, como fazia no início, apenas encolheu o corpo para se proteger do frio.

Rui viu um pouco de televisão e depois foi deitar-se. Dormiu sossegado, não acordou para beber água nem mesmo para ir à casa-de-banho. Ao acordar teve a vaga sensação de ter tido sonhos felizes.  Talvez por isso a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi a da sua mãe caminhando de mãos dadas com Ana à beira do lago. Ana era uma criança encantadora, alegre e, pelo modo como falava, um pouco belfa, a voz cheia de mimo, cativava qualquer pessoa.  Até o tio Alberto sorria quando Ana se sentava ao seu colo e lhe pedia que contasse a história do Pinto Calçudo. Só se lembrou de Teresa quando o sol, entrando pelas frestas dos estores, fez brilhar os frascos de perfume pousados na cómoda. Nua na varanda. Como teria passado a noite? Ainda não fazia muito frio, mas, durante a noite, arrefecia. Sentiu angústia por ter trancado a mulher na varanda, mas não experimentou arrependimento. Pôs-se à escuta para ver se ouvia algum ruído vindo da varanda. Nada. A casa estava quieta, silenciosa e apenas o sol, incindindo nos frascos de perfume, parecia quebrar a calma aparente que pairava sobre os objectos. Por instantes, temeu que tivesse acontecido alguma coisa  a Teresa. E se tivesse saltado da varanda? “Vou ao terraço e atiro-me cá para baixo…”, era a frase que usava sempre que discutiam. Uma frase desesperada, mas dita calmamente, cada palavra pronunciada com lentidão, como se só assim a ameaça pudesse ser encarada como real. Não suportava que Teresa a dissesse, sobretudo em frente de Ana.

Afastou os pensamentos sombrios e procurou prolongar as rotinas para adiar o momento em que abriria o trinco da varanda e encararia a mulher. Tomou banho, esfregou bem o pescoço e as costas, fez a barba com vagar, passando a lâmina duas vezes no rosto para a pele ficar macia. Preparou o pequeno-almoço. Deu comida ao gato que, mansamente, se enrolou nos seus pés. Foi espreitar a filha: Ana dormia profundamente, enrolada aos pés da cama. Quando já não tinha mais nada a tratar, entrou na sala. Afastou os cortinados. Lá fora, Teresa continuava encolhida: a cabeça encostada à banqueta onde o gato dormitava nas tardes de sol, os pés e os lábios azuis do frio. Durante a noite, arrancara as folhas das plantas e despejara sobre si a terra dos vasos. Naquela posição, coberta de terra, folhas e flores, Teresa pareceu-lhe pequena, frágil e ainda mais bela. Sentiu uma erecção e lembrou-se do verso de um poema. O ruído do trinco da porta fez com que a mulher abrisse os olhos. Levantou-se e, sem o olhar, sem nada dizer, caminhou na direcção do quarto. Ficou um rasto de terra no chão encerado da sala. O tilintar das sete escravas de ouro que Teresa usava sempre no braço esquerdo quebrou por fim o silêncio da manhã.

Antes do baile verde

Não pegava num livro desde o dia 18 de Setembro. Hoje, não sei o que me deu, li vários contos da Lygia Fagundes Telles. Apesar do desespero dos últimos tempos - de que serve a terapia, a medicação rigorosamente observada, as consultas de quinze em quinze dias, se a doença volta sempre?-, fui inundada por uma alegria imensa. Gostava de ser capaz de escrever assim, exactamente assim: com talento e precisão. 

Andrei Efimitch

Falei sobre "A enfermaria nº 6" ao meu psiquiatra. Não conhecia. "Nunca leu Tchekhov?!", perguntei com espanto, irritação maternal, usando um tom insuportavelmente pedante, tentando de alguma forma inverter os nossos papéis. Cansada de falar sobre mim ao jovem psiquiatra, tentei que o jovem psiquiatra partilhasse alguma coisa sobre si próprio. Não acho justo que saiba tudo sobre a minha pessoa, cada medo, cada lágrima, cada inquietação e eu, para além de que trabalha em Santa Maria e gosta de "As virgens suicidas", nada conheça da sua vida. Respondeu com naturalidade: "Não, Ana, nunca li Tchekhov". E continuou em silêncio. 

2016/12/08

Carica

Aos dez anos, fui com os meus pais a Marrocos. Comi bolos areados na melhor pastelaria de Rabat. Coloquei as mãos em concha por baixo da cabeça decepada. Em praias desertas, apanhei búzios e conchas vermelhas. Mergulhei no mar e o meu cabelo ficou emaranhado com pequenas algas verdes. Dormi numa tenda de campismo. O colchão cheirava ao plástico da boneca recebida no Natal. Senti um perverso deleite ao ver a pele da tia Dé queimada pelo sol. Invejei o casal francês que viajava numa pequena auto-caravana. Observei o pai francês brincar com os filhos. Voltei a sentir inveja. A caminho de Marraquexe, no Toyota vermelho, comi pão com doce de tomate e fatias de melancia. O sumo da melancia escorreu pelo meu pescoço. Fiquei com as mãos pegajosas do doce de tomate. Ajudei a minha mãe a escolher pratos de bronze, potes de barro pintado à mão e banquetas de couro. Bebi chá de hortelã, servido num bule de prata. Vi um negro com um grande angioma abraçado uma mulher muito bela. Não vi o deserto. Também não vi camelos. Mas, num restaurante de estrada, bebi pela primeira vez na vida Coca-Cola. Guardei a carica por causa das estranhas letras árabes. Ainda a tenho. 

2016/12/03

Pastelaria Tim-Tim





Entre as baratas de vinho, vi caminhar uma garrafa. 

2016/11/28

Lista de compras

Quero um tomate maçã, vermelho, de polpa dura, quero um par de sapatos de flamenco, uma caveira sorridente, de preferência de grandes olhos espantados, quero dois dentes de alho (para o ensopado de coelho), três cebolas roxas (para o ensopado de frango do campo), um quilo de cogumelos vermelhos às pintinhas brancas, uma abóbora porqueira, quatro pacotinhos de açúcar com a imagem dos quatro discípulos evangelistas, se não tiver, são difíceis de encontrar, podem ser quatro pacotinhos de açúcar com a imagem dos quatro cavaleiros do apocalipse, quero também um paraplégico capaz de fazer amor, uma menina cigana de lábios pintados de azul, o mapa para o cadafalso, três sacos de água quente, cinco dióspiros de roer, cinco burkinis amarelos, trinta lenços de seda libanesa e, se não for pedir muito, duzentos gramas de fiambre, cortado em fatias finas, transparentes como o papel.

2016/11/09

Tango



( O que em mim terá efeito? O que me fará acordar deste torpor, desta angústia tão antiga, desta podridão? Nada me interessa. Ninguém me interessa. Finjo. Sou uma extraordinária fingidora. Leio e finjo. Como e finjo. Afago o rosto da minha filha e finjo. Falo com o Sr. Tobias pela manhã, pergunto pela pescaria do fim-de-semana, e finjo. Irrito-me com a mulher que chama "pretinho" ao engenheiro informático e finjo. Imagino-me nas termas da Cúria, hotel antigo, portas de ferro e, nos quartos cheios de luz, a presença de um tempo antigo. Já não finjo. Um parque de magnólias floridas, a sala de jantar quase vazia, eu, sentada a uma mesa, envelhecendo num segundo, eu, com o rosto vincado de rugas, o cabelo branco, abreviando o meu sofrimento, a beber um copo de vinho, sem pensar em nada, a olhar para a jovem flautista de longos cabelos lisos.)

2016/07/08

2016/06/26

Batatas doces

Durante nove meses assistiu à alteração do seu corpo com distanciamento e estranheza. Às vezes, levava as mãos ao ventre, sentia o feto serpenteando como uma cobra. A gravidez não lhe suscitava amor antecipado pela cria, nem despertava qualquer instinto maternal, apenas uma sensação de extravagância que a confundia por não corresponder à habitual beatitude das primíparas. Mantinha-se à margem, não partilhando o entusiasmo de Ester que fez um enxoval luxuoso, digno de um pequeno príncipe: cueiros de piquet, toucas bordadas, casaquinhos de malha laminada, botinhas cardadas, interiores de fibras puras, muitos babygrows pedidos por catálogo, uns de veludo confortável, outros em jersey de algodão sem mangas e de pernas curtas para as noites mais quentes. Maria escudou-se numa alegria fingida e aguardou para ver. 
No dia do parto, por coincidência, domingo, estava sozinha em casa. O marido saíra logo cedo para comprar pão e lavar o carro. Naquele tempo, os homens de Sacavém tinham o hábito de se juntar, nas manhãs de sábado e domingo, no descampado junto à estrada nacional para a limpeza das suas viaturas. Encontravam no cumprimento desse dever uma desculpa para fugir dos filhos que, enfiados nos seus roupões de flanela, olhos ainda ramelosos, lhes pediam ajuda nos deveres de casa, também das mulheres, sobrolhos carregados, mãos na ilharga, exigindo a resolução de pequenos problemas domésticos: lâmpadas fundidas, canos rotos, algerozes entupidos, rachas e fissuras das paredes a precisar de betume. Salvos da ditadura doméstica, os homens aproveitavam essas manhãs para falarem de mecânica, partilhavam dicas sobre os melhores óleos lubrificantes, lavavam jantes e aplicavam ceras protectoras na carroçaria para evitar o aparecimento de manchas corrosivas de ferrugem. 
Na manhã em que deu à luz, Maria foi à casa de banho e despiu-se com dificuldade. Notou um muco gelatinoso, com laivos de sangue, nas cuecas. Olhou-se no espelho, nua. O seu corpo tornara-se num depósito, num enorme invólucro e isso, mais do que enternecê-la, aborrecia-a. Envergonhava-se desse tédio, julgando-se, por o sentir, indigna da maternidade. Apesar do corpo cheio, sentia-se vazia, simplesmente vazia. A meio da manhã, uma dor forte chegou e o útero empinou-se, rijo e piramidal. Maria percebeu que chegara a hora. Mudou de roupa e, sentindo uma calma que a espantava, deixou-se estar sentada no sofá da sala, aguardando que o marido voltasse. Chegou cansado, pouco passava do meio-dia, o jornal debaixo do braço, o saco do pão a rojar no chão. Antes que tivesse tempo de pousar as coisas em cima da bancada da cozinha, deu-lhe a novidade:
- Temos de ir para a maternidade.
- Rebentaram-te as águas?
- Ainda não, mas já tive três contracções.
O marido olhou-a com insegurança. Deu-lhe um abraço de tal modo apertado que Maria teve de pedir que a libertasse. 
- Olha que me sufocas! - Disse e, ao sentir a incerteza do marido, o enjoativo aroma do detergente que usava para lavar o carro, achou que o amava. Não era um amor de arrebatamentos, mas era exactamente o que queria, sólido, firme, um amor que chegava no tempo certo. 
O marido pegou na malinha que Maria preparara para a maternidade e desceu para ir buscar o Toyota Corolla que, há já algum tempo, passara a guardar numa garagem arrendada no prédio ao lado. Era uma despesa a mais, sobrecarregava o orçamento familiar, mas, depois da capota cinzenta ter sido vandalizada com uma pichagem solitária contra a propriedade privada, era a única forma de salvar a viatura da mesquinhez proletária de certa vizinhança sacavenense. Abriu a porta e, antes de que a mulher se sentasse, estendeu um oleado que, sem utilidade definida, costumava guardar no porta-bagagens. 
- É que podem rebentar-te as águas no caminho e ficam os estofos ensopados. 
Maria sorriu perante o sentido prático do marido. Lá fora, abafava. Era Outubro, tempo dos marmelos e dos aguaceiros brandos. Pela primeira vez desde que engravidara sentiu um desejo caprichoso e infantil. Lembrou-se das batatas-doces que a mãe costumava fritar às rodelas e que servia, como guloseima preciosa, na ceia de Natal. Teve vontade de as comer, cozidas, assadas, fritas, até cruas se preciso fosse. Quando voltasse da maternidade, pediria ao marido que as comprasse, havia de as fritar às rodelinhas muito finas, cobri-las com polvilho de açúcar e canela, tal qual a mãe fazia, comê-las vagarosamente, um prato cheio delas, uma de cada vez, até se empanturrar e saciar esse desejo que, chegando tardio, a confortava por a tornar igual às outras mulheres.

2016/06/23

O Joaquim partiu o pé. Colocou o gesso no dia em que o João, o mais velho, o tirou. Ando com ele ao colo para toda a parte. Gosto de o carregar nos braços; ele, pelo modo como se aninha, também. "Mãe, gostas da tua vida?", perguntou ontem quando me viu, era já muito tarde, a lavar o chão da cozinha. "Gosto filho, gosto muito.", respondi, sem mentir. Larguei a esfregona e levei-o para o quarto. Hoje, deitado na cama, com o gato aos pés, acabou, pela primeira vez na sua vida, de ler sozinho um livro de muitas páginas. Estava feliz. Eu também. 

2016/06/22

Caril verde

Chovia quando saí do cinema. Caminhei à chuva. Entrei na loja chinesa da esquina da Av. de Berna com a Av. 5 de Outubro para comprar grampos. A dona é uma senhora amável, sorridente, o dono, um estranho homenzinho de bigode retorcido, sobrancelhas aparadas, unhas muito compridas. Todos os homens chineses com quem me cruzo têm unhas compridas. Entrei no banco, subi ao sexto piso, prendi o cabelo com os grampos. Olhando-me no espelho, desejei ser bela e jovem como a mulher do filme. Sentei-me à secretária e comecei a analisar um processo. Trabalhei concentradamente durante a tarde, tranquila, o trabalho liberta-me, esqueci o filme, o sonho do relógio sem ponteiros, o rosto de Marianne. À noite, depois de entregar os miúdos aos cuidados dos meus pais, fui jantar com duas amigas do bairro onde cresci. Convidam-me para jantares e aniversários dos filhos. Digo sempre que não. Arranjo desculpas. Desta vez resolvi ir. Sou outra mulher quando tomo a fluoxetina. Enquanto me arranjava, dei instruções a mim própria: vais colocar-te no lugar dos outros, vais beber moderadamente, um ou dois copos de vinho, vais escutar o que têm para te dizer, vais sorrir, vais abrir a boca e da tua boca sairão frases como “E os teus pais, como estão?” ou “ Está tão grande, o teu Francisco!”. Vesti uma túnica branca, bordada a missangas amarelas, que comprei em Nova Deli. No restaurante tailandês, sorrisos e conversas. Tudo corria às mil maravilhas, mas, quando uma das minhas amigas começou a falar das vantagens do ensino privado, percebi que não conseguia aguentar por muito mais tempo o fingimento da fluoxetina. A conversa enojou-me. Nunca colocaria um filho numa escola privada. Sou preconceituosa em relação a certos assuntos. Por essa altura, irritada, abandonei o meu corpo, a mesa, a conversa de merda. Ainda assim fiz um último esforço. Interrompi a minha amiga e disse: 
- O caril verde está uma delícia. 
Continuei a sorrir,  fui respondendo monossilabicamente, sim, não, pois é, talvez, e comecei a observar os restantes comensais. Gosto de olhar para os outros. Fixar um riso alarve, uma expressão contida, a mão que leva o garfo à boca. Numa mesa próxima, três homens e uma mulher falavam animadamente. Todos me pareceram felizes, bem vestidos, bronzeados, ali, no restaurante tailandês, onde sua alteza, o rei gago, gosta de ir molhar os bigodes. A mulher era irrelevante: cabelo bem penteado, rosto redondo, maquilhado, mãos arranjadas, um camiseiro aberto, os lábios retocados de botox. A harmonia do rosto, de tão monstruosa e insuflada, fez-me lembrar os retratos do Francis Bacon. Ainda assim, invejei a mulher dos lábios insuflados. Desejei estar sentada na sua cadeira, dentro do seu corpo e sobretudo dentro sua cabeça, rodeada de homens excessivamente bronzeados, ser o centro das atenções. 

Sou bastante estúpida, sei-o há muito. Não tenho critério no desejo de fuga. Durante a tarde, quis ser a bela, serena, literária Marianne que viaja na companhia do sogro para encontrar o marido. No restaurante tailandês, quis ser a mulher de lábios de botox que, numa exuberância comum, vulgar, tão ordinária, namoriscava com três homens ao mesmo tempo. 

2016/06/20

Festival

Mexo constantemente no cabelo, atirando de um lado para o outro um longo cacho preto. O gesto não é inocente. Procuro cativar aqueles que me escutam, não só com as palavras, mas também com uma certa sensualidade que julgo ter. Trago um decote acentuado, as minhas pernas estão cruzadas, pintei os lábios de vermelho, escolhi uns sapatos clássicos. Como pode ser sensual o decote de um sapato. Tenho uma voz clara que, bem projectada, se escuta nas últimas cadeiras do auditório. Não escuto o que digo. Apesar da assertividade fingida, e preparada, do ar seguro, não tenho interesse nas palavras que se soltam da minha boca. A literatura, assim que se explica, torna-se desinteressante. Observo apenas os meus gestos. Pergunto-me se, na cama com o poeta, terei mexido do mesmo modo no cabelo, terei sido igualmente assertiva, segura.  Há algumas semanas, uma mulher perdeu-se na crónica do Lobo Antunes. Ninguém deu pela sua falta, nem o marido, nem o filho, nem o cão. Para que serve afinal uma mulher?

2016/06/17

Mulher de sucesso


O sol brilhava e o verde dos jardins da fundação pareceu-lhe diferente. Apurou o olhar, cerrando as pálpebras, e reparou que as trepadeiras mexicanas já tinham flor. Lembrou-se, então. Fazia quarenta anos. Não atribuía qualquer importância à data. Nunca celebrava o aniversário. Nem a insistência dos filhos - gostavam do bolo, das velas acesas, do ambiente de festa -  a fazia mudar de ideias. Não era a passagem dos anos que a maçava, mas a alegria forçada do festejo, sobretudo, a obrigação de retribuir amabilidades. O marido, porém, teimara desta vez. Sempre eram quarenta anos. Festejariam com os amigos mais próximos num restaurante excessivamente caro para o ambiente informal que tinha. O sítio, segundo os suplementos de domingo dos jornais, aliava simplicidade e sofisticação. Reinventava-se ali a confecção de produtos tradicionais, celebrava-se a herança gastronómica. O marido tratara de tudo. Fizera a lista dos convidados. Escolhera uma ementa audaz. Os amigos seriam surpreendidos, logo nas entradas, com a aparição de umas minúsculas bolas de berlin com recheio de santola. Deliciar-se-iam, de seguida, com uma terrine de bacalhau, coentros e espargos. Seguir-se-ia um tornedó de vitela com molho de burzigada. Por fim, ser-lhes-ia apresentado um creme brullé de castanhas aromatizado com aguardente de medronho. Afinal, a tradição devia ser preservada e os petiscos mais populares toleravam-se desde que fossem servidos em faiança estilizada de apurada qualidade. O marido procurara também o presente ideal. Pensara, a princípio, numa jóia que assinalasse a data. Pusera de parte a ideia. A mulher nunca usava jóias. Na verdade, um brinco, por discreto que fosse, uma pulseira, um fio de ouro, resultaria num excesso insuportável. Aninhas era bela. Não necessitava de adornos. O marido acabara por optar por uma viagem. Escolhera Buenos Aires. Lembrava-se de que, certa vez, não podia precisar em que ocasião, a mulher demonstrara interesse em conhecer a capital argentina.

Afastou-se da janela e olhou para a cama. O marido dormia, alheio à luminosidade que tomara conta do quarto. Notou-lhe as escápulas nuas e, por instantes, deixou-se estar a olhá-lo. Tomou um duche rápido e, com o corpo ainda húmido, entrou no quarto de vestir. A empregada deixara pendurado, numa cruzeta, a roupa que escolhera para aquela noite. Levaria um vestido verde azeitona, sem mangas, com um drapeado largo que parecia poder desmanchar-se a qualquer instante. Era um vestido simples mas que exigia a elegância de um corpo esguio. Continuava magra. A gravidez não a deformara, mas também não lhe acentuara a feminilidade. O seu corpo nu lembrava a inocência de um corpo imberbe, de menina prestes a ter a primeira menstruação. Era a sua beleza, a elegância natural, que lhe permitia, em certas ocasiões, usar cores fortes, experimentar combinações arrojadas, imprimir até, se lhe apetecesse, certo desleixo nas escolhas. Ignorava propositadamente as tendências da moda. Se a temporada exigia saltos de vírgula, Aninhas apressava-se a oferecer à empregada todos os sapatos que encontrasse no quarto de vestir com esse tipo de salto. Se as revistas de moda aconselhavam calças justas, fazia questão de as usar largas. Tinha um estilo sóbrio e simples. Usava a extravagância com comedimento, sem pinga de folclore ou exagero. Naquela manhã, a manhã dos seus quarenta anos, escolheu umas calças de ganga e uma blusa branca. Calçou uns sapatos confortáveis. Preparou-se para sair. Atravessou o apartamento cheio de sol. Os filhos ainda dormiam. Encontrou a empregada na cozinha, preparando para o almoço o seu prato preferido. Cumprimentou-a e pediu-lhe que levasse os filhos a passear nos jardins da fundação. Estava um sol tão bonito. 

Apanhou um táxi que atravessou a cidade e a deixou na avenida onde se situavam várias lojas de marcas internacionais. Entrou no salão. O dono do cabeleireiro veio recebê-la. Cumprimentou-a com um beijinho e ofereceu-lhe um chá. Aninhas recusou com delicadeza. O dono era um homem gordo, muito expansivo, cuja afectação se justificava pela clientela que conseguira reunir ao longo dos anos: jornalistas, deputadas, uma ou outra ministra, escritoras, professoras universitárias, algumas actrizes consagradas, mas nem uma única dessas celebridades que aparecem nas capas de revista por confundir a sua profissão com meretrício. Aninhas perguntou-lhe pelo companheiro que fora operado há pouco. Não o fazia com sinceridade, não era genuína a sua preocupação. Na verdade, sentia certa repulsa quando via o dono do salão abraçar o namorado, um rapaz novo que trabalhava como colorista. Sacrificava, porém, o seu conservadorismo ao estatuto que aquela aparente intimidade lhe conferia. O salão tinha uma clientela selecta. No entanto, apenas, um círculo muito restrito, a que Aninhas pertencia, tinha direito ao convite para o chá, servido numa porcelana finíssima, quase transparente. 

Vestiu uma capa preta e sentou-se na zona de lavagem. Inclinou a cabeça para trás. Era sempre a mesma rapariga que lhe lavava a cabeça. Sabia exactamente o peso exacto que devia colocar na ponta dos dedos. Geralmente, naquela posição, Aninhas sentia que o corpo passava a ser apenas um invólucro, não pensava em nada, fechava os olhos, relaxava, às vezes, dormitava. Porém, naquela manhã, talvez porque a rapariga lhe esfregasse o couro cabeludo com movimentos circulares mais firmes, pondo naquela massagem uma intensidade que não era habitual, deu por si a deitar contas à vida. Ia fazer quarenta anos. Quarenta anos. Tinha um casamento sólido, dois filhos, uma carreira de sucesso como analista sénior numa empresa de auditoria americana, viajava frequentemente na companhia do marido, conhecia o mundo através das janelas dos hotéis de cinco estrelas, vivia num apartamento espaçoso no centro da cidade com vista para os jardins da fundação. Tinha uma empregada interna, competente e silenciosa, que compensava a sua falta de vocação materna. Quando chegava a casa, encontrava os filhos com banho tomado, o pijama vestido, já jantados, os trabalhos de casa feitos, dúvidas tiradas, preparados para dormir. Nem uma nódoa de sopa nos pijamas, nem um vestígio de birras, nenhum choro, nenhuma lágrima. Abria a porta do apartamento, pousava as chaves do carro no móvel da entrada, beijava os filhos, sentia-lhes o cheiro perfumado da cosmética infantil francesa. Tinha sempre a sensação de que aquelas crianças não lhe pertenciam. Esse sentimento não a incomodava. A empregada idolatrava-a. Achava-a a mulher mais bonita da cidade e imitava-lhe certos gestos e expressões. Aninhas era-lhe grata, embora nunca o demonstrasse. A empregada suportava o fardo da maternidade e poupava-a à vergonha de um fracasso. Se um dia os filhos falhassem, saberia que a culpa não fora sua, mas da empregada que os educara.

Para além da casa, da profissão, dos filhos, do casamento sólido, Aninhas tinha também um amante. Conhecera-o há alguns anos nos jardins da fundação. Pouco depois de se mudarem para aquela zona da cidade, ganhara o hábito de passear nos jardins. Observava com atenção as moitas de rododendros, os jardins de buxo, conhecia a floração dos pilriteiros e dos morangueiros anões. Gostava de ler num recanto mais sombrio do jardim. Certa manhã, fora surpreendida por um homem que a interpelou sobre o livro que lia. Conversaram. O homem, professor de literatura moderna, achou graça ao desmerecimento que lhe mereciam os autores clássicos e consagrados. Aninhas não os lia. Achava-os enfadonhos, mas assumia, com espantosa assertividade, esse aborrecimento. Após alguns telefonemas, acceitou almoçar com o professor de literatura moderna. Numa tarde de tédio, beijou-o, e numa tarde de maior fadiga, despiu-se e adormeceu nos seus braços. Encontravam-se, desde então, ocasionalmente num apartamento com marquises de alumínio, perto da Paiva Couceiro. A relação com o amante, apesar de intermitente, era estável e duradoura, de alicerces fundos, betonada. Exactamente como o seu casamento.

Aninhas relacionava-se com o marido sem esforço. Conheciam-se desde liceu e havia entre eles uma simbiose perfeita, um desejo de conforto e estabilidade, uma ambição não totalmente assumida de fugir das suas origens. Provinham ambos de famílias de classe média, esforçadas e honestas. Raramente voltavam ao bairro onde haviam crescido, nos subúrbios da cidade, e tinham o cuidado de nunca misturar na mesma festa os familiares com os seus novos amigos. Faziam férias na Sardenha e iam à neve quando apenas as famílias das Avenidas Novas frequentavam as estâncias espanholas. Assim que os seus hábitos se tornavam populares – a democraticidade do consumo e a facilidade no acesso ao crédito levava muitas vezes a que tal acontecesse - passavam a desprezá-los como se nunca tivessem sido seus. A empregada funcionava, muitas vezes, como indicador daquilo que podiam ou não continuar a fazer. Ainda não há muito tempo, enquanto lhes preparava o pequeno-almoço, a empregada contara que aproveitara a folga de domingo para experimentar um restaurante japonês que abrira no Cacém. Gostara dos fritos e até do peixe cru. Aninhas escutou-a e sorriu ao marido. Souberam naquele instante que não voltariam a comer sushi. Acreditavam que a estratificação social, a divisão de classes, não passa pelo dinheiro que se tem, pela casa onde se vive, pelo carro que se guia, mas apenas pela sofisticação de hábitos e interesses. Aninhas e o marido raramente discutiam porque, na verdade, raramente falavam. Eram tidos pelos amigos, pela família, pelos vizinhos, pelos colegas de trabalho, como o casal perfeito, jovens, bonitos, realizados, viajados. 

Aplicava-se, porém, na traição. Tratava o amante de maneira diferente. Estimava-o. Esmerava-se por lhe agradar, acarinhava-o como se fosse uma criança pequena. Trazia-lhe sempre uma caixinha com os primeiros morangos da época e comprava-lhe cigarros importados que espalhavam um fumo azul e adocicado pelo apartamento da Paiva Couceiro. Aninhas não sabia se o amava. Sabia apenas que precisava dele. O seu casamento, o apartamento espaçoso com vista para os jardins da fundação, as viagens, a maternidade delegada na empregada silenciosa, toda essa vida de solidez e fruição dependia da manutenção daquela relação. Quanto mais conhecia o amante, os seus defeitos, a sua banalidade, o romantismo insuportável que o fazia dizer “Meu amor”, mais Aninhas se consolava com a sobriedade do marido, a ausência total de afecto, o modo frio como lhe tocava no rosto. Nessa manhã, a manhã dos seus quarenta anos, enquanto a rapariga lhe secava a cabeça com um turco macio, percebeu que conhecera na vida apenas esses dois homens: o amante e o marido. Era uma contabilidade miserável para uma mulher de sucesso. 

Passou para a sala dos espelhos. Não precisou de explicar à cabeleireira o que queria. Usava sempre o cabelo pelos ombros, liso, ligeiramente estruturado, sem pontas enroladas para fora. Assumia os cabelos brancos numa idade em que a maior parte das suas amigas discutiam a eficácia dos métodos de coloração. A cabeleireira só uma vez lhe sugerira fazer madeixas. Aninhas, sempre tão cordata, não se conteve. Olhou-a com desdém e explicou-lhe que tinha horror a tudo o que fosse postiço. Não era o seu carácter, a sua personalidade forte, que a levavam a cultivar a autenticidade, aceitando as marcas que a passagem do tempo ia deixando no seu corpo. Era a sua beleza que lhe permitia dispensar os artifícios da cosmética capilar e zombar das vantagens da coloração artificial. Se fosse feia, pintaria o cabelo, faria extensões, submeter-se-ia a cirurgias plásticas, seria fiel às tendências da moda, maquilhando-se, penteando-se, vestindo-se de acordo com os figurinos das revistas. Tornar-se-ia, como todas as mulheres feias que conhecia, num decalque patético de um ideal de beleza artificial e ordinário.  

Foi na sala dos espelhos, enquanto a cabeleireira lhe esticava o cabelo e a manicura lhe arranjava as cutículas, que o aborrecimento tomou conta de si. A conquista foi metódica e apanhou-a desprevenida. Apoderou-se primeiro do seu espírito. Depois instalou-se no corpo. Aninhas, sentiu que se esvaziava, perdia todo o interior de entranhas, órgãos, tecidos, cartilagens, ossos, águas ensanguentadas. Ficou oca por breves instantes. Mil bichinhos minúsculos entraram depois pelos orifícios do seu corpo. Sentiu-se pesada, como se o seu avesso fosse preenchido por uma massa plúmbea. O aborrecimento triunfara sobre a certeza de uma vida preenchida e realizada. Experimentou um enfado monumental. Aquela sensação pesava-lhe nos ombros, nas pernas, no corpo todo, atrofiava-lhe os gestos, roubava-lhe a ligeireza. Levantou-se para sair. Pensou que talvez o aborrecimento, de tão denso e corpóreo, pudesse ficar preso àquela cadeira, largando-a de vez. Mal deu dois passos, em direcção à porta da saída, percebeu que o levava consigo. 

Despediu-se do dono do cabeleireiro, desejou as melhoras do namorado colorista e apanhou um táxi para casa. Levava o corpo cada vez mais pesado. Temeu, por instantes, que o aborrecimento se transformasse em angústia e a fizesse chorar. Ia a soprar nas unhas pintadas de encarnado quando o táxi parou num semáforo. A praça central da cidade estava vazia e o sol parecia aproveitar a ausência de ruído e movimento para brilhar com maior intensidade ali. Cada janela, cada pedra de calçada, cada parede era um ponto de luz e calor. Olhou com desinteresse a estátua que marcava o centro da praça. Viu a mesma coluna de sempre e, lá em cima, com corpo de chumbo comido pelo verdete, a imagem do déspota esclarecido. Preparava-se para desviar o olhar quando reparou que, na base da estátua, numa das paredes de mármore, alguém escrevera uma frase a vermelho. A tinta parecia estar ainda fresca, nela ainda não assentara a poeira da cidade, nem a fuligem dos tubos de escape. Escrita a todo o cumprimento, podia ler-se a seguinte frase “Já não te amo, Maria”. Durante o tempo em que o carro esteve parado no semáforo, Aninhas fixou aquela frase. Esqueceu por momentos o aborrecimento que sentia. Ali estava, no meio da cidade, à mercê do olhar de todos, o anúncio do fim de um amor. A frase era desconcertante. Só os que amam pincham paredes com dizeres ridículos. Que alguém, deixando de amar, readquirindo desse modo a lucidez, se tivesse dado ao trabalho de anunciar esse facto era coisa que não conseguia compreender. Aninhas desviou os olhos da estátua. Sempre achara que o amor era dispensável e tornava as pessoas imbecis. Percebia agora que o desamor era igual: dispensável e tornava as pessoas imbecis. 

Entrou em casa passava já do meio-dia. A empregada não voltara ainda do passeio nos jardins da fundação com os filhos. Um cheiro morno de pastéis de carne acabados de fritar espalhava-se pelo apartamento. Dirigiu-se ao escritório, arrastando, como se de um parasita gigante se tratasse, o seu corpo de aborrecimento. Encontrou o marido sentado, falando ao telefone. Combinava qualquer coisa para o jantar. Pela conversa, percebeu que não se arranjava santola suficiente para as entradas. Do outro lado, sugeriam rillete de faceira de porco ibérico. O marido concordou com a sugestão. Aninhas esperou que terminasse. "Quero o divórcio.", explicou-lhe, mal o viu poisar o telefone. No preciso instante em que as palavras se soltaram da sua boca, sentiu-se menos pesada. Pareceu-lhe, mas não podia assegurar, que os minúsculos bichinhos a abandonavam, chiando de excitação, e, como bolas de chumbo minúsculas, se espalhavam pelo soalho nacarado do escritório. O marido levantou os olhos. Aquiesceu sem lhe exigir justificações. Não conseguia explicar a decisão da mulher, mas, por outro lado, não a estranhava. Levantou-se e olhou pela janela os jardins da fundação. As sequóias pereceram-lhe feias e as tílias floriam em cachos brancos. Sem se virar para Aninhas, disse-lhe apenas que talvez fosse melhor desmarcar o jantar. Trataria de tudo. Nessa mesma tarde, depois de ligar aos amigos, fez as malas, despediu-se dos filhos e mudou-se para casa dos pais que viviam numa vivenda camarária que se esboroava em caliça na Amadora. A mãe recebeu-o com alegria. Sempre tolerara a nora, a impertinência daquela beleza altiva, a educação esmerada, o desprezo pelas origens burilado ao limite até se tornar numa simpatia que parecia genuína. As mulheres perfeitas, sabia-o bem, não existem. As mulheres, mesmo as perfeitas, não conseguem calar a sua natureza. Feitas a partir de uma costela, há nelas um desejo adormecido de rebelião. Cedo ou tarde, acabam por prescindir do corpo que lhes deu vida. Só assim se libertam. Só assim sossegam.   

Aninhas viu-se sozinha na noite dos seus quarenta anos. A empregada não fez perguntas. Deitou as crianças e recolheu ao quarto onde se entreteve a ver telenovelas brasileiras com os sapatos de salto de vírgula calçados. O apartamento estava mergulhado em penumbra e sombras. Era uma escuridão que a consolava. Lá fora, a noite caíra sobre os jardins da fundação, escondendo as tílias, os pilriteiros, os rododendros; só o perfil, levemente assustador, das sequóias permanecia visível. Aninhas sentou-se no escritório. Faltava-lhe fazer uma coisa. Precisava de ligar para o apartamento das marquises de alumínio, na Paiva Couceiro. Custava-lhe mais acabar a relação com o amante do que a relação com o marido. O casamento assentava num contrato e Aninhas sabia que a dissolução dos contratos se encontra prevista na lei, tutelando interesses, dividindo patrimónios, acautelando as opções de cada um. A lei parametriza a vida; cuida, de forma asséptica e eficaz daquilo que começa, mas também de tudo o que termina. A relação com o amante, porém, não assentava em premissas definidas, era volátil, inexistente. Não havia direitos, nem deveres, nem salvaguardas. Assentava apenas em sentimentos. 

Aninhas pensara durante a tarde. Nenhuma justificação lhe pareceu razoável, suficientemente plausível para acabar com aquela relação que pouco exigia e nada deixaria. Na penumbra do escritório lembrou-se então da frase que encontrara nessa manhã escrita na base da estátua na praça central da cidade. Discou o número da casa do amante. "Já não te amo, Rui.", disse-lhe com clareza, antes que ele pudesse cumprimentá-la. Era uma frase curta. Dita de supetão, não lhe exigia fingimento ou dissimulação. Porém, de tão absurda, ao dizê-la, teve vontade de soltar uma gargalha pequena. Pressentia que o amante sofria do outro lado da linha. Talvez chorasse quando desligasse o telefone. Dificilmente encontraria nos corredores da faculdade uma mulher como ela. Costumava desabafar, nas horas clandestinas que passavam no apartamento de marquises de alumínio, que as colegas cultivavam uma feminilidade esclarecida. Não tiravam o buço e, no tempo quente, usavam vestidos pingões que mostravam corpos macilentos. Aninhas não lhe queria mal. O amante, no fundo, assegurados que estivessem os mínimos de beleza e voluptuosidade, acreditava na igualdade de géneros, nas relações assentes no diálogo, nos sentimentos nobres, no amor, enfim. Era um bom homem, mas demasiado moderno para perceber que a sua decisão assentava em critérios de pura racionalidade. Não lhe podia explicar que já não precisava dele. Terminado o casamento, podia acabar com a relação que o sustentava. Aninhas sabia o que fazia: deitava-o ao lixo. Dispensava-o como aos sapatos com salto de vírgula que oferecia à empregada.

(Escrito  aos trinta e cinco anos. Achava que sabia escrever e os quarenta pareciam-me ainda distantes.)

2016/06/16

Mãos

Todos os dias, enquanto espero a minha vez, desejo ser atendida pela D. Madalena ou pela Iris, uma rapariga de sorriso trocista e magníficos sobrolhos desenhados. Não tenho sorte. “Bom dia. O que deseja?”, pergunta a Lurdes com maus modos, seca, a querer despachar serviço. Respondo-lhe, procurando não olhar para as suas mãos, tento pensar noutras coisas. O esforço é inglório. Quanto mais tento pensar noutras coisas, mais o meu olhar é atraído para as mãos da Lurdes. Acabo, num vislumbre rápido, por fixá-las. Vermelhas, como se tivessem sido escaldadas em água a ferver, as canículas arrancadas, a polpa dos dedos esfarelada, as unhas postiças a esconder as verdadeiras, escamadas, amarelas de micoses e fungos. Sei que são assim porque volta e meia, à Lurdes, cai-lhe uma unha postiça e vejo o que está por baixo. Umas mãos assim devem cheirar a alhos grelados. Não aguento a visão das mãos da Lurdes. Fico agoniada. Sinto culpa por sentir agonia perante umas mãos que trabalham. Podia tomar o pequeno-almoço noutro café, no refeitório do banco, mas estou habituada a começar o dia ali, no snack-bar do Apolo 70, com o jornal, um café duplo e um pão com manteiga, entretida com as notícias, quase sempre distraída a observar quem passa. Os meus companheiros de pequeno-almoço, aqueles que diariamente espio, cujos gestos e manias conheço há muitos anos, são sempre os mesmos: o padre reformado que traz o buldogue ao colo, o ajudante de farmácia vaidoso, a mulher feia despeitada que critica a beleza alheia, a costureira pequenina da cave, sentada ao balcão de pernas cruzadas, os indianos da loja de telemóveis, rapazes sérios de bigodinhos ralos. Leio o jornal, bebo o café, trinco o pão com manteiga. Mal o mastigo. A minha vontade é deixá-lo no prato, mas tenho medo que a Lurdes perceba de que não o como por ter nojo das mãos que o prepararam. Não quero ofendê-la. Não gosto de ofender ninguém.

2016/06/15

Duas



Comprou uma marreta, partiu-se em duas e, numa só, foi Adalgisa e Adaljosa. 

2016/06/14

Ponta dos dedos

Não sou deus, mas para lá caminho. A escrita salvou-me. Já não apanho o comboio das oito para trabalhar num edifício de escritórios. Já não como frango assado aos domingos. Deixei de cheirar mal dos pés. Desaprendi o significado de palavras que escrevi durante muitos anos: litispendência, discricionariedade, réu, citação. A escrita melhorou a minha vida: curou-me do melasma, emagreci cinco quilos e aprendi a mastigar de boca fechada. Também deixei de coçar os pêlos púbicos para depois cheirar a ponta dos dedos. Tal gesto, parece-me, não fica bem a quem escreve. Uma vez por outra, de vez em quando, tenho vontade de ir passear ao outlet de Alcochete para ver as montras dos saldos, mas rapidamente esqueço esses devaneios e mergulho nos poemas do Dylan Thomas. Talvez um dia me atreva a escrever poesia. 

2016/06/13

Flauta azul

Cortava o pequeno lombo de porco aos cubos, para depois o fritar para o jantar dos miúdos, quando o sol, de um amarelo moribundo, mas intenso, da cor do açafrão, bateu nas minhas mãos ensanguentadas fazendo desenhos de luz. As minhas mãos são pequenas, de dedos curtos e unhas roídas, feias, mas o sangue e o sol transformaram as minhas mãos. Se soubesse desenhar, desenhá-las-ia naquele preciso instante. Peguei na garrafa de cerveja e bebi o que dela restava. Com esse gesto, pegar na garrafa e levá-la à boca, as minhas mãos fugiram do sol. Isso afligiu-me profundamente. Ouvi as instruções de Julie. Une flute? Une flute. E o som frágil, mavioso, de uma flauta azul inundou a cozinha. Continuei a cortar a carne. Novamente o sol indiano nas minhas mãos. 

2016/06/10

Hora de jantar

Ninguém podia falar. O pai exigia silêncio. De olhos postos no televisor, comendo devagar, prestava atenção às notícias que a locutora ia apresentado. O jantar era sempre assim: o pai vendo o telejornal, os filhos comendo em silêncio, a mãe, em frenesim tardio, depois de um dia de trabalho, despachando o que houvesse a despachar para estar pronta à hora da telenovela. Ana estava bem avisada sobre a postura que devia ter durante a refeição: silêncio absoluto para não perturbar o pai e, se possível, se quisesse agradar-lhe, mostrar interesse nas notícias. Por vezes, distraía-se. Esquecida das ordens, falava com a irmã mais nova. Lúcia era habilidosa com as mãos. Para controlar a ansiedade que o silêncio imposto lhe causava, tinha o hábito de fazer dobragens com as folhas translúcidas dos guardanapos. À hora do jantar, saiam das suas mãos cravos, nenúfares, pequenas rosas.
- Que rosinha tão linda!
- Gostas?
- Ensina-me a fazer…
- Tu não és capaz, Ana!
- Sou sim!
- Tens sempre negativa a Trabalhos Manuais…
- Estúpida.
Riam-se. O pai não dizia nada quando via as filhas alegres, continuava a ver televisão, mas descaíam-lhe os cantos da boca, os olhos ficavam gelados. Carlos, o filho mais velho, chumbara já duas vezes no curso de Direito, era um desgraçado, nunca seria ninguém na vida, as raparigas, via-se bem, iam pelo mesmo caminho. Duas filhas, duas ignorantes que se deslumbravam com flores de papel em vez de se interessarem pelas notícias do mundo. A mãe, aflita, temendo que a desilusão do marido se transformasse em raiva, abria os olhos. “O vosso pai está a ver o telejornal!”, acabava por dizer. Lúcia logo esmagava a flor de papel na mão. Calava-se. Ana fingia não ouvir, mas, quando o pai por fim a mandava calar, desprezo na voz, calava-se também. Aquilo custava-lhe. Sentia então raiva, fazia por se controlar, não podia responder, a resposta poderia desencadear reacções violentas no pai. Ana, nesses instantes, assustava-se: pressentia que se tivesse ao seu alcance uma pedra, uma faca bem afiada, mataria o pai. Mexia com o garfo o arroz branco no prato. Não gostava de arroz branco, mas em casa, para além das batatas a acompanhar o peixe cozido, apenas se comia arroz, sempre branco, sempre cozido em água e sal. O pai só gostava de arroz branco. Observava os azulejos das paredes, a mãe, numa azáfama, de volta do fogão e do lava-loiças. Tudo era triste e desolador: o egoísmo do pai, a subserviência da mãe, a violência contida em cada gesto à hora de jantar.
Passados alguns anos, já Ana e Lúcia eram adolescentes, Carlos saíra de casa para viver num quarto alugado, o pai – talvez por sugestão da mãe – passou a jantar sozinho na sala. Depois de tomar banho, de robe e pijama, sentava-se na poltrona em frente da televisão. Cheirava bem, a sabonete e champô, estava limpo, tinha mãos bonitas, um cabelo espesso, muito preto. Ana sentia vontade de se sentar ao seu lado, mas não era capaz. O pai era um estranho, um homem que vivia na mais completa solidão. Antes de começar o telejornal, a mãe levava o tabuleiro à sala: um pano lavado, o arroz na quantidade exacta, uma costeleta frita, molho sobre o arroz, a acompanhar, um copo de vinho. Voltava depois à cozinha, onde, sentadas à mesa, Ana e Lúcia a esperavam para começar a jantar. Comiam em silêncio. Estavam habituadas ao silêncio. Tudo continuava a ser triste e desolador. Só o pai, concentrado nas notícias, sem ter ninguém a perturbá-lo, parecia agradado com a mudança. A sua felicidade era evidente: estava acompanhado pelo mundo e sua gente, mas livre da família.

2016/06/09

Lucia Berlin



Como um livro de contos pode ser um extraordinário romance.

2016/06/07

Menino Jesus

Falei durante trinta e nove minutos e quatro segundos, ao telefone, com o meu melhor amigo. Falámos sobre o Zola, a Lucia Berlin, a Inês Fonseca Santos, o Diogo Vaz Pinto - não o disse ao Ricardo, mas acho que fazem um lindo par -, e também sobre as bebedeiras do meu filho João. É bom ter um amigo. Sinto-me tão feliz por ter o Ricardo na minha vida que bebo mais um copo de moscatel e danço para o gato com floreados grotescos de mãos cansadas.

2016/06/05

Comportamento incaracterístico selvagem

O gato dorme em cima do frigorífico. Fumo, bebo e escuto o Elvis cantar "Suspicious minds" . Leio a bula da fluoxetina. Deixei de a tomar em Outubro de 2014. A ela volto. Já não recordava a extensa lista de efeitos secundários: dificuldade de engolir, diarreia, arrepios, dores de cabeça, alterações do sono ou sonhos anormais, euforia, movimentos involuntários, agitação extrema, perda de cabelo, disfunção sexual, secura da boca, falta de ar, erecções prolongadas, comportamentos de automutilação, e, o meu preferido, comportamento incaracterístico selvagem. “Deve evitar o álcool enquanto estiver a tomar este medicamento”. São divertidos os folhetos informativos dos medicamentos. Não se devem levar muito a sério, caso contrário uma pessoa dá em doida. Engulo um comprimido com um gole de moscatel de Setúbal. É tão docinho. Amachuco a folha de papel numa bola e atiro-a para o corredor. O gato desperta do seu sono e, ziguezagueando de um modo estranho, aos gangões, corre para a apanhar. Estaria a ter um sonho anormal? Abro a agenda e leio os textos que escrevi nos últimos dias, o início de dois contos, a imitar descaradamente o estilo da Lucia Berlin, as habituais notas sobre o dia-a-dia: aulas de natação, passeios no parque depois das aulas, discussões com o João, julgamentos, um grupo de rapazes na pizzaria, os olhos do meu pai, episódios do Inspector Morse, o choro incontido e em toda a parte, o aniversário do Sr. Branquinho no restaurante Chocalho em Alcáçovas. Uma a uma, lentamente, rasgo as folhas escritas da agenda. Faço bolas de papel. Atiro-as em todas as direcções. O gato está eufórico. 

2016/06/01

Lucy

Li, por estes dias, um livro do Coetzee. Lá para o meio do romance há uma violação brutal, primitiva, africana no pior sentido, a fazer lembrar o tal profeta Joseph Koni de que ontem falava o jornal. A violência da cena, é muita, também é dada pela reacção da vítima, uma jovem mulher, que, não sendo assumidamente lésbica, prescinde da companhia dos homens. Essa mulher aceita a sujeição ao sujeito soberano. É essa inicial passividade, motivada por razões ideológicas, que, mais do que a violência física, violenta o leitor. É bom escritor, o Coetzee, dos que mais gosto de ler. Mas, consumada a violação, quando, em meia dúzia de linhas, se debruça sobre, como lhes chama, os assuntos de sangue das mulheres - menstruação, parto e violação - escreve o seguinte: violar uma lésbica é pior do que violar uma virgem: é um golpe mais forte. Li, sublinhei, reli, tenho pensado muito no assunto e juro que ainda não percebi. Deve ser preciso ser homem, ter certo discernimento, para perceber.

(1 de Maio de 2012)

2016/05/31

Recreio

Quando o Ricardo ligou estava no recreio da escola do Joaquim a observar uma menina que lia uma história para outra meninas. O meu amigo queria saber se estava contente com o prémio atribuído ao Raduan Nassar. Há tempos, dois, três meses, falei-lhe, entusiasmada, da minha descoberta: descobrira por acaso "Menina a caminho e outros contos" numa livraria da Baixa e, por influência do João Pedro, lera "Um copo de cólera". Olhei o recreio da escola. As meninas que escutavam a história usavam vestidos de alças, a menina que lia estava descalça e tinha uma saia de padrão florido. A literatura, sobretudo os prémios literários,  pareceram-me um assunto irrelevante. Disse-lhe que não. 

Odeceixe

Em Leiria, enquanto esperava pela hora do julgamento, pernas estendidas ao sol, li outro conto da Lucia Berlin. Estou rendida à sua escrita. “Dor fantasma” fala sobre envelhecimento, demência, velhas senis que se masturbam, velhos que sentem as pernas que já não têm, de um pai que não sabe amar, de uma filha que espera palavras simples que nunca chegarão: gosto de ti, és minha filha e, independentemente das tuas escolhas, do teu sucesso, amar-te-ei sempre. Fiquei paralisada. Sei-o há muito. Escrevo por causa do meu pai, do amor e da mágoa que sinto, para lhe mostrar que valho alguma coisa. É uma fraca razão para se escrever. Corro a contar-lhe se saí uma crítica ao livro (merdoso livro), exactamente como, em adolescente, no liceu e na faculdade, fazia com as notas. Contive o choro e imaginei que deve ser bom chorar no ombro de alguém. No ombro de um pai. Quando o meu pai morrer hei-de escrever sobre a melancia que se partiu em Odeceixe. 

2016/05/29

Contenção

O Reinaldo veio jantar cá a casa para me ajudar com o IRS. Lembrando-me de que era um dos seus pratos preferidos, fiz rancho para o meu ex-marido: enchidos, grão, massa, as verduras cozidas em muita água com uma pitada de bicarbonato de sódio para avivar a cor. Foi um truque que a minha sogra me ensinou. A minha sogra definha num caixão, transforma-se em pó, nada, mas as folhas de repolho, com as suas nervuras, ganharam um tom vibrante, intenso, muito bonito. Enquanto cozinhava, de pé, livro aberto na bancada da cozinha, cigarro a arder no cinzeiro, li um conto da Lucia Berlin. Ontem, na feira do livro, comprei um livro de contos da Carson Mccullers e outro da Eudora Welty. Já não compro romances, só livros de contos. O conto tem o tempo exacto, contenção. É isso que procuro na literatura: contenção. O meu ex-marido comeu com prazer, repetiu, elogiou-me a mão para a cozinha. Com a sua ajuda, ultrapassei o calvário da entrega anual da declaração fiscal. Bebemos duas garrafas de vinho, conversámos, rimos ao lembrar a minha histeria no barco pirata do Zoomarine. À saída, andava ainda a Madalena a preparar a mochila para amanhã, pedi-lhe que me abraçasse. “ Que se passa, Nita?”, perguntou e envolveu-me com os seus braços enormes. “Nada”, respondi e entreguei-me ao braços do gigante. 

Letra miudinha

O Joaquim é o rapaz dos cadernos. Tem um caderno das flores, um caderno das folhas, um caderno dos desenhos, um caderno das histórias e, há três dias, descobriu  um caderno que enfeitou com brilhantes autocolantes que a minha mãe trouxe de Goa. É o seu diário. Todas as noites, já cansado, enfiado por baixo de edredão, só se vê a sua linda cabeça cheia de caracóis, escreve longos textos sobre o seu dia numa letra miudinha que, quando a espreito, me dá vontade de chorar. Como me atrevo, pela manhã, aos pensamentos mais sombrios, mais desesperados? O amor aos meus filhos, só esse, é absurdo, paradoxal: salva-me e condena-me. Explico-lhe que não precisa de contar detalhadamente o que acontece em cada um dos seus dias, pode escrever apenas uma frase sobre o que mais o marcou, a comida sensaborona do refeitório, uma brincadeira no recreio, as participações disciplinares do Sandro, um episódio do Mundo de Gumball. Olha-me demoradamente e contrapõe: “Mas assim não é um diário, mãe. É outra coisa qualquer”.  

2016/05/28

2016/05/27

Sichuan

Fiz o pedido ao homem das longas unhas afiadas: frango frito com amêndoas para a Madalena, galinha com castanhas para o João, chop-suey de porco para o Joaquim, uma garrafa de vinho branco para mim. Esperei encostada a uma palmeira artificial. Enquanto lia a ementa, espantosa a quantidade de pratos, o restaurante vazio encheu-se de turistas chineses. Gente ruidosa e alegre, mulheres de cabelos frisados, crianças gordas, homens feios, duas velhas quase carecas. Deviam ser de Sichuan que é a única província da China que conheço. Sentaram-se em mesas redondas, de centro giratório. Um homem sentou-se sozinho numa pequena mesa. O homem fez-me levantar os olhos da ementa. Chamou-me a atenção, não só pelo corpo robusto e musculado, pouco usual nos asiáticos, mas também por trazer na cabeça um insólito boné preto com dois chifres. Nunca o tirou. Sozinho, afastado do grupo, excluído, o minotauro olhava fixamente para uma rapariga sentada entre as velhas carecas.

Passado pouco tempo, ainda só tinham chupado gomos de laranja e sorvido ruidosamente um caldo escuro, os turistas chineses, incluindo as duas velhas quase carecas, levantaram-se e saíram porta fora. A rapariga, ao passar por mim, sorriu-me. Senti nela o cheiro que senti na turista alemã na Sé de Évora. Olhando-a, perguntei-me se, na cama, miaria como uma gata. As chinesas dos filmes pornográficos miam sempre como, se em vez de mulheres, fossem gatas. O minotauro começou a comer. O tempo passou, dez minutos, quinze, até que o homem das longas unhas afiadas trouxe o meu pedido. Ofereceu-me três chupa-chupas e uma pequena porção de hóstias de camarão. Na rua, a caminho do carro, olhei à procura do grupo de turistas chineses. Imaginei que estivessem à porta do restaurante a tirar fotografias. Não estavam. Aliás não estavam em parte nenhuma. Chovia na diagonal e a luz pareceu-me irreal. Senti, como sinto muitas vezes, estar dentro do sonho de alguém. Meti uma hóstia de camarão na boca e voltei para casa.

2016/05/25

Favos de mel

Uma luz branca, intensa, ilumina o rosto da minha filha. Na bancada, o Sr. Orlando enche o molde com uma pasta lilás. O protésico tem um nariz feio, redondo, inchado. É igual ao nariz do bêbado que, nos dias da consulta de psiquiatria, às sextas-feiras, encontro na Avenida de Paris. O bêbado causa-me repulsa e os dois sem-abrigo que, mais adiante, pedem à porta do Pingo-Doce também. Apesar da miséria, da solidão, até da loucura, não sou capaz de sentir compaixão pelo bêbado ou pelos sem-abrigo da Avenida de Paris. Não sei se quero sentir compaixão. De que serve a compaixão inconsequente e transitória que sentimos pelos excluídos da vida? A compaixão é um sentimento menor e, no entanto, e nisto reside a minha mesquinhez, desejo que os outros sintam compaixão de mim. Quando saio do consultório do psiquiatra quero apenas caminhar, sentir prazer por colocar um pé em frente do outro, observar a estrutura de ferro das portas dos prédios da Avenida de Paris. Favos de mel. Atravesso a rua para não ver os indigentes da cidade, sobretudo para não sentir o cheiro que os seus corpos liberta.

2016/05/24

Saxofone



- Mãe, por que ouves sempre a mesma música?
- Porque me faz lembrar o João Pedro.
- É por isso?
- É. O João é o saxofone do John Coltrane.
- Mas faz-te infeliz.
- Sim, é verdade.
- Odeio esse homem.
- Eu também. 

2016/05/23

Tazio

Quando se debruça para receber a moeda, apoiando a mão transpirada no vidro, pergunto-lhe quantos anos tem. “Faço vinte e um na próxima semana.”, responde e, ignorando o meu sorriso, a sedução espelhada nos meus novos Clubmaster, segue entre os carros de mão estendida. Usa, como sempre, calças justas e camisola de alças. Em vez dos habituais ténis, traz umas sandálias de couro. Espreito pela janela do carro para lhe ver os pés.  Certa vez, deitei-me com um homem mais velho, bonito, bom amante, tive dois orgasmos em pouco mais do que uma hora, mas, quando se levantou, vi uns pés feios, deformados, com dedos esguios, compridos, encavalitados uns nos outros, grandes joanetes. Não voltei a encontrar-me com esse homem apesar de, durante algumas semanas, me telefonar para marcar novo encontro. Sempre que nele pensava, a primeira imagem que me vinha à cabeça era a dos seus monstruosos pés. Imaginava-me na cama sendo pisada por aqueles pés. Decido que se Marina tiver pés bonitos, condizentes com a beleza do seu corpo, na próxima semana, quando fizer anos, ofereço-lhe um exemplar de “ A morte em Veneza”. Debruço-me pela janela, mas  só lhe vejo os calcanhares.

2016/05/22

Alcáçovas

De Évora a Alcáçovas o caminho faz-se por uma estrada quase deserta. As bermas estão floridas: giestas, cardos roxos, azedas, papoilas. No céu limpo voam andorinhas e cegonhas. Os campos, ondulações suaves e verdes, pontilhados de azinheiras e grandes pedras, guardam memória do vento e da chuva. Conduzo devagar apesar de ter pressa de chegar. Quero prolongar a volúpia que sinto perante tanta beleza, preciso de tornar o caminho mais longo. O Joaquim reclama. Tem fome. Atiro uma maçã para o banco de trás e penso que às vezes a vida é uma fantasia maravilhosa. Ou uma risota mesquinha. Ainda bem que o rapaz bebeu até cair de podre. Ainda bem que encontrou a inglesa. Ainda bem que a heroína lhe fez parar o coração. Morto, não dará mais desgostos à mãe e à avó, sossegarão a partir de agora, uma e outra vestidas de preto. Hão-de recordá-lo menino, gordo, de mãos papudas e joelhos tortos, a fazer os trabalhos de casa na mesa da cozinha. Sim, repito para mim própria, e reparo num corvo pousado num tronco velho que solta um grito estridente, ainda bem que o rapaz morreu. Se não tivesse morrido, não estaria aqui, na estrada que vai de Évora a Alcáçovas, para ir ao seu funeral. 

2016/05/18

Magnetismo



(Marina, a linda malabarista dos semáforos, é parecida com a rapariga do video. Nova, muito nova, cheia de vida. Durante o jantar expliquei aos meus filhos que decidi ser lésbica. O pequeno ficou triste, os mais velhos riram-se.)

Marina

Voltei a encontrar Marina, a malabarista do semáforo da Avenida EUA. Mudou de poiso. Por isso não a vi durante meses. Pára agora num cruzamento perto do aeroporto. Acho-a diferente. Deixou crescer o cabelo. Cai-lhe, liso e preto, pelas costas. Engordou um pouco, mas o peso favorece-a. Voltou a ter formas, rabo redondinho, as mamas empinadas balouçam livres na camisola de alças. Já não usa o ridículo gorro vermelho. Qualquer coisa se alterou na rapariga dos malabares prateados. Não sei bem o quê. Já eu, no cruzamento perto do aeroporto, como no semáforo da Avenida EUA, continuo presa à beleza que, sem saber, Marina traz à minha vida. Quando ela avança de mão estendida entre os carros, segura, sinto uma estranha languidez, tenho vontade de lhe tocar.

2016/05/17

Canasten

Ia pela Avenida de Berna a pensar em certo violoncelista e em certa clarinetista da Orquestra Gulbenkian. O violoncelista faz-me lembrar “ Os dias de abandono”, o conto da Elena Ferrante que mete a um canto a sua restante obra. A clarinetista, tenho quase a certeza, foi minha colega no ciclo preparatório e chama-se Paula. Naquele tempo, parecia uma macaca, era a melhor aluna e tinha uma cadela amarela que se chamava Popsi. As voltas que a vida dá. A caminho do concerto, pensando na minha resolução de fim de ano, a única que tomei, senti-me feliz. Uma vez por mês, já não é mau, vou à Gulbenkian. Escolho um concerto, leio alguma coisa sobre os compositores e, para que os meus ouvidos se habituem, escuto as obras. Assisto aos concertos com um deslumbramento intenso, iniciático, ingénuo, palpita-me o coração, os finais apoteóticos arrebatam-me. Nesses dias, em que me sento sozinha numa das cadeiras do auditório da fundação, adio o momento em que volto para casa, faço o jantar, varro o chão e cuido dos meus filhos. Isso também me agrada. Continuei a andar. Olhei para o pespontado dos sapatos novos e esqueci a tristeza das últimas semanas.

Foi então, já nos jardins, que uma comichão intensa se fez sentir precisamente no meu epicentro, que é, como quem diz, na minha vagina. Apesar da aplicação de pomadas, dos comprimidos vaginais enfiados com um longo aplicador, volta e meia, a candidíase volta. Veio fulgurante, desta vez. Um prurido crescente, explosivo, vindo das entranhas mais fundas, parecia ser capaz de rebentar comigo. Apressei o passo, entrei no edifício. Nas escadas que descem para as casas de banho, duas mulheres, casacos pelos ombros, colares de pérolas sobre blusas caras, conversavam. Ao lado, num grupo animado, uma outra mulher deu uma gargalhada afectada e ajeitou o cabelo num gesto de sedução. Passou, sorumbático, quase cadáver, um dos fundadores do PSD. Imaginei-me no meio daquele gente, desesperada, a rebolar no chão, a meter as mãos dentro das calças, a coçar-me freneticamente como se tivesse pulgas, chatos, carraças. Comecei a rir. Sou uma deprimida que ri muito. O riso, em vez de me aliviar, acicatou a comichão. Desci as escadas, pulando degraus, enfiei-me na casa de banho e acabei com aquele tormento.

2016/05/16

Efeitos da liberdade

Eu pertenço a uma família de profetas aprés coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico. No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. 
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo. No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: 
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que… 
– Oh! meu senhô! fico. 
– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos… 
– Artura não qué dizê nada, não, senhô… 
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. 
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. 
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. 
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu. 

Machado de Assis, crónica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de Maio de 1888, uma semana após a abolição da escravatura no Brasil